segunda-feira, março 11, 2019

Refogar um país em lume brando

Clara Ferreira Alves. Fotografia de António Pedro Ferreira (original: a cores)

Um manifesto imprevisto


Bastaria para fundar uma nova força política vencedora e reformadora, se não estivéssemos todos mortos...

CLARA FERREIRA ALVES:

O que quero saber é simples e não cabe aqui. Quero saber porque é que o partido socialista está a destruir sem reformar, de forma errática, odiosamente injusta para com os destituídos, a melhor invenção da democracia, o Sistema Nacional de Saúde. 
Quero saber porque é que a Segurança Social, a tal reformada com sucesso, demora um ano a entregar as pensões ou obriga os reformados a apurar os cálculos finais, onde quase sempre faltam anos e descontos. 
Quero saber porque é que a velhice em Portugal é a mais desoladora da Europa e porque é que se tornou um negócio rentável a sobrepor à tragédia demográfica. 
Quero saber porque é que apesar de anos de reformas administrativas, a burocracia continua um mistério dependente da boa vontade de funcionários e não da agilidade do sistema. 
Quero saber porque é que todos os dias há uma greve impulsionada pelos mesmos partidos que sustentam o Governo no Parlamento. 
Quero saber porque é que a ambição é vista como um defeito e os melhores de nós continuam a emigrar para outros mundos tal como no tempo das caravelas. 
Quero saber porque é que a regionalização é um desígnio nacional quando nem as ruas da capital a descentralização consegue limpar. 
Quero saber porque é que os sistemas judicial e judiciário continuam a albergar o racismo, a homofobia e a violência contra as mulheres como se fossem atos da natureza. 
Quero saber porque é que o futebol e os clubes continuam a ter um regime benéfico de isenções e a manifestar-se acima das leis. 
Quero saber porque é que a proteção do ambiente e dos ecossistemas são luxos para privilegiados. 
Quero saber porque é que os feriados e as pontes continuam a ser a expressão máxima da felicidade coletiva e constituem privilégios intocáveis. 
Quero saber porque é que as famílias e os apelidos continuam a regular a mobilidade social exceto quando substituídos pelo nepotismo das famílias partidárias. 
Quero saber porque é que a normalidade, uma vida normal, continua a ser a medida da retribuição e porque é que a originalidade é punida, exceto se integrada. 
Quero saber porque é que tanto o proletariado como a burguesia nunca se constituíram como consciência, preferindo a anestesia do hipermercado e da televisão. 
Quero saber quem são os arquitetos da nossa venda progressiva a países e estados inimigos da democracia e da transparência. 
Quero saber porque é que os professores estão em guerra há anos e ninguém se lembrou de reformar um sistema calcificado que se recusa a evoluir. 
Quero saber porque é que as universidades portuguesas subsistem na indigência financeira e doutrinária. 
Quero saber porque é que o único tema são os funcionários públicos. Quero saber porque é que o nosso sistema fiscal é sacrificial sem reciprocidade. 
Quero saber porque é que reduzimos a austeridade e a escassez a uma qualidade intrínseca da cidadania.

sábado, março 09, 2019

Uma borboleta chamada BE

Marisa Matias e Miguel Portas, um par que mudou o Bloco

Tenho a impressão que vou votar no Bloco. E não será só por gostar de mulheres


A abstenção dá-me azia. E votar em branco faz de mim um rato de sacristia. O Bloco ainda está a tempo de se tornar um partido de poder, certamente de esquerda, de causas tipicamente pós-modernas, mas também com realismo e sentido das proporções. A limpeza da casa ideológica está no bom caminho, mas fazem falta mais umas boas sessões psicanalíticas e teóricas de desconstrução marxista. A prioridade é estabilizar o PS naquilo que sempre foi e é, travando o oportunismo populista de António Costa, que pode causar estragos irreparáveis ao regime, mas também a emergência dum PS de esquerda, em vez de social-democrata, liderado por Pedro Nuno Santos. Um PS cavalgado pelo homem que faz (creio) a ligação do Bloco à Geringonça poderá realizar o sonho alquímico de Francisco Louçã, mas dará cabo do BE. Por sua vez, o centro-direita explodiu e continua à procura da sua identidade perdida. Vão precisar de mais uma ou duas legislaturas para se reencontrarem, tal como previ ao ver nascer a Geringonça. Isto, se a Aliança tiver algum sucesso!

Preferia ter uma democracia sem partidos, participativa, cognitiva, tecnologicamente avançada, culturalmente sofisticada. Mas enquanto lá não chegamos, o meu voto é oscilante, ou puramente tático. Não tenho partido desde 1976...

Não ignoro os perigos do oportunismo e do populismo que infelizmente contaminam todos os partidos. A recessão demográfica acompanhada do envelhecimento populacional é o principal problema português. Daqui decorrem todas as outras dificuldades, alguma delas insanáveis. O endividamento público insustentável, longe de ser apenas o efeito de más políticas governamentais e partidárias, é o resultado direto do custo desproporcional do estado social relativamente aos impostos exigidos ao trabalho e ao investimento produtivo. A fadiga fiscal resultante diminui inevitavelmente as poupanças pública e privada, atrasa os investimentos, reduz os rendimentos e a produtividade do trabalho, induz maior atrito laboral, social e cultural na sociedade, e tende, por fim, a transformar o aparelho do estado numa almofada corporativa, que todos os partidos e uma boa parte da sociedade disputam, mas que é muito prejudicial à saúde democrática do regime.

O olho da direita deixa-me ver uma realidade onde se percebe claramente que o empobrecimento associado ao crescimento das burocracias partidárias e corporativas assim como à crescente indigência social, tende a fazer resvalar democracias frágeis como a nossa para a emergência de regimes populistas e autoritários de esquerda. Por outro lado, o olho da esquerda mostra-me como, quem tem algo de seu, se for encostado às cordas da expropriação fiscal, acabará por exigir e conseguir o regresso de uma ditadura da propriedade. Estes são, porém, olhares estrábicos. E o estrabismo, como sabemos, tende a ignorar o que um dos dois olhos vê. A visão maniqueísta é, assim, uma visão estrábica.

A quadradura do círculo é esta: precisamos de um estado social financiado por quem trabalha, por quem investe e pelos rendimentos do capital. Mas o paradigma demográfico de que já fazemos parte impõe-nos, sob pena de matarmos, de uma maneira ou doutra, o próprio estado social e a democracia, uma racionalização e otimização sem precedentes do aparelho de estado, do perímetro da solidariedade intergeracional, e de cada euro fiscal gasto. Esta revolução exige revolucionários. Esta revolução exige uma mudança radical nos padrões éticos da nossa democracia. Os thesaurus das ideologias dominantes, à esquerda e à direita, estão demasiado exauridos para que das suas linguagens consigamos extrair novos discursos políticos que façam sentido e sirvam para orientar a ação coletiva. Precisamos de novas palavras e gestos para gerir as nossas vidas.

Uma parte crescente dos eleitores deixou de votar porque não se revê nas ofertas eleitorais disponíveis, em nenhum dos partidos do regime eleitos e por eleger. Lembro-me sempre, a este propósito, da anedota bocageana do homem que andava nu pelas ruas com uma peça de fazenda ao ombro... à espera da última moda! Andar nu ao frio não é solução. Há que votar onde a nossa a carteira pede, ou onde o nosso coração manda. Alternativa a isto é votar com os pés, emigrando. Infelizmente, é o que centenas de milhar de portugueses voltaram a fazer.

Votar no Bloco é um voto útil contra a maioria absoluta de António Costa. E isso me basta, por enquanto.

Post scriptum

Quase 24 horas depois de ter publicado este post encontrei esta pérola no Expresso, oriunda do Diário de Notícias:

Francisco Louçã: “O Bloco pode vir a ser o segundo maior partido”
Expresso, 09.03.2019 às 12h34 
Francisco Louçã acredita que o Bloco de Esquerda (BE) pode ultrapassar os sociais-democratas nas eleições. “O PSD é o segundo partido. Mas o Bloco de Esquerda pode vir a ser o segundo partido, é claro que pode”, garante numa entrevista ao “Diário de Notícias”. 
O histórico dirigente, que não faz parte de qualquer organismo do partido, defende que “o BE deve ambicionar que a alternância não seja sempre entre PS e PSD e portanto que passe a haver um polo à esquerda que seja um referencial.” E vai mais longe: “Se o PSD disputa 20% não há nenhuma razão para que o Bloco de Esquerda não queira, um dia, ultrapassar esse nível.”

Louçã até tem razão quando defende que “o BE deve ambicionar que a alternância não seja sempre entre PS e PSD e portanto que passe a haver um polo à esquerda que seja um referencial.” E vai mais longe: “Se o PSD disputa 20% não há nenhuma razão para que o Bloco de Esquerda não queira, um dia, ultrapassar esse nível.” Se o PSD se partir aos bocadinhos, como parece ser seu destino sob a batuta serôdia de Rui Rio, o chamado centro direita entrará numa década de agonia, uma vez mais à procura do Francisco Sá Carneiro que, como todos sabemos, morreu a 4 de dezembro de 1980. Num país de indigentes profissionais, e de classe, como o nosso, nunca houve uma direita que não fosse, ela também, estatista e subsidio-dependente, logo com algum tecido adiposo de esquerda e muita vontade de ‘trabalhar’ para o estado. Ora assim sendo este nosso pequeno Portugal, é bem provável que uma parte do eleitorado laranja emigre para o PS, na esperança que este se modere, e que o Bloco continue a crescer nos prados mais verdejantes do PCP e do PS.

Atualização 10/3/2019 19:17 WET

E se eu tivesse dois sexos?

Hermafrodito adormecido. Museu do Louvre.
Cópia romana restaurada de um original helénico do século II AC.

O problema da identidade de género


A integração cultural da alteridade sexual é um fenómeno recente nas democracias modernas. Não ocorre em regimes não democráticos, e mesmo nestes é uma novidade. Basta pensar na primeira pessoa: e se eu tivesse nascido hermafrodita, qual teria sido a minha vida? As morfologias sexuais dominantes, e os comportamentos sexuais dominantes impuseram-se ao longo da evolução das espécies seguindo provavelmente o paradigma seletivo proposto por Darwin, mas assim como todo o organismo animal, ou melhor todo o organismo vivo complexo, resulta não apenas de processos de seleção, mas também de processos contínuos de colaboração (Margulis, L.), também no plano cultural das sociedades humanas, quanto mais livres e evoluídas estas são, maior é a sua propensão para a integração cooperante das diferenças no enriquecimento integral da espécie. Como em todas as dialéticas sociais, há excessos de ambas as partes. Só a discussão aberta em pleno espaço público, sem polícias, poderá abrir as nossas mentes e corpos ao desconhecido, ampliando o diapasão da realidade.

sexta-feira, março 08, 2019

Estados Unidos já exportam mais petróleo que a Arábia Saudita

Ciclar para ampliar. Origem da img.


Al Gore, que esteve recentemente no Porto a dar mais um dos seus shows sobre as alterações climáticas e a necessidade de substituir as energias fósseis por energias verdes, começou bem, há uns anos, mas duvido cada vez mais da sua forma de proselitismo nos tempos que correm. No preciso momento em que os Estados Unidos ultrapassaram a Arábia Saudita na exportação de petróleo e seus derivados, e países como a China e a Índia, já para não falar de África, precisam de energia barata para poderem desenvolver as suas infraestruturas de saneamento, distribuição de água potável, produção agrícola intensiva, criação de cidades sustentáveis, mobilidade, etc., o discurso de Al Gore parece-me cada vez mais maniqueísta, e nada construtivo. A situação é muito complexa, e por isso, necessita de abordagens abrangentes, sofisticadas, e bem informadas. Não da repetição 'ad nauseam' de caríssimos shows para inglês ver.

O consumo de petróleo nos Estados Unidos estabilizou, mas a sua produção, não!

De facto, o aperfeiçoamento das tecnologias de extração de crude das rochas betuminosas levou o até agora maior consumidor de energia do planeta a transformar-se também num exportador, sobretudo de gasolina e outros derivados do crude. Esta é uma situação que vai ter consequências tectónicas na geopolítica mundial, nomeadamente na América Latina, na Índia e na China, e sobretudo em África.

Esta notícia desenvolvida pelos noruegueses da RYSTAD vai seguramente obrigar a uma revisão das nossas convicções e previsões sobre os efeitos potencialmente catastróficos do chamado peak oil (o fim do petróleo barato). Sabendo-se que a taxa de crescimento demográfico mundial estabilizou por volta de 1964-65, e que a população total do planeta, além de estar a envelhecer, começará a decair a partir de 2055 (segundo o Deutsche Bank), ou de 2100 (segundo as Nações Unidas), é hoje possível imaginar um cenário energético global mais eficiente e mais limpo, mas onde as chamadas energias limpas continuem a ser minoritárias relativamente às energias fósseis.

Eu diria, portanto, que teremos que estar cada vez mais atentos ao lóbi verde, das indústrias às ONGs, todas generosamente financiadas pelos nossos impostos. É que a sobrevivência de grupos de interesses ameaçados pela realidade tende a fabricar más notícias à medida que os consensos se desfazem.

NORTH AMERICA BECOMES SELF-SUFFICIENT IN OIL
RYSTAD ENERGY, March 7, 2019

In a pivotal geopolitical shift, the United States will soon export more oil and liquids than Saudi Arabia. This remarkable turnaround is made possible by the continued rise in oil production from US shale plays and the increased oil export capacity from the Gulf Coast. 
The US has for decades relied on large-scale imports to satisfy its thirst for oil, but this is about to change. The Energy Information Administration (EIA) reported last week that the United States exported more crude and petroleum products than it imported. Granted, the EIA followed up with a report this week that US crude oil stocks had risen by 7.1 million barrels in a week, driven by a renewed appetite among US refineries for imported heavy crude oil. However, for the rest of the year, US exports will grow fast with increasingly attractive price spreads, while US demand for imported heavy oil should again diminish. 
“The oil market is overly preoccupied with short-term US crude stocks, but the big picture tells a new story. Increasingly profitable shale production and a robust global appetite for light oil and gasoline is poised to bring the US to a position of oil dominance in the next few years,” said Rystad Energy senior partner Per Magnus Nysveen. 
He added: 
“The political and economic impact of this shift in global trade has already been dramatic, and will be even more pivotal within the next five years. The US trade deficit will evaporate and its foreign debt will be paid quickly thanks to the swift rise of American oil and gas net exports. The tanker shipping industry will see the boom of the millennium, as the excess fossil fuels from America will find plenty of eager buyers in fast-growing Asia.

quinta-feira, março 07, 2019

Costa mau e Costa péssimo

António Costa - O Programa da Cristina - captura de écrã (editada)

António Costa é um verdadeiro ás, a fugir


Mariana Mortágua tem razão: “O que está em causa é o negócio de venda do Novo Banco. O Governo não pode chutar para o Banco de Portugal e para o anterior Governo as responsabilidades”, diz, lembrando que o Bloco sempre avisou que esta venda iria dar problemas, porque o privado iria usar a garantia.

A resolução do BES foi decidida em Bruxelas, não em Lisboa. O BES não recorreu ao BCE, quando podia, pela razão simples de que não quis ou não pôde (...) mostrar os livros daquele polvo medonho, condição para qualquer operação de reforço de capitais autorizada por Bruxelas. Por outro lado, Portugal, atado ao programa de estabilização financeira da Troika, não tinha poder para decidir resgatar o BES com dinheiros públicos, o tal empréstimo que Ricardo Salgado foi pedir a Passos Coelhos e ao Aníbal. Ou seja, ao contrário do exemplo que Ricardo Salgado evocou na sua última entrevista radiofónica, desde que Portugal entrou em pré-bancarrota, o Banco de Portugal, subordinado ao Banco Central Europeu, deixou de ter plena autonomia para tomar certas decisões, tal como o nosso governo perdeu desde o Memorando de Entendimento de 2011, e não recuperou até hoje, autonomia suficiente para tomar certas decisões de natureza financeira. Em suma, o Banco de Portugal não é o Banco de Inglaterra, e António Costa, e antes dele Pedro Passos Coelho e José Sócrates não são a Rainha de Inglaterra. Por algum motivo pouco estudado surgiu o Brexit!

No entanto, uma vez realizada a experiência da resolução do BES, de que a DG COMP e o BCE foram decisivos e co-responsáveis protagonistas, as trapalhadas que vieram depois (venda do Novo Banco à Lone Star, etc.) já não são, de facto, da conta da toda poderosa direção geral da concorrência europeia, a DG COMP, mas sobretudo do governo que liderou o negócio com o famigerado abutre financeiro. 

António Costa, que sabe muito bem que pautas lhe foram transmitidas pelos banqueiros portugueses no almoço do Ritz de 16 de novembro de 2015, não pode tentar tapar o Sol com a peneira. Afirmou hoje, textualmente, o seguinte:

“Eu creio que desde a data da resolução em 2014 todos temos o dever de não estar surpreendidos com o que venha a acontecer com o Novo Banco: ficou claro qual era o estado da instituição financeira e tudo aquilo que aconteceu desde então tem permitido perceber que quando se fez a separação entre o chamado banco mau e o chamado banco bom, verdadeiramente o que ficámos foi com um banco mau e um banco péssimo”, apontou, referindo-se à operação realizada ainda na vigência do anterior Governo PSD/CDS-PP.” 
“Nós temos de ir à raiz do problema, a auditoria que foi ordenada pelo Governo será em tudo idêntica à da Caixa Geral de Depósitos e sobre a fase anterior à resolução”

Esta manobra só pode ter uma intenção: matar à nascença o apuramento da verdade sobre as responsabilidades de António Costa no buraco negro em que a venda do Novo Banco se transformou, sugerindo que uma parte das mesmas poderão estar, como de facto estão, em Bruxelas. Mas falta, ainda assim, retirar as necessárias conclusões sobre o que fazer ao 'banco péssimo'. E este é um dossier que pertence exclusivamente ao primeiro ministro da geringonça.

Convém, enfim, recordar o que o primeiro ministro disse sobre a venda do Novo Banco.