segunda-feira, novembro 10, 2014

A vontade catalã

© Albert Gea / Reuters

Maioria referendária quer uma Catalunha independente


Catalunha
  • Eleitores: 5.413.868 (2012)
  • Votantes nas últimas eleições legislativas catalãs (2012): 3.668.310 (67,76%)
  • Votantes no referendo, inconstitucional, de 9 de novembro de 2014: 2.043.226
    — 80,72% disseram 'sim, sim' à existência de um estado catalão independente.

Não se pode perguntar aos espanhóis no seu conjunto se querem, ou não, a independência de uma das suas nações históricas — seria, de acordo com a teoria do duplo vínculo de Gregory Bateson, colocar os castelhanos, aragoneses, andaluzes, leoneses, galegos, extremenhos, bascos, asturianos, catalães, valencianos, canarinos, murcianos, etc.,  numa situação de grande instabilidade e imprevisibilidade emocionais.

Por um lado, o desejo e a vontade de independência é por definição unilateral e só por implosão sistémica (caso da URSS), ou pela força política, imposta através da democracia, ou pelas armas, ou por ambas, se consegue. Nunca foi doutro modo em nenhum tempo e em nenhuma parte do mundo. O regresso das nações jugoslavas à condição de estados independenets algumas décadas depois de terem sido artificialmente unidas sob um estado federado dirigido por Tito, ou as guerras civis que grassam na Ucrânia e nos países onde o auto designado Estado Islâmico pretende restaurar o Califado em nome da unidade político-religiosa do Islão, ou ainda o processo democrático em curso para a independência da Escócia, são provas históricas contemporâneas da natureza intrinsecamente dramática de qualquer processo de separação litigiosa. A independência da Irlanda, conseguida com sangue, suor e lágrimas entre 1919 e 1937, foi um processo violentíssimo que, em boa verdade, não está completo, pois Belfast, os unionistas protestantes e a chamada Irlanda do Norte continuam ligados ao Reino Unido. No entanto, se há revolução nacionalista que tem inspirado processos similares na Europa contemporânea, a da Irlanda é seguramente a mais sintomática e importante.

Por outro, a legalidade constitucional de um estado soberano não se aplica, por norma e princípio, a quem dele se quer apartar. Madrid opôs-se à independência do País Basco porque os nacionalistas daquela região autónoma pegaram em armas e montaram um campanha de atentados terroristas seletivos contra os representantes do estado espanhol. Mas Madrid também se opõe à independência da Catalunha porque os processos democráticos que esta nação quer implementar, à semelhança, por exemplo, da Escócia, são, na ótica da monarquia espanhola, inconstitucionais. Inconstitucionais?! Mas que Constituição no mundo prevê mecanismos referendários, ou outros, para a sua fragmentação ou perda de território e poder?

A questão das independências do país Basco, da Catalunha, ou da Galiza, para mencionar apenas três nações históricas espanholas que defendem as suas autonomias e têm partidos políticos legais independentistas, não pode ser dirimida no plano puramente legal e constitucional da monarquia espanhola, até porque para defesa das leis constitucionais sobre a unidade do estado espanhol, que, como sabemos, é uma aquisição legal imposta aos povos espanhois por Napoleão quando invadiu a Península Ibérica a caminho de Portugal, contará sempre com as suas polícias e as suas forças armadas, como aliás Madrid não se esqueceu de exibir ao longo do processo referendário que ontem teve lugar em toda a Catalunha.

A Península Ibérica que se seguiu às sucessivas derrotas militares do Islão, que por cá andou durante mais de setecentos anos, era composta por reinos e condados feudais devedores do auxílio militar e ideológico vindo de Roma, França, Inglaterra e de outras partes da Europa cristã. Só em finais do século 15 os últimos estados muçulmanos da Península foram extintos, e só então começou um lento e sempre contraditório e incompleto processo de união política na antiga Al-Andalus.

Como é sabido, foram frequentes as guerras entre os várias reinos cristãos da península ibérica, e ainda entre os vários reinos e condados unidos em volta dos soberanos Fernando de Aragão e Isabel de Castela. A última e trágica Guerra Civil Espanhola (1936-39) foi ganha pelo general galego Francisco Franco, em nome, como se sabe, da improvável afirmação de uma pátria espanhola unida em volta de um rei exilado, de uma falange fascista e de Deus. Da repressão linguística à uniformização arquitetónica e gastronómica das Espanhas (fachadas brancas, leque e sevilhanas, touros, tortilhas e calamares), tudo foi tentado, em vão, para fazer dos povos e nações reunidos por iniciativa dos Reis Católicos, o que José Bonaparte, então rei francês de Espanha, sonhou e impôs em 1808 sob a forma do Acte Constitutionnel de l’Espagne: uma só nação, uma só moeda, uma lei única e um só soberano para todas as terras e gentes de Espanha, em suma, uma só Constituição. O sonho da razão francesa criou, como se sabe, desastres e monstros. Franco chegou mesmo a planear uma nova invasão e conquista de Portugal em 1940, depois de os falangistas o terem desafiado a fazer uma entrada triunfal em Lisboa em 1939, na sequência da vitória sobre os republicanos (1). Valeu-nos a vitória do Aliados sobre a Alemanha nazi.

Uma Espanha unida é mais conveniente aos portugueses, e aos espanhóis, pois evita a cíclica agitação nacionalista que há séculos percorre a Península Ibérica mergulhando-a em períodos de instabilidade, guerra, colapso económico, autoritarismo e atraso cultural, sobretudo quando os impérios se foram e quando já não há dinheiro para financiar aventuras de poder e egoísmos regionais que apenas enfraquecem a península. A Espanha de hoje volta a ter que enfrentar o problema da sua unidade como estado de várias nações e povos. Madrid já não tem onde ir buscar euros para saquear colónias e aimentar impérios, nem deve pretender continuar a ser uma senhoria autoritária e centralista. Terá, pois, que negociar a paz e a prosperidade futura das Espanhas em novas bases de diálogo, defendendo o que interessa a todos e todos fortalece, abrindo-se à possibilidade de ver nascer na Península Ibérica uma Escandinávia do Sul, certamente em moldes que não conhecemos ainda mas que é possível imaginar e construir se, para tal, houver vontade, generosidade, inteligência e criatividade suficientes.

Fazer da Catalunha um problema insolúvel seria o pior caminho que Madrid e os povos espanhóis poderiam escolher. E seria também uma preocupação que Portugal não deseja.

NOTAS
  1. Manuel Ros Agudo—"Plano de Campanha nº 1 (34)", in Expresso, 3 nov 2009.

Atualização: 14 nov 2014 10:38 WET

4 comentários:

lidiasantos almeida sousa disse...

É um enorme prazer ler os seus artigos. A sua profecia de ficarmos uma Ilha isolada quando os Espanhóis concluíssem a bitola Europeia já está aí Agora os detratores do TGV cujos fundos estruturais foram pelo cano abaixo, podem limpar o rabo às suas teorias, pois quem assinou o contrato do TGV e do Aeroporto da OTA foi o Durão Barroso acompanhado da sua Ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite.
mas o 1º plano foi feito pelo CAVACO. a HISTÓRIA DA MUDANÇA DO AEROPORTO DA OTA PARA ALCO0CHETEm tem muito que se diga. Quando estava tudo no segredo dos Deuses, o amigo do Cavaco FERNANDO FANTASIAS andava por Alcochete a comprar os terrenos que depois serviriam para hoteis, etc.Pode dar-me a sua opinião, pois posso estar errada e não gosto de dizer coisas que difamem as pessoas. De onde veio o dinheiro para comprar os milhares de hectares em Rio Frio?

Humberto disse...

Parece-me ser necessário um pouco mais de cuidado antes de se escolherem títulos como «A vontade catalã Maioria dos eleitores da Catalunha querem um estado catalão independente» pois tal pode não ser necessariamente verdade.


############

eleitores: 5.413.868

votantes: 2.043.226

percentagem de sim: 80,72%

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2.043.226 / 5.413.868 = 0.3774
37,74% dos eleitores foram votar

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Abstenção:

5.413.868 - 2.043.226 = 3.370.642
3.370.642 eleitores NÃO foram votar

2.043.226 / 5.413.868 = 0,6226
62,26% dos eleitores NÃO foram votar

############

2.043.226 x 80,72% = 1.649.292
1.649.292 eleitores votaram sim.

Como o total de eleitores é de 5.413.868:

1.649.292 / 5.413.868 = 0,3046
30,46% dos 5.413.868 eleitores votaram sim

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2.043.226 - 1.649.292 = 393.934
393.934 leitores votaram não, em branco ou nulo

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Resumindo:

. 2.043.226 (37,74%) dos 5.413.868 eleitores foram votar;
. 1.649.292 (30,46%) dos 5.413.868 eleitores votaram sim;
. 393.934 (7,28%) dos 5.413.868 eleitores votaram não, em branco ou nulo;
. 3.370.642 (62,26%) dos 5.413.868 eleitores NÃO foram votar;
. 3.764.576 (69,54%) dos 5.413.868 eleitores ou NÃO foram votar ou votaram não, em branco ou nulo;

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A questão é que a maioria dos eleitores não quis saber deste referendo inconstitucional pelo que, por isto mesmo, não se pode extrapolar os 80,7% dos que foram votar e votaram 'sim' para o universo de todos os eleitores.

Não é possível saber qual o sentido de voto dos 62,26% dos eleitores que ficaram em casa cujos votos seriam determinantes num verdadeiro referendo, num referendo constitucional.

Pode até dar-se o caso de que os que gostariam de ter a independência se tenham sentido mais motivados do que os restantes para irem votar e esses restantes que ficaram em casa sem essa motivação de quererem a independência simplesmente terem ignorado o referendo por ser inconstitucional.

Não quero dizer que assim seja mas apenas que há esta possibilidade e há que analisá-la cuidadosamente e também há que ter cuidado com certas afirmações pois podem ir contra a realidade.

Nunca é boa ideia começar-se logo a discutir o que pode ser apenas uma fantasia idealizada por alguns sem se analisar primeiro e objectivamente o que significam TODOS os dados que este referendo inconstitucional nos dá e o que verdadeiramente significam.

Zephyrus disse...

A nação catalã inclui não apenas o território da Região Autónoma da Catalunha mas também a Região Autónoma de Valência, as Baleares, municípios de Aragão e um município de Múrcia. Ou seja, não me admira que os independentistas não venham reclamar depois os territórios ibéricos do antigo Reino de Aragão!

Já o mundo basco não se restringe à actual região autónoma mas expande-se para França e para regiões autónomas vizinhas.

Historicamente a Andaluzia e regiões meridionais vizinhas como a Extremadura têm um passado multicultural forte e feridas profundas causadas pela expulsão dos sefarditas e dos mouriscos. Foi durante mais de dois mil anos a região mais rica e desenvolvida da Península Ibérica, até ao período da Reconquista, e tem uma cultura muito própria, embora a língua seja o castelhano.

Portanto parece-me que a solução terá de ser mais profunda. E passa pelo fim das actuais regiões autónomas e pela criação de uma Federação! A separação de Castela, Catalunha ou Galiza também não interessa a estas regiões pois implicaria um fortalecimento da Alemanha agora unida!

Uma futura federação ibérica poderia incluir os seguintes estados-nação:

- Catalunha (Catalunha, Valência, Baleares, parte de Aragão)

- País Basco

- Galiza

- Canárias

- Andaluzia

- Castela

- Astúrias e Cantábria

- talvez Madrid como cidade-estado.

António Maria disse...

Email recebido de um amigo galego e espanhol:

"Sempre é interessante o teu ponto de vista. Sempre encontro prazer ao ler os teus mails.

Mas o resto do país ainda não reagíu. Espera e olha...

Se eu fosse nacionalista catalufo estaría, também, muito preocupado.

Antonio, os valencianos odeiam aos catalufos. Os aragoneses são os maiores partidários da abolição do estado das autonomías em toda a Espanha. E, sobretudo, dois de cada três catalufos mandam à merda o terço restante (27%).

O país teve três grandes guerras fratricidas pelas burradas de tais merdeiros (Sucessão, Carlista e Civil).

Há um problema mal contado:

-- os sete primeiros apelidos de Catalufia são os mesmos que os do resto da Espanha. O primeiro tipicamente catalufo está no número vinte. São cinco séculos pá!

Fazer perguntinhas ao bandido Putin! Pobre Espanha e pobre Europa! Temo que a resposta de este governo fascistóide possa ser fodida e fría!

Um fortíssimo abraço.

JR