sexta-feira, novembro 16, 2012

Democracia e implosão

Greve geral de 14 de novembro, Lisboa, Assembleia da República, confrontos com a polícia.
Foto©EPA

“Violência inédita”, como clamaram em uníssono governo, politocratas e jornalistas — ou sinais claros de implosão de um sistema falido por todos os lados?

No dia 14 de novembro, dia da greve geral convocada pela CGT-Intersindical, às 17:57, escrevi no Facebook:
Mário Soares deveria procurar interpretar estas palavras escritas no chão em frente à Assembleia da República: "os ladrões estão lá dentro, a polícia está cá fora". Uma nova revolução contra a democracia degenerada já está em marcha. Esperemos que possa ser uma revolução pacífica, mas uma revolução nomeadamente pela transparência democrática, pela justiça fiscal e pela abolição dos rendeiros protegidos do regime e suas rendas excessivas e indecorosas.
E a 13 de março do ano passado, neste mesmo blogue, avisava as hostes da esquerda instalada:
Mário Soares não esperou certamente assistir a uma nova revolução popular no seu país, muito menos contra o PS!

Tal como escrevi noutra ocasião, a ira que se vem acumulando na sociedade portuguesa não resulta apenas da precariedade profissional de uma juventude mal orientada, mas também da desilusão e revolta, por enquanto contida, dos pais e avós dessa mesma juventude. Estes dedicaram atenção, esforço e poupança ao futuro dos seus entes mais queridos. Quantas vezes, ao som cantante do optimismo libertário que ajudaram a fundar.

De há uma década para cá, porém, assistem incrédulos ao desmoronar aparentemente imparável de um imenso sonho e de uma não menos formidável esperança. O que eu hoje vi e senti ao longo da avenida da Liberdade foi a aliança, que irá crescer nas próximas semanas e meses, entre avós, filhos e netos, revoltados contra uma democracia que degenerou num regime partidocrata, clientelar e burocrático, a caminho de uma descarada cleptocracia.
Ao procurar ter uma visão mais geral da greve geral de ontem em Portugal e na Europa, e que foi muito mais do que a montagem mediática que tem encharcado os nossos olhos e neurónios desde o início dos confrontos entre manifestantes e corpos policiais junto à Assembleia da República, precisei de recorrer —o que não deixa de ser sintomático da situação a que chegámos— a um blogue radical como o 5Dias.

A narrativa deste círculo de pensamento revolucionário releva de um imediatismo tipicamente de extrema-esquerda, mas nem por isso deixa de analisar com franqueza nua e crua o que a "violência inédita" de ontem não foi —uma perturbação organizada por profissionais estrangeiros com os quais a CGTP de Arménio Carlos nada teve que ver—, e o que, na realidade, foi: a demonstração de que uma parte crescente da população portuguesa, para já sobretudo urbana, está contra o sistema e irá resistir à cobardia e ao cinismo dos banqueiros e da subserviente partidocracia que temos, do CDS-PP ao Bloco agora bicéfalo dos cadáveres de Trotsky e das múmias de Mao.
Se a Esquerda institucional (partidos e sindicatos) escolher demonizar os sectores populares não tutelados, difusos e mais radicalizados, então está a cavar a sua própria sepultura. É que a repressão dos elementos mais radicais (neste momento) na sociedade Portuguesa será uma vitória para a reacção e essa vitória será seguida de um ataque esmagador às “forças organizadas”… tendo ajudado a reprimir o impulso de revolta popular genuíno e espontâneo quem é que irá em auxílio da CGTP, PCP ou BE quando a reacção se voltar para esmagá-los? As forças da esquerda institucional podem-se demarcar o quanto quiserem destas acções, o facto é de que, quer gostem ou não, quer o desejem ou não, a repressão do movimento insurgente de massas conduzirá em seguida ao seu esmagamento, no mínimo, à sua marginalização para um plano ainda menos relevante do que tem hoje — Francisco Furtado, 5Dias.Net .
Mais do que estarmos perante uma crise sistémica do capitalismo, estamos no final de uma vaga de crescimento inflacionista que esgotou as fontes de energia barata, destruiu ou queimou solos agrícolas a uma escala nunca imaginada e exauriu muitos outros recursos, tais como a água potável e os minérios essenciais ao tipo de civilização a que nos habituámos.

O crescimento económico do século 20 conduziu-nos ao excesso demográfico, e o excesso demográfico conduziu-nos, numa primeira fase, à repartição militar dos recursos disponíveis, e à sobre-exploração de nações inteiras pelos povos mais ricos e tecnologicamente evoluídos. Numa segunda fase, sensivelmente a partir do início da década de 1960, a redistribuição planetária, ainda que desigual e lenta do rendimento mundial, induziu o desemprego, a perda paulatina do poder de compra, a instabilidade social e cultural, a recessão demográfica, e o envelhecimento das populações, tanto na Europa, como nos Estados Unidos, no Japão, ou mesmo na China e, a par de tudo isto, ao endividamento acelerado dos governos, das empresas e das pessoas.

Não vale pois a pena culpar a Troika por algo que a ultrapassa. Nem sequer vale a pena perdermos muito tempo com as responsabilidades óbvias das partidocracias que têm gerido as democracias populistas ao longo das últimas décadas. Acusá-los, julgá-los e prendê-los, pelo menos alguns, será certamente uma boa terapia de grupo, mas não é o essencial. Travar a fundo na despesa pública é porventura inevitável, sobretudo por causa dos níveis explosivos de endividamento público e privado, mas não resolverá os problemas principais, e até poderá agravar o caos social que se avizinha a passos largos, entre outras motivos, pela extrema dependência das sociedades contemporâneas face ao estado, nomeadamente em matéria de emprego, pensões e reformas, saúde e educação, e assistência em tempos de crise agravada.

Gustave Doré, Destruição do Leviatã, gravura (1865)

Que fazer?

Responder a esta pergunta é um longo processo que ainda temos pela frente. Passará certamente pela metamorfose dos sistemas esgotados e corrompidos das democracias populistas europeias. Estas implosões inevitáveis não serão certamente passagens de modelos na passerelle do narcisismo partidocrata.

Outra pergunta: poderão ser o preâmbulo de novas revoluções sociais?

Sim, mas só na medida em que apressarem o colapso económico, social, político e cultural do Leviatã em que nos habituámos a confiar como fonte de todos os direitos sociais e culpado de todas as desgraças. Vencer esta espécie de infantilidade cultural implicará, não só destruir o estado tal como o conhecemos hoje, mas também todas as corporações, sindicatos e organizações sociais que se deixaram perverter por relações de amor e ódio entre si, e pela dependência congénita do Leviatã. O poder omnipresente do monstro burocrático é o verdadeiro obstáculo que imediatamente resiste à mudança.

Será necessariamente violenta a próxima revolução?

Haverá certamente violência, mas tal não significa que tenha que ser violenta, nem sobretudo que deva ser alimentada pela violência organizada. Este tema, que a "violência inédita" de ontem frente ao parlamento português tornou mais premente, exige uma discussão profunda e sobretudo alguma análise histórica. À laia de introdução publico uma entrevista a Gene Sharp (bibliografia) que o Vítor Pomar e o Denis Hickel me deram a conhecer através do Facebook: “Como iniciar uma revolução”...




POST SCRIPTUM

Memo sobre o 14N

A violência que está a tomar de assalto as manifestações pacíficas em Portugal tem seguramente origem planeada e organizada, típica das táticas de insurreição e guerrilha militar.

É preciso denunciá-la e contrapor formas de protesto e ação de massas pacíficas e criativas!

Desde já é preciso exigir aos responsáveis pela segurança das pessoas que apurem as responsabilidades pelos incidentes violentos, os quais, em minha opinião, foram meticulosamente planeados contras as forças policiais que guardavam o parlamento no dia 14 de novembro.

Em vez de desculpar apressadamente a CGTP, o governo deve proteger melhor os cidadãos que se manifestam pacificamente.

Última atualização: 17 nov 201221:19

2 comentários:

Anónimo disse...

Artigo muito bom! Oxalá os povos consigam dar a volta, e que se encontre uma sociedade mais sutentável e solidária para o novo tipo de civilização...que desconhecemos mas que um dia há-de vir. O que vivemos agora são ruínas do passado.

Pedro S. disse...

Caro António Maria

Embora perceba o que quer dizer, não o subscrevo a 100%. Também eu, confrontado com reacções negativas à violência que houve em Lisboa, defendi que embora não concordasse com os motivos (nem da violência, nem da greve) por vezes é bom que os poderosos se lembrem do poder que as pessoas têm na rua. No entanto, penso que enquanto estas acções não forem pelas razões certas, terão pouco efeito. As principais forças que estiveram por detrás da greve querem no fundo a manutenção do status quo que nos levou à presente crise (cujo início antecede em muito 2008). O que precisámos na verdade é, tal como diz, de uma refundação do regime. Uma revolução de facto. E isso a acontecer espero que não seja nunca no âmbito de uma greve geral ou qualquer outra coisa organizada por um dos pilares podres da nossa sociedade.

Cumprimentos

Pedro