O fruto da imortalidade
A China, depois de um programa parcialmente financiado pelo Estado Chinês e pelo Japão no início da década de 70, chegou ao final do século 20 como o maior produtor de maçãs do planeta: 40% da produção mundial; e 50% da produção conjunta dos 10 maiores produtores do mundo (China, EUA, Turquia, Irão, França, Polónia, Federação Russa, Itália, Alemanha, Argentina e India). O facto só é importante porque, se exceptuarmos o chá, este é um dos primeiros símbolos visíveis da qualidade e baixo preço dos produtos chineses que chegarão, a partir de agora, com a maior naturalidade (!) às prateleiras generosas do nosso consumismo. Esqueçam as lojas de lixo chinês. A qualidade desta gente vem aí à velocidade dos Airbus A 380!Xangai 1999
Visitei pela primeira vez a capital comercial da China numa missão muito peculiar: descobrir se existia ou não uma vanguarda estética emergente no burburinho que então se começava a ouvir em volta da chamada arte chinesa contemporânea. Fora convidado para comissariar uma bienal de arte na cidade da Maia (de facto, um subúrbio cada vez mais embebido na malha urbana da Área Metropolitana do Porto) e a minha proposta passava por uma receita simples, mas que poderia transformar o evento num dos nós que fazem a actual rede planetária de bienais de artes plásticas: convidar, do meu comissariado em diante, uma grande metrópole mundial em cada edição da Bienal da Maia. Primeiro, Xangai. Depois, S. Paulo, Nova Dehli, Mexico DF, Lagos, etc... A receita não surtiu o efeito esperado e a bienal, nas edições subsequentes, definhou no eclectismo e nas meias tintas típicos do porreirismo lusitano. Mas o ponto desta referência é outro. Durante a primeira estadia em Xangai, a mais ocidental urbe chinesa, colonizada por franceses e ingleses, nas décadas de 30 e 40 do século passado, fiquei a saber onde Ridley Scott teria ido buscar os ambientes de Blade Runner... Uma Nova Iorque de tamanho real, mas de plástico, dourada, irreal, povoada por 15 milhões de formigas humanas e alguns milhares de Volkswagen Santana, de todas as cores metálicas possíveis e imagináveis, soando a lata de brinquedo electrónico, correndo entre milhões de bicicletas, carrinhos de mão apinhados de tralha, polícias sinaleiros e bandos de transeuntes em inacreditáveis agitações brownianas. O contraste entre os ambientes requintados dos hoteis de 5 estrelas e o resto da cidade, cujos hábitos culturais (por exemplo, de higiene) continuam a exibir uma marca bem camponesa, era abissal. Visitei museus, livrarias, estúdios de artistas e universidades de arte, de arquitectura e de têxteis. O ambiente, intenso mas espartano, de uma aula de dança (onde ter lugar é já de si prova de enorme esforço e vontade), numa escola velha, muito húmida e fria, às 9h30 da manhã, ficou inscrito na memória como um sintoma desse mistério chinês que apoquenta cada vez mais o Ocidente: uma vontade enorme de superar a miséria; saltar directamente do atraso medieval e do pesadelo maoísta para a sociedade do consumo, da tecnologia e da moda. Dos artistas contemporâneos, estratificados literalmente segundo os períodos da historiografia estética euro-americana (do Impressionismo aos restos do pós-Conceptualismo, passando por um intenso período Pop, tipicamente pós-Maoista), fiquei a saber, sobretudo depois de conhecer Zhou Thieai e a sua obra, que pressentiam já as suas futuras responsabilidades num mundo efectivamente à sua espera, mas cujos protocolos de linguagem só muito superficialmente podiam ser partilhados. Depois de Tianamen, a censura política voltava a regular as consciências no vasto Império do Meio. Apesar dos esforços contra a burocracia e a corrupção, persiste um autoritarismo invisível mas eficaz. Censura-se a Internet, censuram-se os média tradicionais (jornais e televisões), pouco se sabe dos novos e dramáticos fenómenos de desemprego, perseguem-se todas as formas de agregação ideológica independente, em suma, a arte pós-contemporânea chinesa está a braços com uma verdadeira crise cultural. Contém no seu seio uma potente energia criativa, mas teme desabrochar no seu próprio território, preferindo emigrar, quando pode, para Paris, Nova Iorque, Londres ou Berlim. Este assunto já era importante em 1999, como também percebera à época o agora desaparecido Harald Sczeeman, mas passou completamente ignorado entre os portugueses. Aturdidos pela sua insignificância, preferiram continuar a fazer salamaleques ao mimetismo tardio do museu de Serralves, bem como continuar a subsidiar a insustentável estupidez do Centro Cultural de Belém.
Xangai 2000
Voltei a Xangai no ano que se seguiu à bienal. Desta vez, a convite das autoridades chinesas, que retribuiram com a maior cordialidade o investimento da Maia. Foram dias de puro prazer! Tive então tempo de ver como Pudong, a antiga margem agrícola de Xangai, se transformara, em menos de uma década, num dos maiores centros de negócios do planeta. Um novo aeroporto, ligado ao centro da cidade por um serviço ferroviário de alta velocidade (35 Km em 8mn), ambos de concepção francesa, simboliza a verdadeira ambição de Xangai: tornar-se a principal metrópole comercial do Oriente! Em Pudong percebe-se o renascimento da China, feito de requinte tecno-oriental e de ansiedade cosmopolita, longe já dos rituais pautados por Hong Kong (cujo Governador acaba de ser demitido por manifesta falta de competência pós-colonial...) Como em Nova Iorque, os melhores restaurantes ficam invariavelmente depois do sétimo andar (de preferência no último) de um qualquer edifício de prestígio. Não me lembro do que comi, pois era, na realidade, gastronomia ocidental; não me lembro do ano vinícola do Bordeaux que escorreu dos nossos copos; mas lembro-me da atmosfera funcional e elegante do lugar, e dos rapazinhos chineses, impecavelmente vestidos de preto, que assessoravam com grande profissionalismo a bicha inglesa encarregada daquela sedutora orquestra. Noite dentro, uma outra Xangai emerge... Os bares cheios de raparigas de olhos sorridentes. Os ocidentais de meia idade, prontos a morrer a qualquer instante naqueles delicados braços de porcelana. As máfias da noite exibindo os seus Mercedes, Porche e Ferrari, como num episódio de Miami Vice. Mais tarde ainda, levado por algum intermediário simpático, visito as caves da mais solícita luxúria. Resisto, sorrio sempre, e ofereço cervejas Tiger aos circunstantes. Na manhã seguinte, depois de inspeccionar o buffet chinês, opto, uma vez mais, pelo pequeno almoço ocidental: ovos estrelados e toucinho fumado, sumo de laranja, água mineral, fatias de pão integral e chá preto. Os chineses que me acompanham fazem uma mistura de iguarias que não me atrevo a pormenorizar. Tinha levado comigo uns charutos cubanos comprados em Madrid (uma caixa de Famosos e seis inexcedíveis Fundadores), que partilhei com os meus anfitriões, obsessivos fumadores de cigarros.
Momentos memoráveis: um banquete chinês oferecido a três mil convidados na grande torre da televisão de Xangai, a que se seguiu um inesquecível passeio de barco no atarefado rio que atravessa a cidade. Na minha mesa há russos, alemães (se bem me lembro), três portugueses e dois chineses. Um dos chineses é uma autoridade (de província, suponho), e por cada vez que decide provar um intragável Cabernet Sauvignon made in China, faz-se silêncio, até que os russos entendam que é preciso fazer uma pausa na conversa, ou na mastigação, e brindar. Brindámos uma dúzia de vezes, pelo menos! Outro momento de antologia passou-se numa loja de chás, seguramente só para ricos, onde me foram dados a provar alguns dos melhores chás verdes da China. Ali percebi que havia de facto uma velha civilização chinesa à nossa espera. Comprei, entre explicações sucintas sobre o que faz realmente a qualidade de um bom chá (a quase ausência de cor, aroma e sabor muito delicados e duradouros...), duas porções escassas do precioso produto. Cada pacotinho de 50gr. custou mais de 15 Euros. O funcionário que me acompanhou nesta sessão de compras precisaria então de três salários mensais para pagar um quilo de qualquer uma daquelas bolinhas pálidas de chá. Fiquei depois a saber que alguns dos chás verdes, os oolong e os semi-pretos, de acesso reservado (quase sempre, por deferência muito especial das autoridades chinesas) chegam aos milhões de dólares por quilograma. E que outros há definitivamente inacessíveis aos mortais da nossa espécie, aplicando-se expeditamente a pena capital a quem ousar traficar com esta espécie de ouro leve, cultivado por mãos eleitas, nos Jardins Sagrados da China. Derradeiro facto memorável: paguei uma exorbitância alfandegária pelo excesso de bagagem provocado pelas inúmeras prendas recebidas das autoridades chinesas!
A provocação estatística de Belmiro
Esta crónica chinesa tem menos que ver com o facto de eu ter nascido em Macau, originalidade que gosto de exibir como marca de cosmopolitismo congénito, do que com a incorrígivel mania de querer emendar o País. Lutei contra a ditadura de Salazar e Caetano, fui trotskysta no momento próprio e voltei a preocupar-me com a Política quando o execrando Santana Lopes assomou ao poder deste País. Entretanto, o PS e a esquerda em geral ganharam as eleições. Ainda bem. Falta saber o que vai o Partido Socialista fazer com a extraordinária maioria que lhe foi oferecida. Num debate televisivo sobre o day after, nas difíceis circunstâncias em que nos encontramos, Belmiro de Azevedo lançou uma provocação oportuna e disse um grande disparate. Quando exclamou que, num Governo com menos pastas (por exemplo, sem secretarias de Estado) há menos probabilidade de errar, foi sibilino, confrontando José Sócrates com a necessidade implícita de explicar ao país a orgânica do futuro governo. A moral desta anedota tem sobretudo que ver com uma questão mais geral: a da necessidade de emagrecer o Estado, socorrendo-se, por exemplo, do mecanismo proposto pelo Bloco de Esquerda, chamado orçamento zero. Precisamos de menos Estado, mas também de melhor Estado. Precisamos, como dizia Manuel Alegre, de um Estado Estratégico. E precisamos tanto mais desta reformatação do Estado quanto, ao contrário do que afirmou Belmiro de Azevedo, a economia portuguesa depende muito menos dos empresários portugueses do que de uma acertada e sustentada estratégia governamental. O Estado não tem que se imiscuir nos negócios privados, é certo, mas tem que veicular regras cujo acerto depende exclusivamente da presença ou ausência de uma autêntica inteligência governamental. Se pensarmos nos casos irlandês, finlandês, ou chinês, ou ainda nos libérrimos Estados Unidos da América, constataremos que em todos eles a política governamental exerce um protagonismo decisivo na evolução das respectivas vidas económicas. O caso das maçãs Fuji é, por conseguinte, muito diferente do laissez faire sugerido pelo grande merceeiro lusitano.
Lisboa uma das mais competitivas metrópoles europeias?
A crise actual é antes de mais uma crise do modelo social de desenvolvimento a que nos habituámos ao longo dos últimos quinhentos anos. Desde o período das Descobertas que vivemos de uma produtividade expedita e maioritariamente alheia: as especiarias da India, os escravos de África, o ouro do Brasil, a colonização africana que se seguiu à Conferência de Berlim (até 1974), as sucessivas vagas de emigração para a América, e depois para a Europa, o turismo vândalo e, finalmente, os fundos comunitários. Esta sucessão de ciclos indolentes, essencialmente apoiados no triunfo de uma espécie de esperteza saloia, bronca e avessa ao Conhecimento e à Organização, chegou ao fim. Agora, ou mudamos ou passamos à história. O nosso destino depende, pela primeira vez em muitos séculos, daquilo a que Fernando Pessoa poderia ter chamado um factor de iluminação própria. Somos nós, e mais ninguém por nós, que teremos que saber encontrar, muito rapidamente, uma visão clara do futuro. A questão é demasiado importante para ser entregue aos economistas, ou mesmo aos políticos. Precisamos de uma origem mais forte para a solução das nossas dificuldades. A noção de povo eleitor poderia ser um princípio de solução... Por outro lado, precisamos de meia dúzia de ideias claras, simples e ambiciosas, para reencontrar o nosso caminho. A ficção do crescimento não passa disso mesmo, de uma ficção. O objectivo de Portugal não pode confinar-se a uma engenharia económica e social para a satisfação de uma minoria alargada de insaciáveis consumistas. O alvo tem que ser mais amplo e generoso. Mais inteligente e ambicioso. Mais convincente e eficaz. Não pode apostar nem na ignorância, nem na sobre-exploração dos recursos naturais e humanos, nem nas nossas proverbiais aptidões comerciais. Precisamos, isso sim, de encontrar a nossa maçã Fuji. Precisamos, por outro lado, de saber onde está o efectivo centro de gravidade do País.
ecotec: o Grande Estuário
Para governar bem é essencial fazer escolhas, decidir e executar. No caso, o futuro Governo tem toda a legitimidade para seguir em frente. Ninguém o desculpará se falhar nos sinais que vier a dar à comunidade nos próximos três meses. E que sinais poderemos esperar de José Sócrates e do seu Executivo? Francamente não sei. Mas creio saber uma coisa: precisamos de definir, no máximo, seis ou sete objectivos colectivos muito claros e mobilizadores. Quais serão eles? Apenas posso dar a minha opinião...
O principal problema da humanidade nos próximos 30 anos vai ser o problema combinado da mudança do paradigma energético e da sustentabilidade geral do sistema económico-social. Até ao final deste século, vamos ter que substituir o petróleo e o gás natural por energias renováveis (solar, hídrica, eólica, marítima, bio-diesel, despolimerização térmica e... fusão nuclear), e muito antes de 2030 poderemos assistir a verdadeiros dramas mundiais por causa das guerras territoriais em torno das regiões onde subsiste a metade remanescente da herança carbónica que temos vindo a usar intensamente desde de 1930. Se houver um curto-circuito energético global muito acentuado no decurso da próxima década, poderemos assistir à interrupção catastrófica da globalização capitalista actualmente em curso, com custos económicos e humanos imprevisíveis. Assim sendo, quer a Europa, quer cada uma das suas regiões e países tem que se preparar, desde já, para o que eu chamaria um regime de sustentabilidade forçada, i.e., no limite, cada país e região terá que se preparar para atravessar um período de seca energética e escassez abrupta de matérias primas oriundas do petróleo e do gás natural (pesticidas, remédios, vernizes, decapantes, pásticos, etc.), o qual pode muito bem vir a durar toda a segunda metade deste século!
Uma das consequências da seca energética e da extinção acelerada dos fósseis carbónicos e do gás natural será o colapso dos sistemas de transportes dependentes deste tipo de energias e matérias primas. A gasolina, o gasóleo, o ferro, os plásticos e muitos outros recursos não renováveis tornar-se-ão incrivelmente caros por volta de 2020, ou mesmo antes. Como consequência, o comércio mundial afundará numa série de crises cada vez mais profundas. Os mercados financeiros poderão, pura e simplesmente, pulverizar-se. E a probabilidade de conflitos bélicos de larga escala (nucleares, químicos e biológicos) aumentará exponencialmente. Assistiremos, em suma, a deslocações massivas de populações em direcção às grandes cidades e a todos os entrepostos comunicacionais. Prioridades para Portugal? As que se seguem, parecem-me inevitáveis.
Preparar as grandes cidades, Lisboa e Porto, para este cenário.
Criar redes de mobilidade humana e comercial de mercadorias altamente eficazes, velozes e sustentáveis em termos energéticos.
Conferir poderes excepcionais de planeamento e execução às regiões do Norte e de Lisboa e Vale do Tejo.
Dar prioridade absoluta ao desenvolvimento estratégico de Lisboa nos próximos 20 anos, começando por alargar o respectivo centro de gravidade à margem Sul do Tejo (perpendicularmente ao eixo compreendido entre a Trafaria e Alcochete).
Concentrar o máximo de recursos financeiros disponíveis em parcerias estratégicas internacionais, a sediar no nosso país, dedicadas ao desenvolvimento científico e tecnológico das energias alternativas e ao desenho experimental de sociedades pós-industriais e pós-carbónicas.
Para aqui chegar proponho, desde já, um objectivo táctico imediato: preparar uma candidatura aos Jogos Olímpicos de 2020 assente numa filosofia eco-tecnológica rigorosa.
No plano social, à semelhança do Banco Alimentar contra a Fome, deveríamos criar um grande Banco de Horas, dedicado a rentabilizar um recurso imenso e completamente desperdiçado: o tempo dos reformados, o tempo dos desempregados, o tempo dos que procuram o primeiro emprego, o tempo de quem gostaria de fazer algo mais, para além a sua particular rotina de trabalho convencional. O tempo da solidariedade e do compromisso civilizacional...
Sem querer ser pioneiro em coisa alguma, sempre adianto que levo estas ideias muito a sério desde há algum tempo. Em estreita parceria com o arquitecto Carlos Sant'Ana e um bom grupo de colaboradores, comecei mesmo há cerca de quatro meses um projecto cujas preocupações vão neste mesmo sentido. Chama-se o Grande Estuário e poderão acompanhá-lo no sítio web que entretanto estamos a montar para a sua melhor difusão na comunidade. LINK
Na China, o fim das refeições é frequentemente assinalado pela presença de pedaços de melancia e de maçã. A melancia simboliza a saúde e a energia, a maçã, representa a imortalidade. Curiosamente, os chineses de hoje, conscientes da cientificidade do chamado Pico de Hubbert (que atribui ao petróleo uma vida útil de 100 anos...), acabam de eleger a questão da sustentabilidade como uma das suas grandes prioridades estratégicas. Não foram os principais esbanjadores de energia e de matérias primas. Mas talvez possam vir a ser os mais importantes protagonistas no inadiável esforço de transição para uma globalização pós-carbónica e pós-consumista.
O-A-M #71 28 Fev 2005