quarta-feira, abril 21, 2004

Ciberdependente

Quantas horas podemos estar sem conectividade?


O-A-M
#25
20 Abril 2004

Estive 36 horas (entre 19 e 20 de Abril) sem acesso à máquina, i.e. sem acesso à rede.
A primeira coisa que procurei perceber depois de desfazer a mala foi se o quarto, enfim o hotel tinha acesso Internet assegurado. Telefonei para a recepção. Uma voz feminina jovial diz-me que se conectasse o laptop à linha do telefone, e depois marcasse para um ISP, teria Internet... O Extremadura Hotel, de Cáceres, apesar de novo, parecia velho em matéria de conectividade.

Busquei nas listas telefónicas disponíveis no quarto. Nada, nem sequer uma entrada autónoma para Internet. As poucas entradas para ciber cafés deixavam-me desesperado. Será que ainda existem uns números de acesso gratuito em Espanha, como sucedeu na minha última estadia em Sevilha, no Hotel Meliá. Meia hora a folhear as listinhas, e nada!

Desisti por momentos, e continuei a arrumar as coisas. Liguei a televisão. O Zapatero parece que vai cumprir o prometido. As imagens espectaculares de um carro de Rally a atropelar mãe e filhote repetem-se insanamente. Os concursos e os "reality shows" alastram como uma praga monótona sobre o espectro radioeléctrico. Vou tomar um duche. Os filmes pornos disponíveis são, como de costume, péssimos. A publicidade televisiva espanhola continua divertida. Preciso desesperadamente de me ligar à máquina...

Jantei meio lombinho de porco com molho de queijo de ovelha e batatas fritas. Come-se bem em Cáceres! O Protos, um Ribera del Duero que raramente nos deixa ficar mal, ajustou-se à degustação. "Vuelvo a la habitación". O lixo televisivo continua. Salva-me do naufrágio um documentário corajoso sobre a prostituição fina e a escravatura de mulheres em Espanha. Fiquei a saber que por 3000 euros posso comprar, comprar literalmente (e também libertar da escravatura sexual) uma "jovencita" mexicana ou romena. Fiquei a saber que para foder uma "pessoa famosa", tipo locutora de televisão, cantora, modelo, etc., preciso de 600 a 30 mil euros, dependendo, claro está, da exclusividade deste tipo de estrelas, nem sempre disponíveis - "por supuesto"!

Acordei cedo. O pequeno almoço continental compõe-se de dois copos de água fria de Mondariz, um chá preto e uma torrada com azeite e tomate. Quando me preparo para regressar ao quarto, passo pelo balcão e reparo num autocolante que diz: "Wi-Fi en este hotel". Pergunto como funciona. Não sabe. Nem tem nenhum folheto sobre o assunto. Subo a correr para o quarto 102. Mudo as configurações do TCP do meu iBook para Airport. Aguardo... Nada!

Telefono para a recepção. Não, não funciona. E não sabe como? Não, não sabe... Mas poderá informar-se? Concerteza. O tempo passa e tenho que ir até à cidade velha. Também por lá, desta vez em trabalho, tenho um breve contratempo com a ligação de uns Macs a uma rede institucional. Duas horas depois, problema resolvido. Menos mal.

De volta ao hotel, a boa notícia: o Sr. director do Hotel vai facultar-me "una tarjeta" de acesso à rede Wi-Fi! Terei, no entanto, que mudar de andar, pois a rede apenas abrange o piso de entrada e os últimos dois andares do hotel. Nenhum problema, é p'ra já!

A coisa tem a sua cerimónia. Aguardo o Sr director no hall. Desembrulho um rebuçado, enquanto alguns alemães fazem perguntas e um espanhol marca um serviço especial para uma Primeira Comunhão. Chega sorridente, como se viesse dar-me as chaves dum Ferrari. Eu creio que ele me vai mesmo dar-me as chaves do meu Ferrari! Momento irritante: o tempo que o Snow White (assim se chama o meu iBook) demora a pôr a trabalhar o sistema operativo e toda a tralha de extensões do sistema. "Tarda mucho ese macintosh", comenta o interlocutor de circunstância, que obviamente pertence ao proletariado microsoft. Sorrio sem esboçar a mínima irritação. O importante é atingir o objectivo. Mais uns irritantes segundos, e já está! Como se o presente fosse pequeno, fico ainda a saber que a Telefónica me regala o acesso durante a minha estadia, pois está dando início, e por conseguinte promovendo, esta novidade. Depois a coisa irá custar uns 12 euros por dia. É caro, mas nenhum ciberdependente, como eu, vai hesitar um segundo. Os economistas chamam-lhe rigidez da procura. E eu chamo-lhes (aos donos do negócio, claro está) filhos da...

Dirigo-me para o quarto. Arrumo tudo e espero que alguém me ajude a mudar de poiso. Um rapaz dos seus 19 anos surge poucos minutos depois. Ao entrarmos no elevador pergunta-me: "por lo de la web, verdad?". Sim... "Yo se, me pasa lo mismo. No puedo estar sin conexión..."

36 horas sem máquina, 20 e poucas mensagens úteis, 300 e tantas mais de spam. Limpei a caixa de correio. Respondi de imediato às mensagens urgentes. Pensei na mini crise de abstinência por que passara. Deverei marcar uma consulta sobre ciberdependência? -- ACP

domingo, abril 18, 2004

Guerra global

Iraque: conflitos assimétricos e guerra preventiva.


Iraque: vitima de guerraO-A-M
blog #24
18 Abril 2004

A guerra do Iraque continua. Continuou depois da queda de Bagdade, continuou depois da captura de Saddam Hussein, continuará depois de 30 de Junho de 2004. Não estamos, porém, confrontados com uma guerra qualquer. Esta é uma guerra de estilo novo: global, assimétrica, suja e hipermediática (de hipermédia...). Muito mal gerida pelos falcões de Washington. Ameaçando a estabilidade em toda a bacia mediterrânica. Impondo, em suma, o maior desafio estratégico que a Europa terá que enfrentar nos próximos 10 ou 20 anos.

A táctica dos assassínios selectivos, elevada por Israel à categoria de espectáculo mediático, contrapontual do efeito devastador das bombas humanas, não será a melhor ideia para o futuro desta complicação civilizacional, mas pode ter efeitos dissuasores de curto prazo e transformar-se num clássico do novo modelo de guerra assimétrica em curso (a chamada guerra anti-terrorista). As acções militares selectivas (por muito crua que seja esta afirmação) são menos letais do que as guerras civis, menos devastadoras do que as guerras militares convencionais e encontram-se a anos luz de um ataque químico ou nuclear. Estamos a falar de coisas terríveis, e no entanto, diante da evidência incontornável dos factos, não poderemos deixar de os analisar, nem deveremos, infelizmente, deixar de conjecturar as soluções que, em nosso entender, pareçam as mais humanas e objectivamente adequadas para estancar a hemorragia em curso e todo o espectáculo macabro que a rodeia. Pode ou não impor-se uma forma de governo representativo no Iraque? Isto é, pode-se ou não forçar a maioria Chiita a moderar a sua concepção doutrinária de Estado Islâmico? Eu creio que sim. Desde que todos tenhamos uma visão ponderada dos ciclos históricos. Se o socialista Zapatero ainda teve que jurar por um Rei e por uma Bíblia, para ser Chefe de um Governo europeu eleito por sufrágio directo e universal, por que não podemos ter todos um pouco mais de paciência para com o Iraque e o Mundo Árabe em geral? A eleição de Kerry poderia seguramente acelerar esta perspectiva. O novo Primeiro Ministro espanhol, ao decidir antecipar a retirada dos militares do seu País do Iraque, afirma no fundo o desejo de uma reaproximação da Espanha ao eixo Paris-Berlim, não deixando, por outro lado, de dar uma bofetada oportuna no Sr Bush e na estratégia da nova direita messiânica norte-americana. A ver vamos.

PS: o remoque de Durão Barroso ao seu homólogo Espanhol repõe os dois países onde estavam antes do Conselho de Guerra dos Açores: Portugal não deve perturbar a sua aliança estratégica (a qual impõe sacrifícios...) com o Reino Unido e a super-potência norte-americana; e Espanha deve retomar as suas prioridades mediterrânicas.

Antes de iniciar este blog escrevi alguns textos sobre o Iraque, que enviei por email e publiquei na revista O António Maria. Apesar dos raciocínios e sentimentos contraditórios neles manifestos, resolvi trazê-los de volta e arrumá-los por ordem cronológica. Quanto mais não seja, servir-me-ão de lastro a meditações futuras sobre a infindável imprestabilidade humana. -- ACP


Lisboa, 04.03.2003

Vai correr tudo mal



Iraque: bomba de fragmentacao made in USAO somatório de testemunhos chegados ao meu portátil ao longo dos dois últimos meses não deixa margem para dúvidas sobre a natureza agressiva da actual Administração estado-unidense na sua mais recente tentativa de condução unilateral da política mundial. Sob o pretexto de uma mudança da natureza dos conflitos estratégicos, que os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 teriam confirmado, os estrategos mais duros da mão militar norte-americana decidiram ter chegado o momento de responder à guerra global e irregular das redes terroristas e dos Estados párias em geral com uma guerra não menos global e tão irregular quanto as circunstâncias o exigirem. Na sua perspectiva, o 11-9 provou que as chamadas guerras em rede, desterritorializadas, tendo como principal objectivo desorganizar o chamado mundo civilizado, democrático e rico, atingiram a idade adulta, e como tal, deverão esperar dessa mesma civilização, que pretendem destruir, uma resposta não apenas proporcional, mas também à altura da ameaça anunciada. Este maniqueísmo político comete um sério erro estratégico ao não tentar perceber por que raio será que o mundo está a ficar fora de controlo e tão anti-americano.

A crise económica deixou de ser um problema nacional, regional ou internacional, para passar a ser uma endemia sistemática e global, a que nenhum dos remédios conhecidos tem trazido significativas melhorias. A guerra é outra das doenças generalizadas, aparentemente sem cura. E a corrupção, por sua vez, agrava ainda mais estes dois flagelos humanitários. A fome e a violência assassina que aí vêm serão inevitavelmente portadoras das mais diversas máscaras e ideologias, mas a causa comum que fará delas a frente imparável da entropia e da distopia em curso é uma só: a derrapagem antropológica da espécie.

Quando se diz que a guerra do Iraque é uma guerra pelo controlo inequívoco das fontes energéticas a favor do grupo de países industrializados, democráticos e ricos do planeta (E.U.A., Canadá, Europa, Japão, Austrália e Rússia, mais uma banda flutuante de países aliados ou historicamente associados), e que portanto não há motivos para divergências fundamentais no seu seio, está-se de facto a sublinhar o óbvio. A divergência actual entre a Europa e os Estados Unidos, por muito importante que seja ? e a possibilidade da moeda europeia vir a substituir o dólar norte-americano em muitas das transacções internacionais, como as que dizem respeito ao petróleo, é uma divergência importante (que aflige os bonecreiros que agitam o neurónio sobrevivente do Sr. Bush) ?, não mostra a verdadeira linha divisória da crise actual.

A crise tem uma causa única, e essa decorre da nossa própria derrapagem enquanto espécie. Se os estudos pioneiros sobre a sustentabilidade da Humanidade, realizados por Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows e Jørgen Randers ("The Limits to Growth", 1972, e "Beyond the Limits", 1992) fazem algum sentido, e eu creio que fazem, estamos a menos de 20 anos de uma catástrofe antropológica sem precedentes, aliás irremediável, se as coisas continuarem fora de controlo, como de momento estão. O actual modelo de crescimento económico e o actual modelo de felicidade não só se esgotaram, como podem ter exaurido a nossa própria viabilidade enquanto espécie. E assim como um número apreciável de formas de vida desaparecem para sempre em cada dia que passa, nada impede que o nosso fim esteja mais próximo do que somos capazes de admitir. Num dos cenários previstos em "Beyond the Limits", por volta de 2020 assistir-se-à a uma queda brutal e simultânea da população, da produção industrial, das reservas alimentares, da esperança de vida, do consumo 'per capita', da quantidade de alimentos disponíveis e dos serviços (saúde, educação, regime de pensões, justiça, comunicações, serviços municipalizados de água e energia, etc.) Pode alguém imaginar o significado subjectivo deste cenário computacional?!

A resposta dos falcões americanos à crise actual traduz uma visão totalitária do futuro. Para eles, bem informados sobre a escassez dos recursos e sobre os devastadores efeitos retroactivos do modelo de crescimento capitalista, há que potenciar ainda mais as assimetrias socio-económicos actuais e assegurar sem hesitação a distribuição desigual dos recursos. Se for necessário, e será seguramente necessário (!), a fome e a guerra devidamente telecomandadas levarão a cabo a espinhosa missão de corrigir os excessos demográficos. A guerra, incluindo sofisticados sistemas de guerra nuclear limitada, de guerra logística, de guerrilha planetária e de guerra electrónica, poderão ser uma realidade inescapável nas próximas décadas. A sua função será sobretudo uma função separativa e concentracionária, deixando depois à economia da escassez a missão aniquiladora. De facto, o controlo violento das reservas energéticas e o controlo violento dos movimentos demográficos são os elementos básicos da estratégia posta em marcha pelos actuais sectores radicais do Capitalismo. Bush é apenas a figurinha caricata desta larga e macabra manobra de sobrevivência, a todo o custo, de um modelo civilizacional exangue (mas nem por isso menos disposto a fazer correr rios de sangue e sofrimento). Tony Blair representa o elo de ligação (só aparentemente em risco) entre o polícia americano e a velha Europa. Os senhores Barroso, Portas e Aznar, que deveriam estar proporcionalmente calados à sua óbvia falta de dimensão estratégica e operacional, revelam também, no seu atlantismo frenético, a mesma verdade básica desta crise: nada de definitivo irá separar o continente americano da Europa na grande tempestade que se avizinha.

Esta rigidez estratégica, somada a uma escandalosa crise económica, torna os norte-americanos cada vez mais impróprios para liderar a imprescindível reorganização do mundo. Por outro lado, este mesmo unilateralismo cultural estimula, por contraposição, a expansão de uma conectividade anti-imperialista sem precedentes. No pior dos cenários (já anunciado pela Coreia do Norte), vários serão os Estados e redes clandestinas ao serviço das mais variadas causas desesperadas, dispostos a jogar a roleta russa da guerra biológica, química e nuclear, contra os Estados Unidos e os seus agentes político-comerciais instalados em países maioritariamente muçulmanos. A segunda guerra do Iraque colocará os EUA num isolamento profundo, empurrando a Europa para um protagonismo de tipo novo. A Europa que se prepare, pois, para as pesadas responsabilidades que aí vêm. Receber uma mais do que previsível vaga de imigração norte-americana (imigração humana e imigração de capitais) será uma delas. Mas desenhar a travagem de emergência que assegure a sobrevivência e sustentabilidade da espécie humana, em colaboração com o resto do mundo, é desde já o seu maior desafio. Um desafio, porém, que não poderá ser confiado apenas aos modelos tradicionais da política: inquinados pela corrupção e pela inércia dos privilégios burocráticos.

Apesar de a Europa surgir nesta fase da confusão, como um bloco geo-estratégico flexível e com credibilidade negocial, apenas a realidade aumentada de uma República Electrónica baseada na conectividade humanista pós-política poderá gerar as energias suficientes para corrigir a trajectória suicida deste vai-e-vem chamado Terra.


Poucos mortos!



Ministerio iraquinao de PlaneamentoPost Scriptum. Lisboa, 17.03.2003, 14:22.
O 'ultimatum' dos Açores acentua alguns elementos decisivos para a compreensão da crise actual:
1) seria um desastre para o futuro do mundo vermos os USA perderem completamente a face nesta partida de póker;
-- o Reino Unido, o seu velho aliado (Portugal) e o seu velho inimigo (a Espanha), na sua divergência táctica com o eixo franco-alemão, acabam por tornar-se na principal força mediadora do tenebroso jogo de estratégia iniciado por esta crise de hegemonia;
-- Portugal (através do seu Primeiro-Ministro), apesar da situação delicada em que se colocou e apesar das questões ideológicas entretanto chamadas à colação (como a radicalização militarista dos Estados Unidos), agiu correctamente sob pelo menos quatro pontos de vista: 1) respeitou as suas alianças estratégicas, com o Reino Unido, com a NATO e com os Estados Unidos; 2) coadjuvou e continuará a coadjuvar o Reino Unido no esforço de impedir o isolamento total dos Estados Unidos nesta crise; 3) toma posição como país independente, ao lado do sempre ambicioso vizinho castelhano, clarificando uma vez mais que, se houver iberismo, ele terá que ser multipolar; 4) e demonstrou ser capaz de, como pequeno país europeu, ter uma presença mais do que simbólica na decisiva partida de xadrez que se vai seguir.

O que está em causa neste funeral do 'status quo' saído das conferências de Ialta e Potsdam é a possibilidade de definir uma nova ordem mundial assente num efectivo eixo atlântico, ou, em alternativa, o caos que inevitavelmente adviria, quer dum isolamento excessivo dos EUA, quer da travagem do processo de construção europeia. A Europa continua a precisar do potencial tecnológico e militar dos EUA, mas estes vão precisar cada vez mais da parceria económica e diplomática europeia.

Se no plano ideológico, faz todo o sentido a actual movimentação pacifista, que como tal deve ser estimulada e defendida, se no plano político é preciso travar o desvario (muito pouco constitucional) do actual poder norte-americano, não deixa de ser igualmente certo que a crise iraquiana necessita de um desfecho justo, militarmente controlado, do qual resultem sinais muito claros para as ditaduras que se preparam para desestabilizar o planeta, e ainda, e de uma vez por todas, a solução do conflito entre Israel e a Palestina. Depois de desarmar o Iraque do seu potencial de armas de destruição massiva (nuclear, química e biológica), haverá que fazer o mesmo em Israel - custe o que custar! E já agora, daqui para a frente, que os franceses (fornecedores ilegais de tecnologia nuclear ao Iraque), os alemães (fornecedores ilegais de tecnologia química ao Iraque) e os norte-americanos (fornecedores de toda a espécie de merda bélica ao mesmo Iraque) aprendam a lição e não voltem a brincar com o fogo. Ao activismo planetário contra o terrorismo e a guerra, e pela sustentabilidade, compete manter a maior pressão possível sobre a carne irremediavelmente fraca dos políticos!

Desafio os intelectuais e os artistas independentes a acompanharem activamente a presente crise! -- ACP


05 Mar 2003

O Lobo e o Cordeiro



Danos colateraisEsopo (circa 620aC-560aC):
Enquanto bebia água no cimo de um ribeiro, o lobo reparou num cordeiro alguns passos abaixo. Decidido a atacá-lo, começou a magicar numa desculpa plausível para fazer dele sua presa.

"Seu patife!" gritou, correndo até ao cordeiro. "Como te atreves a turvar a água que eu estou a beber!"
"Peço desculpa," respondeu o cordeiro humildemente, "mas não vejo como posso ter feito alguma coisa à água que corre de si para mim, e não de mim para si."
"Seja", respondeu o lobo, "mas sabes muito bem que ainda há um ano andaste a chamar-me nomes feios pelas costas."
"Mas, Senhor," disse o cordeiro, "Eu nem sequer havia nascido há um ano."
"Bem," assertou o lobo, "se não foste tu, foi a tua mãe, e isso para mim é a mesma coisa. De qualquer maneira, não adianta tentares desviar-me do meu jantar."

E sem uma palavra mais, caíu sobre o desgraçado e indefeso cordeiro, despedaçando-o.

Mutatis mutandis...

A actual campanha de Bush contra Saddam Hussein recorda inevitavelmente esta moraleja, ainda que no caso vertente, a ovelha seja obviamente ranhosa. A fábula, para ser justa, necessitaria agora de alguns ajustes:

"Era uma vez dois filhos da puta. Um tinha muito petróleo, mas queria mais. O outro tinha muito petróleo, mas queria ser o Senhor das Arábias e o Grande Senhor dos Petróleos. O primeiro filho da puta e muitos outros filhos da puta antes dele ajudaram o infiel dos bigodes a armar-se até aos dentes. Depois, deram-se todos conta que o problema do petróleo iria ser uma coisa mesmo séria por volta do ano 2020 dC. Seguiu-se a confusão planetária, na qual o dito Hussein passou a ser a grande desculpa para uma iguaria irresistível, cuja caça faria milhares de vítimas inocentes, no Iraque, e depois por todo o mundo.
Moral da história: um tirano encontrará sempre um pretexto para a sua tirania. Mas se queremos evitar a tirania temos que, a tempo e horas, ver-nos livres dos tiranos, ainda que vistam pele de cordeiro.

NT - Consta que o grego autor desta instrutiva fábula não resistiu à fúria do Governador de Atenas, Peisistratus, conhecido inimigo da liberdade de expressão. Esopo foi condenado à morte por sacrilégio e atirado por um penhasco abaixo. As fábulas, essas, sobreviveram. -- ACP


Abril 2003

Colmeias Furiosas



11-S. Foto:GulnaraSamoilovaGlória ou ocaso de um império?

As pessoas atentas fazem perguntas como esta: se Nova Iorque ou Washington estivessem sujeitas ao terror de um bombardeamento aéreo ininterrupto semelhante ao que há mais de vinte dias cai sobre a cidade de Bagdade, qual seria a resposta do Governo norte-americano? Retaliaria ou não com armas de destruição massiva? Os EUA tiveram a ousadia e o despudor de serem o único país da Terra a usar semelhante armamento (contra o Japão, em 1945). Voltará ou não a fazê-lo?

Noam Chomsky, numa recente entrevista sobre o desvario do poder americano, refere-se ao caso iraquiano como a presa indefesa que a pandilha de Bush elegeu para cobaia da sua mais recente doutrina imperial: a doutrina da "guerra preventiva". Esta doutrina, com laivos messiânicos, surgiu da ideia de que os Estados Unidos, para defender a sua actual posição hegemónica, hipoteticamente ameaçada por uma conspiração terrorista internacional, terá que impor uma "soberania limitada" a todas as restantes nações do mundo. E para tal, segundo a mesma doutrina (defendida por gentuça da laia de Richard Perle), arrogar-se-à a prerrogativa de pairar acima da ONU, da Convenção de Genebra e do Tribunal Penal Internacional, sempre que lhe convier, bem como de desencadear acções punitivas comerciais, diplomáticas e militares (incluindo o uso de armas nucleares tácticas) quando considerar que os interesses norte-americanos foram, estão ou poderão vir a ser postos em causa. Talvez isto não passe dum pesadelo passageiro. Mas a verdade é que existe a possibilidade desta perigosa deriva estratégica da maior potência militar do planeta nos conduzir a um aterrador beco sem saída!

Que está de facto em causa nesta agressão inqualificável contra um povo indefeso perante a tecnologia apocalíptica que sobre si se abateu? O terrorismo, o petróleo, a crise interna americana, a probabilidade de o Euro vir a substituir (ou coexistir com) o Dólar como divisa de referência internacional; o surgimento duma nova Europa, economicamente poderosa e militarmente espevitada, a probabilidade de uma aliança estratégica entre a Europa, a Rússia e o mundo árabe (face à iminente trilateralização geo-estratégica do planeta); ou o imparável isolamento cultural dos Estados Unidos da América? Quando os chacais rondarem a carcaça do regime iraquiano, perceberemos até onde a Europa foi ou não, é ou não, a verdadeira espinha finamente cravada nas amígdalas de Bush, Condolezza Rice, Donald Rumsfeld, Dick Cheeney e de muitas empresas americanas.

Entretanto, nem tudo parece perdido nesta crise.

Desde logo, porque tem sido precisamente nos Estados Unidos que a mais séria oposição civilizacional ao desvario paranóico dos falcões da indústria militar e do fundamentalismo protestante se tem manifestado com enorme determinação e coragem. As leis proto-fascistas de limitação das liberdades cívicas aprovadas pela duvidosa maioria do Congresso norte-americano ("His Fraudulency", Bush II, teve menos 300 mil votos que Al Gore...), permitem sequestrar cidadãos, dentro e fora da América, para interrogatórios em regime de prisão preventiva, à margem de quaisquer controlos democráticos. Os Prémios Nobel da Paz, Jody Williams e Maidread Corrigan (conhecidas pela sua campanha para por fim ao fabrico de minas anti-pessoais), foram presas em Washington durante uma manifestação contra a agressão ao Iraque. Mas quando a maioria de que falam as sondagens acordar para as tremendas consequências desta guerra injusta, em cuja frente de batalha vimos todos meninos e meninas de 17 anos a combater pela bandeira americana, o actual protesto das largas franjas intelectualizadas da América explodirá como um verdadeiro enxame furioso em direcção à seita que tomou conta do Partido Republicano e de uma parte importante dos meios de comunicação de massas. Mais do que uma esperança e do que um desejo, esta parece-me em definitivo a evolução provável da situação política no complicado pós-guerra que se seguirá à tomada de Bagdade. Creio na democracia americana e sobretudo creio na formidável energia criadora da colmeia laica, trabalhadora, tenaz, tolerante e generosa amadurecida ao longo dos seus 200 anos de História. As críticas mais mordazes e lúcidas ao comportamento diabólico das corrompidas elites americanas têm-me chegado sobretudo de Nova Iorque (com especial destaque para a excelente Newsletter da Village Voice), de S. Francisco e em geral da muito vasta e muitíssimo activa web norte-americana.

A transparência mediática da actual crise contribuíu, como nenhum outro factor, e ao contrário do cepticismo anti-tecnológico e anti-informacional de alguns, para as dificuldades do comando aliado da guerra, para a exponenciação de um autêntico movimento global contra o "terror" desencadeado pela pandilha de Bush, e ainda para a imposição mediática do princípio da condenação e penalização populares dos chamados danos colaterais. Já imaginaram quão ciclópica será para os Estados Unidos montar a próxima campanha belicista? Pense-se, a título de exemplo, na Venezuela, em Cuba, na Coreia do Norte, na Arábia Saudita, ou no Irão. Acredito que o enxame da opinião pública planetária será capaz de travar tais cenários de "horror e espanto", desmontando a barbárie contida na doutrina da chamada "guerra preventiva". Temo, por outro lado, que a doutrina da dissuasão ganhe cada vez mais adeptos entre os alvos potenciais (alguns deles já enunciados!) do complexo industrial-militar dos EUA. -- ACP

segunda-feira, janeiro 26, 2004

Subsidiar a Cultura 2

A. M. Seabra denuncia endogamia cultural.



Se descontarmos a benevolência relativamente ao Pedro Cabrita Reis e às suas poses cabotino-liricoides, o Seabra tem toda a razão em quase tudo o que vem escrevendo sobre a pandilha portuga da "arte contemporânea". No essencial, anda muito certo ao afirmar que a dita pandilha é uma nomenclatura (da mediocridade pomposa, acrescento); e que as respectivas membranas funcionam - há décadas - em regime de vasos comunicantes, sob os auspícios inocentes de inúmeros orçamentos de interesse público. A coisa, porém, já deixou de ser um problema de ética, para ser um caso de telenovela. Tem, de facto, todos os ingredientes: sexo, cabotinismo, tráfico de influências, prepotência, manipulação de inocentes, censura, falsificações históricas sistemáticas, cobardia, um bocado do cadáver do Bloco Central ainda aos pinotes e a mais completa ausência de estratégia cultural que imaginar possamos (escancarada, aliás, no pseudo Museu de Serralves). Como se tal herança não fosse já de si pesada, caiu ainda na actual sopa de pobres (diabos) um presidente IA meu bué de irreverente e um daqueles ministros que o Eça levava meses a burilar! Mas atenção: o caruncho corroeu também a totalidade dos pasquins do burgo. Não padecemos apenas de uma epidemia de pedófilos. Padecemos duma pandemia de estupidez! -- ACP

PS1 - antes comprar, olhem bem para as cotações, por exemplo no Artprice
PS2 - leitura obrigatória: Seabra #1  Seabra #2

O-A-M
blog #23
26 (?) Janeiro 2004

domingo, janeiro 04, 2004

Subsidiar a Cultura 1

Quem, o Augusto M Seabra? Tem toda a razão!



Apesar de não perder os tiques Adornianos (escusados em caso tão falho de substância), o gajo tem toda a razão. A burocracia artística do final do século 20, instalada na rede falida da museologia europeia, comporta-se cada vez mais como um lobby descarado e sem regras do comércio internacional das artes. Vejam-se, por exemplo, os sucessivos escândalos que atingiram as leiloeiras Sotheby's e Christi'es.

Por cá, as coisas atingiram as proporções de iniquidade e incompetência esperadas. Creio que escrevi há muitos anos uma catilinária contra o então todo-poderoso, e não menos ridículo, curador da colecção FLAD, um tal Castro Caldas, sobre os perigos, a inutilidade e sobretudo o desperdício económico envolvidos na substituição de regras racionais de investimento e gestão em arte, por meras regras de conveniência mais ou menos nepotistas, sem controlo nem responsabilização.

Ainda há poucos meses denunciei a aldrabice pegada que rodeia a permanente campanha de agit-prop em volta da biografia e da obra do Sr Cabrita Reis (o mesmo jantarista que conseguiu a proeza de inaugurar no mesmo mês uma estátua a um Presidente de Câmara na Maia e umas luminosas elucubrações plásticas em Veneza, com a cumplicidade inacreditável de quase toda a crítica e curadoria nacionais).
Tudo isto para sublinhar a evidência de o nosso sistema artístico se ter transformado há muito numa procissão de interesses paroquiais e retóricas imbecis. Apesar de ter havido um pintor de meninas que se comparou ao Figo (como se algum campónio de Xangai o conhecesse, como de facto conhece - e por vezes adora - Figo), a verdade é que tudo isto não passa de um jogo a feijões. Mas ainda assim, quando estão em causa dinheiros públicos, ou instituições pseudo-privadas cuja sobrevivência depende estritamente do Orçamento Geral do Estado, o abuso de informação privilegiada e a canalização forçada de recursos públicos para interesses privados (e familiares) é intolerável eticamente e deve ser penalizada. Por outro lado, temos que exigir uma regra qualquer para as comissões de serviço dos administradores de espaços vazios. Se, ao fim de quatro anos, continuarem sem público (excepto nos coquetails inaugurativos), devem, pura e simplesmente, ser substituídos por incumprimento de objectivos. As rotações do pessoal directivo, por sua vez, têm de deixar de ser, de uma vez por todas, uma pescadinha de rabo na boca e um assunto de família!

Neste contexto, a defesa de Pedro Lapa perante o ataque de Augusto M Seabra no passa de uma piedosa confissão de culpa. Os outros (Sardo, Pinharanda, Melo, etc.), pelos vistos, nem se atrevem a piar!

Tal como noutros dominios, a procissão ainda vai no adro. O essencial, porém, é que nenhum dos visados percebe patavina do que realmente está a acontecer na cultura contemporânea. Limitam-se a voar em bando e a escrever, muito de vez em quando, coisas ilegíveis. E por aqui morrerão. Cada vez menos contribuintes se dispõem, entretanto, a alimentar semelhantes pantomimas...

A arte pós-contemporânea já começou a ser outra coisa. Está bem e recomenda-se. Mas caminha para outra galáxia cultural, menos materialista, mais partilhada, mais democrática. Se me pagarem, eu digo-vos porquê. -- ACP


Arte e Sistema (a Culturocracia, Prosseguindo)
Por AUGUSTO M. SEABRA
Domingo, 28 de Dezembro de 2003

O-A-M
blog #22
4 (?) Janeiro 2004

quinta-feira, dezembro 04, 2003

Jorge Sampaio 2

Presidente critica presença militar Portuguesa no Iraque, em Argel!


içar de bandeira no IraqueO-A-M
blog #21
4 Dezembro 2003

Jorge Sampaio pode estar em alta nas sondagens, mas revelou há dias grande falta de sentido de Estado. Já escrevi que, embora considere desastrosa a intervenção dos EUA no Iraque, na sequência da sua actual estratégia militar (assimétrica) contra o Terrorismo, Portugal deve demonstrar fidelidade às suas alianças estratégicas, sobretudo agora que os espanhóis se tornaram, finalmente, atlantistas! A marcha europeia, a meu ver, tem que ser feita mantendo um equilíbrio dinâmico entre a necessidade de incrementar a nossa autonomia estratégica (i.e. político-militar) e o reforço criativo da Aliança Atlântica. A solidez do eixo atlântico é o verdadeiro segredo da paz mundial. Quem não perceber isto, que é simples, e que também diz respeito ao progresso do Norte de África, deveria voltar aos bancos da escola.

Mas o mais grave de tudo, no episódio argelino, foi ouvir o nosso Presidente criticar a presença militar invasora no Iraque, sabendo ele que tal referência atingiria os soldados da GNR destacados naquelas paragens. Fazer um reparo destes no nosso País já seria grave, pois não lhe compete a ele, mas ao Governo e à Assembleia da República decidir sobre estas questões. Mas fazê-lo num país estrangeiro, perante os respectivos líderes políticos, brada aos céus. E se amanhã houver um ataque fulminante contra os destacamento português? Que dirá o Senhor Presidente ao País? A primeira figura do Estado não pode desertar das suas responsabilidades em ocasiões tão sérias da vida colectiva!

Que o PR manifeste os seus argumentos críticos no lugar reservado das conversas institucionais que mantem com o Primeiro-Ministro, exercendo aí a sua legítima influência política, todos entendemos como coisa natural. Que vá agitar complexos colonialistas durante uma viagem presidencial a um País que pouco sabe da nossa vida, parece-me um acto de impensável irresponsabilidade.

Mas como um mal nunca vem só, a moribunda direcção do PS continua a asneirar alegremente sobre o Iraque. -- ACP

domingo, novembro 02, 2003

Outro PS por favor 4

MES: Movimento de Eleitores Socialistas.


simbolo do MES, 1974O-A-M
blog #20
02 Novembro 2003


A actual situação do Partido Socialista é de tal modo preocupante que justifica o nascimento de um movimento de eleitores formado por cidadãos que não tendo nenhumas pretensões a cargos partidários ou governamentais, pelo simples facto de se reconhecerem como eleitores socialistas consistentes, podem e devem intervir na vida do PS sempre que considerarem estar em causa a integridade ideológica deste Partido ou presintam ameaças intoleráveis à dignidade institucional do mesmo.

É o caso do actual vazio de liderança no PS. A sua Direcção, com particular relevo para o seu Secretário-Geral, lançou um dos principais pilares da Democracia Portuguesa na maior crise de credibilidade da sua história. E o pior, como vimos, é que nem Ferro Rodrigues se demite (como o faria qualquer pessoa minimamente sensata) nem a Comissão Política tem a coragem de exigir a demissão do Secretário-Geral, assumindo a direcção colegial do Partido até que um Congresso, regular ou extraordinário, eleja novo Secretário-Geral.

O PS não é apenas do seu Secretariado, não é apenas da sua Comissão Política, não é apenas dos seus militantes. É de todos eles, mas também do seu eleitorado, o qual, em última instância, decide da sua aptidão para governar, ou para ser oposição. Como partido de eleitores que é, o Partido Socialista não pode ser confundido com uma qualquer seita maçónica, nem muito menos com um grupúsculo de interesses inconfessáveis. A transparência funcional é uma condição inalienável da sua maioridade política num universo assente na lei, na liberdade e na democracia. E numa democracia contemporânea, atravessada por uma lógica comunicacional cada vez mais transparente e dialéctica, nenhum partido político disposto a assumir encargos governativos pode pôr em causa o princípio da separação de poderes e os graus de autonomia a que cada um destes constitucionalmente compete. Nem, por outro lado, subestimar a opinião pública democrática, quer esta se dê a conhecer sob a forma de sondagens, comunicação mediática ou manifestações de rua.

Creio, pois, que chegou o momento de disseminar electronicamente a ideia de que é possível e necessário criar um Movimento de Eleitores Socialistas, capaz de influenciar de forma sensível e positiva a vida do PS.

Como dar corpo a este Movimento (MES), qual a sua missão, que limites aceitar ao âmbito da sua actividade, eis algumas perguntas de momento sem resposta. A disseminação desta mensagem e as reacções por ela geradas poderão, assim o espero, propiciar-nos algumas indicações preciosas sobre o grau e preparação da Democracia Portuguesa para a renovação e revitalização da sua "praxis" pública.

Precisamos de uma Democracia Comunicacional, entendida necessariamente como uma expansão criativa do cerne ideológico dos regimes inspirados pela longínqua Revolução Francesa. Liberdade, Igualdade, Fraternidade, continua a ser a única direcção civilizacional por que vale a pena lutar. De novo, temos a ecologia mediática onde estamos todos imersos, e onde teremos que aprender a restabelecer os necessários equilibrios da cooperação. De novo, temos a aceleração tecnológica, cuja progressão é imparável, mas relativamente à qual teremos que impedir novas fracturas sociais irrecuperáveis. De novo, temos o inadiável desafio da sustentabilidade da espécie humana e do planeta por ela colonizado.

Os desafios deste século são filosófica e politicamente gigantescos. Confundi-los com a mesquinhez dum pseudo-líder seria um erro trágico, quanto mais não seja, pela paralizia e atavismos que tais experiências traumáticas costumam induzir nas imediações práticas e subjectivas.

Gostaria de imaginar o Movimento de Eleitores Socialistas como uma expressão inovadora da República Electrónica por vir. Como uma rede de reflexão e crítica totalmente descomprometida com o exercício partidário quotidianao e com eventuais tarefas governamentais. Entre as suas missões estariam, por exemplo, as que dizem respeito à actualização do ideário socialista e ainda as que tocam temas candentes da política nacional e internacional.

Aproveitando a economia própria das novas redes de inteligência, informação e comunicação, será aliás perfeitamente possível arquitectarmos uma web semanticamente sintonizada com as múltiplas e urgentes agendas políticas e culturais do agitadíssimo século em que acabamos de entrar, deixando definitivamente para trás um armário cheio de esqueletos calcinados e cadávares adiados.

O primeiro passo experimental deste MES é difundir a presente mensagem pelos nossos amigos. Eu encarreguei-me, por razões óbvias, de difundi-la junto da imprensa e do aparelho do Partido Socialista. -- ACP

quarta-feira, outubro 22, 2003

Jorge Sampaio 1

Presidente muito preocupado com violação de segredo de justiça...


palacio de belemO-A-M
blog #19
21 Outubro 2003

Da substância do discurso do Presidente da República devem reter-se, para além da sua reiterada preocupação com o sobressalto dos Portugueses a respeito do escândalo de pedofilia e com os "apressados julgamentos de opinião pública [que] são a pior maneira de procurar a Justiça", dois momentos esclarecedores, mas igualmente críticos e discutíveis: o primeiro, é o do reconhecimento que teve acesso a informação em segredo de justiça, mas que não fez uso dela para influenciar o curso do respectivo Processo; o segundo, é que os responsáveis pelas violações do Segredo de Justiça não devem ficar impunes. Vale a pena transcrever estas passagens:

"[...] No exercício das suas funções, o Presidente da República está na posição singular de ter direito a toda a informação necessária e legítima, e de nessa posição se relacionar com todos os órgãos do Estado e seus titulares.

Mas porque assim é, está fora de questão - e os Portugueses que me elegeram duas vezes bem o sabem - que o Presidente da República pudesse usar tal informação ou aproveitar tais relações para fins menos legítimos, designadamente - que fique bem claro- para obstruir ou influenciar a marcha da Justiça. [...]"

Apesar dos louvores beatos dos dirigentes do PS que se pronunciaram sobre o discurso, apesar da benção inusitada de Francisco Louçã, não deixa de se poder perguntar uma coisa muito simples: de quem obteve o Senhor Presidente da República informação em Segredo de Justiça sobre as investigações então em curso sobre o deputado Paulo Pedroso, na véspera da sua detenção? Do Procurador-Geral da República ou de membros da direcção do Partido Socialista? E se por acaso foi destes últimos, que segundo Marcelo Rebelo de Sousa, há mais de dois meses que sabiam das investigações sobre Paulo Pedroso, pergunto: quem deu início à escalada da violação do Segredo de Justiça? Pergunto: perante o que naquele preciso momento se configurou como óbvia tentativa de perturbação de um Processo judicial, que fez o Senhor Presidente da República? Não essa entidade facilmente responsabilizada pelo alarido "Casa Pia" (chamada "público") mas eu, simples cidadão de um País democrático, exijo sobre esta matéria um esclarecimento à principal figura do Estado!

Mas vamos à segunda citação:

"[...] Perante tudo isto - que é muito, e que é o essencial dos desafios que nos estão colocados - não faz qualquer sentido que as prioridades e preocupações dos portugueses continuem a ser, diariamente, secundarizadas, por uma qualquer novela judiciária, tantas vezes com criminosa e despudorada violação do segredo de Justiça, que não pode, naturalmente, ficar impune. [...]"

A palavra "novela", para bom entendedor, significa de facto "telenovela", com tudo o que tal interpretação pode significar de rebaixamento do assunto da Casa Pia a um mero entretenimento. Ora o escândalo de pedofilia que atinge gente famosa e altas personalidades da vida política Portuguesa não é "uma qualquer novela"! E tem --sim Senhor!-- prioridade sobre muitos e pesados assuntos da vida dos Portugueses. Por uma razão muito simples: é que nenhum Português pode confiar nas suas instituições democráticas --precisamente para a resolução de todos os grandes problemas nacionais-- enquanto não houver sinais claríssimos de que este Processo vai correr bem e sem perturbações políticas, até ao fim. Ora poucas horas depois do discurso presidencial aquilo que vimos foi o Senhor Bastonário dos Advogados pedir a cabeça do Senhor Procurador-Geral da República! Aliás, o próprio Presidente da República, na sua alocução justificativa, depois de apelar ao País para que pense noutros assuntos, também acaba por pedir, não na forma, mas na substância, a cabeça do mesmo Procurador! Ora isto é de facto inaceitável.

Espero bem que Durão Barroso, depois de resistir à provocação de Ana Gomes, resista a mais esta tentativa de chegar a um consenso sobre a condução do Processo Casa Pia, fora da competente esfera de autonomia institucional. É preciso respeitar o Segredo de Justiça, regressando à Casa de Partida, sem retaliações unilaterais. Ou então, quem não pecou, no caso vertente, que atire a primeira pedra!. Mas para além do Segredo de Justiça, há também que respeitar (e pelos vistos defender!), sem vacilação, o regime democrático da separação de poderes, descaradamente espezinhado nos últimos meses pelas mais variadas personalidades políticas e corporativas. Durante a ditadura salazarista é que estas fronteiras eram mero disfarce dum poder autocrático. -- ACP