terça-feira, dezembro 16, 2025

A arma da dívida

 

Este mapa da dívida do Visual Capitalist esconde a real dívida pública chinesa

ECO — IGCP quer financiar-se em 24 mil milhões através de obrigações


Parece muito, mas estava mais ou menos programado pelo IGCP desde que, pela última vez, batemos com a cabeça no MURO DA DÍVIDA PÚBLICA, em 2011, e fomos resgatados pela Troika (BCE, FMI, UE).

Já agora, não somos os únicos encalacrados. A nossa dívida pública é de 93,6% do PIB. 

A economia assente no endividamento histórico das nações tem acontecido, em ciclo geralmente longos, em todo o mundo, desde que há transações comerciais baseadas no dinheiro, isto é, na confiança, pois as moedas não são mais do que símbolos de confiança. E quando esta falha, e a moeda começa a ser falsificada (começando por retirar os metais mais valiosos das ligas que as compõem, etc.), há uma deterioração dos termos de troca e um endividamento crescente. Este endividamento tornou-se, aliás, uma artimanha do crescimento em muitos países, de que os mais recentes e notórios são os da China, Japão e Estados Unidos. Ao pé destes, o caso português é praticamente irrelevante, e está hoje razoavelmente sob controlo, ao contrário dos casos pequinês, de Singapura,dos Estados Unidos, ou de Singapura, por exemplo.

Há, porém, que distinguir o endividamento público resultante do empobrecimento puro e duro dos países, por exemplo, resultante de guerras e invasões (Líbano, Sudão, Eritreia, Ucrânia e Rússia, por exemolo), ou do peso crescente das despesas sociais públicas (Itália, Grécia, Bélgica, Canadá, Portugal, etc.), daquele que resulta do uso do endividamento como uma forma de alavancagem do investimento (China, Japão e Estados Unidos, entre outros).

Dívida Pública % do PIB *

R P China 200-300% **

Sudão 272%

Japão 237%

Singapura 173%

Líbano 164%

Venezuela 164%

Eritreia 164%

Grécia 154%

Itália 135%

Estados Unidos 124%

Cuba 119%

França 113%

Canadá 111%

Cabo Verde 109%

Butão 108%

Bélgica 104%

São Tomé e Príncipe 103%

Espanha 102%

...

Portugal 93,6%


* https://pt.tradingeconomics.com/country-list/government-debt-to-gdp

** Esta % inclui as dívidas não incorporada na Dívida Pública relatada das empresas públicas e dos veículos de endividamento dos governos locais.


segunda-feira, dezembro 08, 2025

O mundo depois da guerra na Ucrânia


Uma leitura do National Security Strategy 2025

Este documento do governo americano, em estilo jornalístico direto, cuja leitura recomendo, condensa uma alteração profunda na diplomacia americana, que configura basicamente o novo posicionamento dos Estados Unidos perante a emergência do que reconhecem ser um mundo multipolar (Estados Unidos, Europa*, China), onde, porém, tencionam continuar a ser militarmente dominantes, deixando embora de ser vendedores de bíblias e democracia.

Objetivos principais consagrados neste documento, por vezes contraditório, enviesado ou vago:

— manter as vias de comunicação, nomeadamente marítimas, aéreas e eletrónicas, abertas e protegidas tanto dos piratas convencionais, como de terroristas e estados com pretensões de dominação global ou regional;

— impedir que os excessos de capacidade produtiva e comercial da China e da Europa continuem a esvaziar a América de fábricas, trabalhadores, conhecimento e tecnologia, agravando ainda mais o astronómico défice da sua balança comercial, usando para tal tarifas alfandegárias como arma destinada a restabelecer o equilíbrio orçamental e uma agressividade mercantilista renovada;

— consolidar as suas alianças estratégicas e parcerias no mundo, aumentá-las, até, nomeadamente na América do Sul e em África, para assim poderem manter o modelo cultural em que acreditam, mas sobretudo garantirem o acesso a recursos estratégicos imprescindíveis ao crescimento económico na era da robótica e da IA: metais, raros e não raros, energia, muita energia!

As considerações sobre o fim das grandes migrações dizem respeito apenas aos Estados Unidos, apesar das insinuações sem fundamento estatístico (2) que apontam à União Europeia. O cenário catastrófico que o documento traça sobre a Europa, cujo PIB em Paridade do Poder de Compra é maior do que o dos Estados Unidos (1), é claramente desproporcionado. Creio mesmo que a Europa, além de ser o principal parceiro comercial dos Estados Unidos fora do continente americano (3), é também o seu único contraponto credível relativamente aos seus excessos da ganância monopolista.

Curiosamente, os Estados Unidos da era Trump, ao anunciaram a sua descolagem orçamental dos sistemas de defesa dos países aliados, libertaram a Alemanha e o Japão dos constrangimentos impostos a estas duas potências mundiais no rescaldo da derrota destes dois países na Segunda Guerra Mundial. Entre o Trump I e o Trump II, o Japão transformou os seus dois navios de grande convés (porta-helicópteros) em porta-aviões capazes de operar com F-35, e acaba de ameaçar Pequim nas suas intenções de invadir a Formosa, o que, a socorrer, alteraria o equilíbrio estratégico na região do Índico-Pacífico.

Querer a **paz através da força**, o mantra que os rapazes do Trump repetem sem parar, está neste momento à prova na Venezuela. Certamente um bom teste para verificar a consistência da estratégia que acabam de anunciar aos quatro ventos.

Creio que os Estados Unidos temem, de facto, a Europa (um receio que vem de longe, como se sabe...), sobretudo se esta, depois de Putin vier a incorporar a Ucrânia na União Europeia e numa NATO-Europa, e conseguir, por outro lado, estabelecer uma parceria comercial (e depois estratégica) com a Rússia, colocando os Estados Unidos e a China numa situação geo-estratégica mundial inteiramente nova e duradoura.
NOTAS

1. O PIB, em Paridade do Poder de Compra, da Europa, considerando as medições do FMI, Banco Mundial e os números da CIA (The World Factbook), é superior ao dos Estados Unidos e inferior ao da China.
2. A presença muçulmana na Europa que tanto aflige Donald Trump e J. D. Vance, não vai neste momento além dos 5%, e estima-se que em 2050, andará entre os 11% e os 14%. Muito longe, portanto, do limiar dos 30-40%, a partir do qual, os problemas de representação política e cultural étnica, religiosa ou étnico-religiosa, começam a tornar-se problemáticos. É certo que nos Estados Unidos apenas 1% dos cidadãos são muçulmanos, mas, por outro lado, 13% a 14% são afro-americanos e 20% são latinos. Quer dizer, há uma percentagem de norte-americanos que não fazem parte da maioria branca caucasiana que supera os 30% e caminha rapidamente para os 40%, o que não seria um problema se o racismo não fosse tão acentuado entre a elite republicana que ocupa atualmente a Casa Branca!

3. Se considerarmos a Europa democrática alargada (incluindo a União Europeia, o Reino Unido, a Suíça, a Noruega e outros países democráticos, excluindo a Rússia e a Ucrânia), o volume total de comércio com os Estados Unidos supera claramente o comércio destes com a China, sendo portanto a Europa a maior parceira comercial dos EUA fora do continente americano, i.e., depois do México e do Canadá. Já agora, a UE é a maior parceira comercial da China.

* — o documento prefere referir a Rússia, certamente pela contagem de espingardas!

domingo, novembro 30, 2025

Este mundo tem menos de 200 anos

London Steam Carriage,
Road locomotive by Trevithick and Vivian, demonstrated in London in 1803 — Wikipedia.


— a revolução dos transporte que tudo mudou

O mundo tal como o conhecemos hoje – articulado por grandes redes ferroviárias, navegação a vapor e diesel, estradas asfaltadas, aviação comercial e satélites – é surpreendentemente recente na história humana. 

No século XIX, transportar mercadorias por rios, canais e mar era, em regra, várias vezes mais barato do que fazê‑lo em terra com carruagens puxadas por animais. Quando o transporte ferroviário se difundiu, graças à produção em massa de carris de ferro forjado em laminadores alimentados por fornos a carvão – primeiro vegetal, depois, de forma crescente, coque – o custo do transporte terrestre caiu de forma brutal. A ferrovia continuava, em geral, mais cara do que as vias aquáticas, mas podia ser muito mais barata e rápida do que o transporte rodoviário de tração animal, permitindo uma circulação de pessoas e mercadorias até então impensável. Assim, as grandes redes de caminho‑de‑ferro aceleraram de forma decisiva uma revolução industrial que tinha começado décadas antes, com os teares mecânicos, as máquinas a vapor e a siderurgia a carvão.

Em pleno século XXI, as vias aquáticas (rios, canais e mares) e a ferrovia continuam a ser meios de transporte estruturantes para as economias nacionais e para a globalização. Apesar da concorrência dos automóveis e aviões, estes modos mantêm uma elevada eficiência energética, sobretudo em grandes volumes de carga, enquanto o transporte rodoviário e aéreo consome quantidades muito elevadas de combustíveis fósseis, principalmente derivados de petróleo, e exige grandes volumes de metais e outros recursos nas suas infraestruturas e veículos.

As estradas asfaltadas e o transporte rodoviário automóvel garantem, por sua vez, uma capilaridade essencial à economia global desde o fim da Segunda Guerra Mundial. É essa malha fina de camiões, furgões e automóveis que liga portos, estações ferroviárias, aeroportos, armazéns e pontos de venda, costurando a logística de última milha que os grandes modos não cobrem diretamente.

O transporte aéreo encurtou drasticamente as ligações logísticas e humanas entre regiões afastadas, sobretudo em rotas intercontinentais e em muitas distâncias de algumas centenas de quilómetros para cima. Ao comprimir o tempo de viagem, redefiniu escalas de decisão política, económica e cultural, tornando plausíveis, por exemplo, reuniões presenciais e cadeias de valor distribuídas por vários continentes.

O transporte aeroespacial mudou ainda mais a perceção que temos do mundo e de nós próprios, permitindo observar o planeta como sistema único e encurtando, de forma invisível, as distâncias entre pessoas, mercadorias e destinos. Sem satélites de telecomunicações, observação da Terra e posicionamento, o comércio eletrónico global, tal como hoje funciona, seria praticamente impossível, e a logística em tempo real perderia grande parte da sua precisão. O comércio em linha representa já uma fração significativa do comércio mundial e continua a crescer, apoiado precisamente nessa infraestrutura orbitante. Em 2024, o comércio eletrónico terá representados, de acordo com algumas estimativas, mais de 20% das vendas globais. Em Portugal, em 2024, cerca de 49% da população com idades entre 16 e 74 anos efetuou compras online, com o peso das vendas online no total das vendas do setor do retalho a situar-se nos 8%. 

Em suma, os sistemas de transporte acima descritos, e a sua articulação – a intermodalidade – constituem a espinha dorsal do desenvolvimento humano contemporâneo e da globalização. Qualquer colapso prolongado de um destes sistemas implicaria transformações profundas, e provavelmente traumáticas, no modelo de civilização que conhecemos.


NOTA

A ferrovia moderna tornada possível pela associação e proximidade geográfica entre as minas de ferro e as minas de carvão de coque ocorreu na Inglaterra, garantindo-lhe a dianteira da Revolução Industrial que mudou o mundo. Sobre este tema recomendo este link.


segunda-feira, julho 21, 2025

É a energia, estúpido!

Sem as fósseis, regressaremos à Idade Média


A percentagem das energias fósseis no total da energia consumida é hoje de cerda de 87%. 

Percebe-se, pois, como é virtualmente impossível substituir integralmente o paradigma energético que está na base da era industrial moderna e contemporânea. As energias renováveis solar e eólica não representam mais de 2,9% do total da energia necessária a manter os nossos hábitos de vida.

Gail Tverberg: With the new methodology, the percentage of energy generated directly by fossil fuels is higher than many of us remember from past reports. The portion of fossil fuel consumption that comes directly from fossil fuel generation has decreased from 94% in 1980 to 87% in 2024. Using the old methodology, the fossil fuel percentage in 2024 would have been 81%.


Se deixarmos a China de lado, as estatísticas mostram que o consumo de energia per capita no resto do mundo tem vindo a cair desde 1979, i.e. durante os últimos 45 anos! 

É aqui que se encontram as causas de fundo do empobrecimento das classes médias, do subsequente definhamento das democracias em todo o mundo, dos novos populismos, do regresso das guerras, tarifárias e militares, bem como de uma crise ideológica e cultural porventura sem precedentes.



O grande salto em frente da economia e do poderio mundial da China deveu-se basicmente ao uso do carvão como sua principal fonte de energia.



Worrying indications in recently updated world energy data
Posted on July 14, 2025, by Gail Tverberg

Gail Tverberg — This analysis confirms what I have shown earlier: The world economy is hitting energy limits in many ways.

https://ourfiniteworld.com/2025/07/14/worrying-indications-in-recently-updated-world-energy-data/


domingo, julho 20, 2025

White men are wordy


Conversa com o LLM Perplexity sobre a necessidade e as limitações da ideologia woke

Prompt

Comente esta afirmação que me ocorreu enquanto lia La Potière Jalouse, de Claude Lévi-Srauss, mais precisamente depois de ter lido a frase “White men are wordy”, atribuída aos índios Menomini:

— O pós-Estruturalismo, de Roland Barthes, Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Judith Butler, Jean Baudrillard, Julia Kristeva e Jacques Rancière representam um regresso, anti-analítico, aos mitos. Nomeadamente ao mito da libertação milenarista por via da razão dialética e da prática da luta de classes, na qual o humanismo é despejado da história humana, com as águas da Revolução. Este fechamento da condição humana é responsável por um atraso assinalável do pensamento construtivo que Lévi-Strauss e Saussure inauguraram e o desenvolvimento posterior das linguagens informáticas e o cálculo computacional prosseguiram conferindo à cultura norte-americana (Estados Unidos), precedida, porém, da filosofia analítica inglesa, uma vantagem bem visível a partir do fim da Segunda Guerra Mundial.

#

Perplexity

Sua afirmação toca em um debate intelectual muito rico e complexo, com várias camadas interessantes. Vou comentá-la ponto a ponto, trazendo contexto, nuances e contrapontos:

(continuação no c blog)

terça-feira, julho 15, 2025

Nem sempre galinha...

D. João V
pintado pelo italiano rococó Pompeo Batoni (1708-1787)

A propósito dos sistemas políticos e das discussões sobre o sexo dos anjos.

Diz-se que o bem parecido e riquíssimo D. João V terá dito ao seu confessor, numa passeata na Tapada de Mafra — o primeiro santuário ecológico (não por projeto, mas por consequência) criado por este rei para alimentar o Convento de Mafra, de água, carne, hortícolas, e prazers vários (eu percorri e brinquei naquele incrível lugar quando não tinha sequer 10 anos de idade!) — a seguinte frase lapidar:

—  "Nem sempre galinha, nem sempre rainha."

Diz-se que a rainha austríaca era muito feia (noblesse oblige), e que o rei teve uma paixão insuperável por uma freira e madre do cistercense mosteiro de S. Dinis em Odivelas — onde a minha irmã estudou sete anos. A Madre chamava-se Paula, e dela o Rei D. João V teve três filhos, que perfilhou e educou com esmero.

Ora bem, os sistemas políticos são teorias. A realidade dos equilíbrios sociais e culturais dos povos é sempre mais variada, rica e complexa. Um cozido à portuguesa pode ser preparado com mais carne de boi e porco, chouriço, moira e farinheira, ou com mais batata, nabo, couve, cenoura e feijão branco. Já o arroz, há quem o prefira simplesmente cozido na água de cozer as carnes, ou antes, como o meu ido Pai, um bom arroz de feijão vermelho. A sopa de cozido, com ou sem pedra filosofal, é matéria consensual.

Ou seja, não existem democracias puras, nem regimes verdadeiramente liberais, e até as ditaduras configuram um menu interminavel de opções, mais ou menos violentas, mais ou menos inteligentes, mais ou menos produtivas. O nosso famigerado Salazarismo, que tirou o país da bancarrota sistémica e da balbúrdia violenta do rotativismo e dos golpes militares, foi, como sabemos, ao longo de 48 anos (menos do que a democracia, agora exangue, que se lhe seguiu) uma ditadura 'suave', quando comparada com a bestialidade franquista, fascista, nazi, estalinista, maoista, e um longuíssimo etc. só no século passado!

Neste momento volta-se a discutir Carl Schmitt (1888-1985) e as suas teorias, como diríamos hoje, 'iliberais' e "soberanistas" Estas defendem, no essencial, a necessidade de os estados definirem claramente o que entendem por ação política e soberania, limitando, por assim, o potencial das democracias agirem no interesse dos povos que representam, especialmente em momentos de especial complexidade (excesso e burocracia, por exemplo), aflição (dívida externa, pública e privada excessivas, por exemplo) e, ou, ameaça externa (dos credores, ou de movimentos geoestratégicos desfavoráveis). Schmitt defendeu a figura de 'estado de exceção' para lidar com estas limitações inerentes às democracias liberais, cujos princípios de racionalidade, por vezes, não conseguem lidar a realidade pura e simples de haver bons e maus no mundo e de, por vezes,  os 'maus' rondarem o nosso quintal com o objetivo de nos roubarem as galinhas, e o galinheiro.

A espécie de guerra civil larvar que decorre atualmente nos Estados Unidos, mas também a emergência convulsiva dos movimentos soberanistas na Europa, que não são apenas populistas, xenófobos e racistas, ou até o pânico que conduziu Vladimir Putin e a Rússia imperial e colonial que ainda subsiste a imporem à Ucrânia, contra todos os Tratados, Acordos e Lei Internacional uma guerra canalha de ocupação e usurpação da soberania aí estabelecida na sequência do colapso da União Soviética (que assim perdeu, de facto, a Guerra Fria contra as tais democracias liberais), são testemunhos em carne viva do que pode ocorrer, nas democracias (Europa ocidental e central, Estados Unidos), tal como nas ditaduras (Rússia), quando sobram problemas de endividamento, perda de competitividade, balbúrdia migratória, e alterações radicais nos paradigmas energéticos, de acesso aos recursos naturais e tecnológicos, coroados por problemas de ordem ambiental e climática, que definem o modo de vida dos povos e das suas nações e estados.

Neste momento, os Estados Unidos estão a operar como um 'estado de exceção', sem precisar, porém, de instituir uma qualquer ditadura. A democracia continua a funcionar, como em nenhuma outra parte do globo, mas as decisões que têm que ser tomadas estão a ser tomadas, tanto no que respeita à poda necessária na paquidérmica burocracia e dispersão de poderes pragmáticos que consomem o Estado, como no enfrentamento das ameaças externas vindas de quem fez mal as contas sobre a verdadeira força imperial dos Estados Unidos e dos seus aliados na Europa e na Ásia. 

O ponto de viragem, ou melhor dito, de consolidação da situação estratégica mundial (uma grande potência dominante chamada Estados Unidos da América) deu-se quando os B2 norte-americanos atacaram o complexo de enriquecimento de urânio (com fins obviamente militares) da ditadura teocrática do Irão. Ficámos desde então a saber que os Estados Unidos podem atacar qualquer buraco ou idiota no mundo sem que os potenciais alvos se apercebam sequer quando e de onde vem o tiro. Os B2 podem transportar não apenas bombas anti-bunker, mas ovigas nucleares táticas. Foi isto que calou as cabeças pensantes de Moscovo e de Pequim. Os resultados desta operação começaram a sair em catadupa e estão longe de terminar. Pequim e Moscovo vão ter que mudar de vida, se quiserem prosperar e regressar a um convívio económico e cultural com o resto do mundo. Os BRICS não contam obviamente neste campeonato.

O que importa hoje discutir, regressando a Carl Schmitt, não é a sua filiação no Partido Nacional Socialista, de Adolf Hitler (a convite de Martin Heidegger), mas o contributo que deu ao pensamento filosófico sobre a ação humana e sobre a ação política em particular. O enquadramento racional de Montesquieu sobre a separação de poderes, e a ideia democrática vista numa perspetiva dinâmica, não estão em causa. Devem, pelo contrário, ser bem defendidos sempre. Mas não à custa da soberania das nações e estados. Encurralar um estado soberano, sobretudo se este for historicamente forte, é sempre uma péssima ideia. O erro do Tratado de Versalhes (1919), que ditou uma política de reparações draconianas à Alemanha empurrou a Europa para a Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos nunca assinaram o Tratado de Versalhes. Seria bom que a Europa não esquecesse esta lição quando for preciso gerir a implosão da Federação Russa.

sexta-feira, junho 13, 2025

Somos todos pretos

Mapa completo: Wikipédia


A costela negra do português

Todos temos (pelo menos uma) costela da África subsariana. E o resto da humanidade moderna, também.

Não apenas desde há 150 mil anos para cá, mas também por via dos contatos múltiplos havidos entre europeus e africanos desde a Antiguidade (fenícia, grega, romana), e depois, desde o século 15 da nossa era até hoje.

No caso português, a mestiçagem está na origem da sua formação cultural e depois religiosa e política, desde a chegada dos celtas, dos povos germânicos, dos vikings e dos mouros muçulmanos. E tornou-se política oficial do reino desde Afonso de Albuquerque (Vila Verde dos Francos ou Atouguia da Baleia, c. 1452–1462 – Goa, 16 de Dezembro de 1515), instalando-se na cultura portuguesa até hoje. Ao contrário dos muçulmanos e judeus, os cristãos portugueses, e por inerência cultural, os ateus e agnósticos portugueses, não estabeleceram nunca, nem estabelecem hoje, algum tabu contra o casamento entre pessoas de origem, estatura, aparência e tradições, nomeadamente religiosas, diferentes. Só assim se explica como foi possível ao milhão de habitantes de uma nação cujo estabelecimento (Condado Portucalense) contava em 1415 (data da conquista de Ceuta) mais de cinco séculos de existência, mas escassamente povoado (durante toda a expansão ultramarina, a população portuguesa oscilou entre um milhão e um milhão e duzentas mil almas), estabelecerem um império global tão vasto durante os séculos 15 e 16.

Significam estes factos que não somos racistas? Depende da definição de racismo. 

O atavismo étnico, que já é uma evolução do atavismo gentílico, é cultural, não é natural. Prende-se, sobretudo, à lógica de formação e preservação das famílias humanas.

Por ser uma espécie de defesa ancestral da integridade das comunidades e dos seus recursos vitais, esta herança cultural manifesta-se frequentemente sempre que famílias, tribos, nações, estados, impérios, se vêem ameaçados na sua estabilidade económica e felicidade por causas que, na generalidade, desconhece, procurando, por causa deste desconhecimento, bodes expiatórios. A xenofobia e o racismo, mas também a falocracia e o patriarcado, surgem frequentemente neses momentos críticos das comunidades como escapismos inevitavelmente míopes, injustos e intrinsecamente violentos.

O documentário "A origem do homem (The real Eve)", realizado com base nas investigações de Stephen Oppenheimer, é uma boa introdução à desmistificação das teorias raciais de origem europeia estabelecidas sobretudo durante o século 19.

PS: vi no FB uma notícia mal amanhada sobre este mesmo assunto com uma imagem IA que nada tem que ver com a descoberta arqueológica.

O Homem Atlântico

Múmia natural de 7 mil anos encontrada na caverna de Takarkori, sul da Líbia
Archaeological Mission in the Sahara, Sapienza University of Rome.

O homem atlântico pertence a uma linhagem de povos única, oriunda do noroeste de África (cordilheira do Atlas) e da Península Ibérica, ainda que com características herdadas de outros povos antigos e modernos que migraram um dia em direção a esta região, sejam os da África Subsariana, sejam os povos da Europa do Norte, Central, Escandinava e de Leste.

O nosso saber sobre o passado, como o nosso saber sobre o futuro têm ambos fragilidades evidentes. E sempre foi assim. O que não implica que saibamos hoje menos do que ontem...

Citação de um artigo da Nature

Published: 02 April 2025

Ancient DNA from the Green Sahara reveals ancestral North African lineage

Nada Salem, Marieke S. van de Loosdrecht, Arev Pelin Sümer, Stefania Vai, Alexander Hübner, Benjamin Peter, Raffaela A. Bianco, Martina Lari, Alessandra Modi, Mohamed Faraj Mohamed Al-Faloos, Mustafa Turjman, Abdeljalil Bouzouggar, Mary Anne Tafuri, Giorgio Manzi, Rocco Rotunno, Kay Prüfer, Harald Ringbauer, David Caramelli, Savino di Lernia & Johannes Krause 

Nature volume 641, pages144–150 (2025)

ABSTRACT

Although it is one of the most arid regions today, the Sahara Desert was a green savannah during the African Humid Period (AHP) between 14,500 and 5,000 years before present, with water bodies promoting human occupation and the spread of pastoralism in the middle Holocene epoch. DNA rarely preserves well in this region, limiting knowledge of the Sahara’s genetic history and demographic past. Here we report ancient genomic data from the Central Sahara, obtained from two approximately 7,000-year-old Pastoral Neolithic female individuals buried in the Takarkori rock shelter in southwestern Libya. The majority of Takarkori individuals’ ancestry stems from a previously unknown North African genetic lineage that diverged from sub-Saharan African lineages around the same time as present-day humans outside Africa and remained isolated throughout most of its existence. Both Takarkori individuals are closely related to ancestry first documented in 15,000-year-old foragers from Taforalt Cave, Morocco, associated with the Iberomaurusian lithic industry and predating the AHP. Takarkori and Iberomaurusian-associated individuals are equally distantly related to sub-Saharan lineages, suggesting limited gene flow from sub-Saharan to Northern Africa during the AHP. In contrast to Taforalt individuals, who have half the Neanderthal admixture of non-Africans, Takarkori shows ten times less Neanderthal ancestry than Levantine farmers, yet significantly more than contemporary sub-Saharan genomes. Our findings suggest that pastoralism spread through cultural diffusion into a deeply divergent, isolated North African lineage that had probably been widespread in Northern Africa during the late Pleistocene epoch.