As Grandes Questões do Nosso Tempo
Parte 4: 88 Milhões de Verdades Escondidas sobre as Caricaturas
Num almoço recente com um distinto grupo de líderes intelectuais do Qatar, alguém me colocou a questão óbvia. Que podemos fazer à polémica das caricaturas? Respondi-lhe que me fazia lembrar a história da briga entre marido e mulher sobre o café. Um casal dividido sobre o tipo de café a tomar à tarde inicia uma acalorada disputa verbal, a qual acabará lamentavelmente à chapada. É claro que o aroma do café não poderia provocar semelhante tempestade. O café foi apenas um pretexto. A causa real da tensão entre os dois era mais profunda. As caricaturas são como o café. Para perceber porque geraram tamanha revolta, é necessário olhar para o fundo da questão.
Durante os últimos vinte e cinco anos, os países Nórdicos foram os paladinos das causas a favor dos pobres e dos países em desenvolvimento. Estiveram no topo da liga de doadores. Acolheram imigrantes de braços abertos. Praticaram o contrato social em casa e advogaram-no no exterior. Em especial, o seu apoio às minorias, sobretudo as mais forçadas a deslocações, é bem conhecido, quer sejam os Palestinianos no Médio Oriente, os Curdos no Iraque e Turquia, os Tamiles no Sri Lanka ou os democratas na Burma.
O modelo de bem-estar social dos Nórdicos e de outros países europeus funcionou bem na economia industrial. Mas à medida que a economia do conhecimento foi substituindo largos sectores da economia industrial, milhares de pessoas perderam os empregos e muitas mais continuam a ir para o desemprego em cada dia que passa. Esta mudança económica reflecte-se igualmente numa subtil mas crucial mudança política: os partidos políticos estão cada vez mais ao serviço dos interesses do centro. Os Novos Trabalhistas e os Novos Conservadores Ingleses estão cada vez mais parecidos. Na Alemanha, Socialistas e Democrata-Cristãos uniram-se para criar um governo de coligação. O governo Holandês há muito que é uma coligação e as diferenças entre Socialistas e Conservadores nos países Escandinavos têm vindo a atenuar-se.
Num mundo assim, politicamente desenhado ao centro, quem se mantiver nas margens, Direita ou Esquerda, fica de fora. Perdem economicamente se as suas capacidades industriais se revelarem irrelevantes para a economia do conhecimento. E perdem a sua voz política à medida que os que estão no poder querem representar a crescente classe média, preocupando-se cada vez menos com os operários desempregados.
Ironicamente os perdedores na nova paisagem económica e política englobam tanto as populações locais como as populações imigrantes. De entre estas últimas, os perdedores tendem mais a lutar contra os que são como eles do que contra os que são diferentes. Desde que viajo para a Europa, assisto à hostilidade diária dos motoristas de táxi e empregados de hotel de origem imigrante. Eles não podem pura e simplesmente tolerar que alguém vivendo num país em vias de desenvolvimento possa alugar os seus serviços quando eles, que deixaram os seus lares para melhorar a sua condição de vida na Europa, acabaram a guiar táxis apesar dos seus estudos de engenharia ou medicina. Deparei-me com tais afrontas sempre que pretendia dar uma gorjeta que já não me atrevo a fazê-lo. É muito mais seguro fingir junto de um motorista de táxi imigrante que estou a apanhar o táxi por uma questão de absoluta necessidade e pedir-lhe um favor. O seu ego fica satisfeito e a minha segurança garantida.
Enquanto os imigrantes odeiam pessoas que aparentam ser visitantes bem sucedidos oriundos dos seus próprios países, atraem por sua vez o ódio daqueles a quem a vida não corre tão bem nos países de acolhimento. A sua incapacidade de integrar-se na sociedade de acolhimento é ainda causa de preocupação para aqueles que foram atirados para o desemprego por uma fábrica que se deslocalizou para um país de Leste ou para a China. É o ódio mútuo entre aqueles que falharam na adaptação às transformações económicas da Europa que se vê reflectido nos grafitos aqui e ali, em artigos de jornal e agora nas caricaturas.
Não são só os trabalhadores desempregados que usam a cultura como uma desculpa para odiar alguém. Mesmos os capitalistas que temem pelas suas perspectivas se comportam de forma parecida. No exacto momento em que a polémica das caricaturas ocupava o palco mediático mundial, a oferta pública de aquisição lançada pela Laxmi Naraim Mittal sobre a Arcelor, uma companhia ainda Francesa, suscitou a fúria dos nacionalistas Europeus. De facto, as empresas da Mittal são europeias e têm as suas sedes no Reino Unido e na Holanda. O seu crescimento deve-se sobretudo às políticas de livre concorrência do Reino Unido. Uma oferta de aquisição por parte de uma empresa Britânica sediada na Holanda, lançada sobre uma empresa Francesa sediada no Luxemburgo, deveria ser normal. No entanto, foi contrariada com base no argumento de que a Mittal é de origem indiana. A Cultura é a arma suave do jogo económico e político.
Mais cedo ou mais tarde, os Europeus terão que aprender a lidar com a aquisição das suas empresas pela Mittal e outras parecidas, como as equivalentes Chinesas. Se os países Árabes exportadores de petróleo aprenderem a utilizar os seus excedentes financeiros de uma forma mais inteligente do que o simples financiamento do consumo nos Estados Unidos, entrarão seguramente para o grupo dos bolsos sem fundos. Ao mesmo tempo, os Europeus terão que aprender a viver com o facto de actualmente 88 milhões de jovens habitarem este planeta, sendo que muitos deles se encaminharão legal ou ilegalmente para as suas costas. Por razões geográficas, os primeiros candidatos terão origem nos 10 milhões de jovens que vivem no Médio Oriente e nos 18 milhões que vivem em África. Se os Europeus decidirem continuar entretidos a desenhar caricaturas, os Asiáticos e os Árabes ocupar-se-ão de comprar as suas empresas e de ocupar os seus empregos.
Os Europeus deveriam aliás estar satisfeitos com as perspectivas migratórias dos jovens da África e do Médio Oriente. A mudança demográfica e o envelhecimento da Europa é uma história velha e conhecida. Em 2025 e mais ainda em 2050, a Europa precisará de trabalhadores jovens. Boas políticas de integração inter-cultural servirão a economia Europeia. Se, pelo contrário, a Europa não encontrar forma de coexistir com as culturas diferentes, atrairá sobre si mesma uma catástrofe económica.
Por outro lado, Árabes e Asiáticos devem a si mesmos a decisão de jogar com as regras europeias se quiserem operar no espaço económico Europeu. Uma coisa é preservar a sua cultura. Outra é viver em ilhas (ghettos) e não fazer qualquer esforço para aprender as melhores práticas do país hospedeiro. Se os Países Ocidentais conseguiram ultrapassar nos últimos 500 anos o Médio Oriente, que teve um bom começo 1000 anos atrás, isso deveu-se em parte à eficácia das instituições que souberam construir. Asiáticos e Árabes têm que aprender a usar estas instituições a seu favor, tal como a Mittal vem fazendo. No caso das caricaturas dinamarquesas, um processo judicial justificado na Secções 266B e 140 do Código Penal Dinamarquês poderia possivelmente ter mandado o cartunista para a cadeia durante 24 meses, com base apenas na actual lei Dinamarquesa, e proibir que outros o seguissem. É igualmente necessário saber distinguir um cidadão do Estado. No caso da Dinamarca, o ódio contra o Estado era compreensível na medida em que o Primeiro Ministro da Dinamarca recusou encontrar-se com os embaixadores Árabes em Copenhague. Apesar de reflectir o sentimento nacional dinamarquês, esta decisão não justifica a violência física contra os interesses e missões diplomáticas dinamarquesas. No caso da Noruega, o acto solitário de um jornal não pode ser usado como desculpa para atacar as missões diplomáticas Norueguesas quando sabemos que o Estado e a sociedade da Noruega se conduzem de modo muito diverso. Ao contrário do governo de direita da Dinamarca, que apoia a guerra no Iraque e o consumismo doméstico, a coligação Trabalhista e Socialista Norueguesa está empenhada em processos de paz por esse mundo fora, bem como no uso doméstico disciplinado das receitas petrolíferas. É necessário que Asiáticos e Árabes saibam desenvolver análises mais sofisticadas quando desencadeiam respostas a provocações resultantes de problemas mais profundos, causados tanto pelos comportamentos das suas populações, que se sentem abandonadas pelo progresso, quanto pelos comportamentos das populações locais, igualmente atingidas por um sentimento de marginalização, provocado pelo novo mundo consumista.
Felizmente existem dirigentes esclarecidos tanto no Ocidente como nos países Islâmicos, que têm uma visão construtiva do futuro e do mundo. Houve diálogos que cheguem para meras trocas de pontos de vista. Agora é mais do que urgente examinar os factos em profundidade e fazer esforços para aplainar um terreno comum. Há vontade política, mas não foi escutada. O Strategic Foresight Group encontra-se numa posição única para fazer a diferença, graças a uma visão desapaixonada que foi bem recebida por parte de altos dirigentes da Arábia, do Sudeste Asiático e da Europa. Siga este espaço nos próximos meses.
Sundeep Waslekar é o Presidente do Strategic Foresight Group, sediado em Mombaim. É um especialista em governação, conflitos, segurança global e regional, economia política — e filosofia política.
IMG - Jesus Christ The Musical, de Javier Prato (video still)
OAM #113 21 MAR 2006