terça-feira, janeiro 05, 2021

A esquerda é um fóssil

 

“Eu queria pintar o nada. Estava em busca de algo que fosse a essência do nada, e lá estava.”
Andy Warhol


...e o radicalismo político do século 21, inconsequente e pueril. 

A rebelião propagada ao longo da década que finda não tem finalidade que valha a pena e se veja para lá da ansiedade egocêntrica dos seus protagonistas. Mesmo o radicalismo ecológico parece ser demasiado vesgo e narcisista para ser levado a sério. Precisamos, pois, de uma nova metafísica capaz de superar o egoísmo humano e que de algum modo refaça a simbiose entre o humanismo exacerbado (que é uma óbvia falsa consciência das coisas) e o não humano de que somos uma das manifestações possíveis.

O populismo atual, à esquerda e à direita, é uma resposta objetiva à corrupção das democracias modernas e ao colapso da modernidade unilateralmente laica. Por outro lado, a chamada superioridade moral da esquerda, se bem observada, verifica-se não ser mais do que uma ideia-fóssil. Em primeiro lugar, porque o proletariado morreu, e em segundo, porque a pequena-burguesia intelectual urbana, portadora do chamado pensamento politicamente correto, está a ser dizimada pela mesma máquina capitalista que destruiu o pilar número um da revolução socialista, isto é, o trabalho humano — progressivamente substituído por máquinas, por robôs cada vez mais inteligentes, e pela cibernética.

“Proletários de todo o mundo, uni-vos!” 

resume a mensagem essencial do Manifesto do Partido Comunista numa era em que a revolução industrial dava origem à maior migração alguma vez ocorrida na história da humanidade. Esta migração teve lugar do campo para a cidade, em sucessivas grandes ondas, a primeira das quais na Europa ocidental a na América do Norte, ao longo da segunda metade do século 19 e o primeiro quartel do século 20, depois no resto do continente americano, sobretudo na primeira metade do século 20, e finalmente na Ásia ao longo da segunda metade do século 20 e primeiro quartel do século em que estamos. Duvido que a África venha a passar pelo mesmo processo, não só porque o modelo de crescimento dos últimos duzentos anos se esgota no esgotamento da exploração das energias fósseis, e no colapso ecológico em curso, mas também por razões de ordem cultural. Esta é, aliás, a origem da explosiva pressão migratória do novo gigante demográfico sobre a Europa, à qual os partidos políticos tradicionais e as ideologias universitárias de bolso não têm sabido dar resposta. Revelam, aliás, para além do maniqueísmo habitual, ou do pietismo inconsequente de António Guterres e do papa Francisco, uma total incapacidade de pensar neste imenso problema.

À medida que este movimento browniano de populações proliferou, depois da disseminação da máquina a vapor, cresceram as chamadas revoluções proletárias, quer na forma violenta e insurrecional, quer na forma de greves, negociações sindicais e legalização de partidos de esquerda (social-democratas, socialistas, comunistas). A extrema-esquerda que emerge na Europa a partir dos anos 60 do século 20, apesar de ideologicamente vinculada à literatura marxista, e das suas fortíssimas ligações universitárias aos movimentos anti-coloniais que se irão suceder à independência da Índia contemporânea (1947), já não faz propriamente parte dos movimentos proletários, configurando antes uma agenda tipicamente pequeno-burguesa associada ao desenvolvimento do capitalismo pós-industrial, basicamente assente na produção simbólica e intelectual, na economia de serviços e no consumo — nomeadamente no consumo conspícuo e desmiolado. Em suma, quando hoje olhamos para o Partido Comunista Português estamos, na realidade, a observar um fóssil. 

O proletariado, mesmo nos chamados países socialistas, onde esteve invariavelmente submetido a ditaduras centrípetas, herdeiras do despotismo asiático, e onde nunca houve direito à greve, nem muito menos luta de classes (1), foi dando lugar a máquinas cada vez mais inteligentes e 100% dóceis, preenchendo assim o novo vazio demográfico provocado pela rápida destruição da família tradicional e pelo envelhecimento humano. O exemplo mais flagrante desta metamorfose é a China comunista, onde o PCC, pelo uso esmagador do milenar despotismo asiático, associado à importação canina dos piores modelos de exploração e especulação capitalistas, acelerou, como em nenhum outro caso, ou seja, em apenas quarenta anos (1960-2001), a transição de uma sociedade miserável, maioritariamente campesina, para uma mole social pós-industrial. Pelo meio, existiu uma brevíssima e brutal fase industrial clássica, sem regras, predadora, mas também suicida, pois o pico petrolífero na China obrigaria o país a uma utilização super-intensiva do carvão enquanto principal energia do seu explosivo desenvolvimento económico. A expansão exponencial e exponencialmente rápida do consumo, sobretudo nas grandes metrópoles que entretanto nasceram como cogumelos numa manhã de outono, trouxe consequências letais não só para a China, mas também para o resto do mundo, como a presente pandemia atesta tragicamente.

Na China comunista, o proletariado revolucionário nunca existiu. 

Os operários industriais chineses do século 20 estiveram sobretudo ao serviço da agenda nacionalista do seu novo mandarim, Mao Tse Tung, sem nunca terem alguma vez beneficiado de quaisquer liberdades ou direitos por si mesmos conquistados. Por sua vez, a maioria dos operários chineses de hoje caminha rapidamente para uma transmutação, tal como no resto do mundo desenvolvido. Esta metamorfose robótica é, por sinal — e daí o nervosismo crescente de Xi Jinping)—, a maior fragilidade do regime chinês depois de Deng Xiaoping, habituado desde sempre a uma ou outra forma de escravatura e humilhação dos mais fracos. A China depende hoje criticamente de uma expansão imperial, porque precisa de trabalho escravo que escasseia no seu país, e porque precisa de energia e matérias primas abundantes que escasseiam no seu país. Acontece, porém, que o imperialismo benigno que a burocracia chinesa deseja, é altamente improvável no estado a que o mundo dos humanos chegou. Falta apenas saber se, para aceitar esta realidade, a China vai ou não forçar uma guerra mundial.

A esquerda ocidental está enredada nas aporias que criou e deixou crescer desde Auschwitz e Hiroshima.

Não percebeu, por isso, que o radicalismo francês, e mais tarde alemão, do pós-guerra, assentou numa base teórica e psicológica muito frágil. O seu anti-humanismo antropocêntrico e moderno não soube tirar as lições das sucessivas carnificinas da primeira metade do século 20. Em suma, a esquerda pseudo-marxista nascida do existencialismo sartriano refugiou-se no narcisismo ideológico e numa espécie de hipocrisia e obscenidade compulsivas, oportunistas e palavrosas.

Como escreve Graham Harman (2), “Radical politics as we know it is an outgrowth of modern philosophy with its modern idealism, and hence is unlikely to service much longer than modern philosophy itself.”


NOTAS

1. A explicação lógica é esta: no socialismo não há qualquer motivo para a luta de classes, menos ainda para greves!

2. Harman, Graham. Object-Oriented Ontology, A New Theory of Everything (2018)


sexta-feira, janeiro 01, 2021

Da utopia 2.0 à extinção

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Neste blog o tema do colapso do homem moderno é, por assim dizer, recorrente e certamente influenciado por muitas leituras, desde The Limits to Growth (Meadows, Donella H et al., 1972) até à Teoria Ator-Rede de Bruno Latour, Michel Callon e John Law, passando pela desmontagem dos mitos em volta do homem moderno e das suas ciências e utopias políticas realizada por Jean-Francois Lyotard. Por um lado, a civilização industrial assente no uso de fontes abundantes de energia, altamente calóricas, facilmente transportáveis e baratas (carvão, petróleo, gás natural) ao longo de dois séculos de extraordinário crescimento e desenvolvimento tecnológico, encontra-se hoje confrontada com os limites ao crescimento impostos quer pelo fim do acesso fácil àquelas três energias fósseis, quer pelos efeitos da queima destes fósseis na composição da atmosfera. Por outro lado, a perceção de que a ação humana, sobretudo das sociedades mais ricas, mais produtivas, mais cultas e tecnologicamente mais avançadas, poderá estar na origem duma extinção em massa da vida existente no planeta, precedida por crises violentas e mesmo colapsos de cidades, países e regiões geográficas inteiras é, em si mesma, um desafio à qualidade e autoridade da racionalidade do homem moderno (1).

Perante este desafio sem precedentes, dada a sua escala planetária e a destruição dos equilíbrios naturais causados pelo homem moderno naquela fina película de vida que recobre o planeta (a que Latour chama zona crítica), parece haver dois tipos de resposta dominante: a de curto e médio prazo, que passa pela chamada agenda ecológica, cujos pontos críticos são a decisão de abandonar as energias fósseis e o controlo e limitação dos acessos aos recursos naturais disponíveis (pela via da monitorização e de leis de restrição às capturas e extrações); e a de médio e longo prazo, que passa pela descoberta de novos continentes de energia e matérias primas, a que Rory Rowan chama futurismo colonial.

Embora a espuma dos dias nos entretenha com futebol e coscuvilhice politiqueira, a verdade é que o nosso país tem vindo a apostar nas duas vias de mitigação potencial de uma crise que se aproxima com a força dum maremoto, seja pela aposta nas energias eólica e voltaica, nos metais raros (lítio, por exemplo) e no hidrogénio, seja, mais silenciosamente, pela preparação de uma nova aventura colonial precedida dum período de descobertas e exploração. Estas duas novas epopeias em surdina são, por um lado, a conquista do espaço, desde logo pela necessidade urgente de o libertar de uma crescente poluição aeroespacial, e a conquista da profundidade oceânica, onde se espera encontrar um novo e imenso manancial de espécies vivas, de minerais e de novas matérias primas (2). Interessa notar, desde já, que o arquipélago dos Açores, a par da extensão previsível da Platafoma Continental portuguesa, são o novo mare nostrum e a nova terra incognita que poderão oferecer ao nosso país uma segunda grande oportunidade de vencer a sua atual pequenez e pobreza relativas.

A grande dúvida reside, porém, na qualidade destas estratégias de mitigação. Haverá alguma consistência nos seus pressupostos, ou não passarão duma fuga em frente onde se misturam business as usual, especulação e wishful thinking?

NOTAS

1. 2020: The Year Things Started Going Badly Wrong

Posted on December 23, 2020 by Gail Tverberg

The economy is like a down escalator that citizens of the world are trying to walk upward on. At first the downward motion of the escalator is almost imperceptible, but gradually it gets to be greater and greater. Eventually the downward motion becomes almost unbearable. Many citizens long to sit down and take a rest.

In fact, a break, like the pandemic, almost comes as a relief. There is suddenly a chance to take it easy; not drive to work; not visit relatives; not keep up appearances before friends. Government officials may not be unhappy either. There may have been demonstrations by groups asking for higher wages. Telling people to stay at home provides a convenient way to end these demonstrations and restore order.

But then, restarting doesn’t work. There are too many broken pieces of the economy. Too many bankrupt companies; too many unemployed people; too much debt that cannot be repaid. And, a virus that really doesn’t quite go away, leaving people worried and unwilling to attempt to resume normal activities.

Some might describe the energy story as a “diminishing returns” story, but it’s really broader than this. It’s a story of services that we expect to continue, but which cannot continue without much more energy investment. It is also a story of the loss of “economies of scale” that at one time helped propel the economy forward.

(...)

With diminishing returns everywhere and inadequate sources of very inexpensive energy to keep the system going, major parts of the world economic system appear headed for collapse. There doesn’t seem to be any way to keep the world economy growing rapidly enough to offset the down escalator effect.

Citizens have not been aware of how “close to the edge” we have been. Low energy prices have been deceptive, but this is what we should expect with collapse. (See, for example, Revelation 18: 11-13, telling about the lack of demand for goods of all kinds when ancient Babylon collapsed.) Low prices tend to keep fossil fuels in the ground. They also tend to discourage high-priced alternatives. Unfortunately, all the wishful thinking of the World Economic Forum and others advocating a Green New Deal does not change the reality of the situation.

https://ourfiniteworld.com/2020/12/23/2020-the-year-things-started-going-badly-wrong/

2. “Beyond Colonial Futurism: Portugal’s Atlantic Spaceport and the Neoliberalization of Outer Space”

In November 2016 Portugal’s Ministry of Science, Technology, and Higher Education announced plans to open the Atlantic Spaceport, a logistics site for commercial space launches. Located in the Azores, a mid-Atlantic archipelago and autonomous region of Portugal, the Atlantic Spaceport is the lynchpin of national and European attempts to make the country an “innovation hub” for the fast-growing commercial space sector. With these plans, the Portuguese state, and its backers at the European Space Agency, are seeking to position the country as a player in the neo-liberalization of outer space, whereby the governance of space is restructured around the growth of private industry and a gradual shift from space exploration to space exploitation.

Understood within the context of Portugal’s post-financial crisis economic policy, the Atlantic Spaceport takes its place amongst other attempts to stimulate growth by drawing on the country’s colonial territories and relationships with former colonies—from “golden visa” programs offering residency to wealthy Brazilians investing in Portuguese real estate and courting investment from oil-rich Angolans, to the hotly contested plans to offer deep-sea mining concessions of the Azores’ coast. However, in official discourses Portugal’s venture into the commercial space sector is framed in terms of international cooperation, scientific collaboration, and economic development with the Atlantic Spaceport, positioning the country as a geopolitical pivot between Global North and Global South, with its colonial history figured as the launchpad for techno-futurist imaginaries of human life in space.

This lecture seeks to use the Atlantic Spaceport as a lens through which to explore the deep entanglement of colonial imaginaries and neoliberal governance in the context of European space exploration, rather than in the more familiar setting of American final-frontierism. It argues that only by understanding the ways in which contemporary visions of off-Earth futures are constitutively bound up with patterns of colonial thinking, capitalist accumulation, and neoliberal governance is it possible to imagine these futures otherwise and to develop modes of thought and practice whereby the promise of space exploration as a vector of freedom and justice – both on and off-Earth – might be realized.

—in e-flux lectures: Rory Rowan, “Beyond Colonial Futurism: Portugal’s Atlantic Spaceport and the Neoliberalization of Outer Space”

Published on April 18, 2018


Beyond Colonial Futurism
https://www.e-flux.com/video/198108/e-flux-lectures-rory-rowan-beyond-colonial-futurism-portugal-s-atlantic-spaceport-and-the-neoliberalization-of-outer-space/

Portugal Space
https://ptspace.pt/pt/home/

AIR CENTRE
https://www.aircentre.org/events/

Space Resources
https://space-agency.public.lu/en/space-resources.html

Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (EMEPC)
https://www.emepc.pt/