quarta-feira, junho 28, 2017

Transformar a criatividade num setor estratégico

Primeiro automóvel: Benz Patent-Motorwagen, construído em 1886

Por uma Fundação de Arte e Tecnologia


Comunicação ao colóquio parlamentar sobre o modelo de organização do sistema de criação artística nacional realizado no Auditório António de Almeida Santos, da Assembleia da República em 27 de junho de 2017.

Introdução


Sabe-se, mais ou menos, que nada poderá mitigar melhor os efeitos recessivos dos picos demográfico (1962) e petrolífero mundiais (2016), e a deflação provocada pela queda inexorável da procura agregada mundial, do crescimento, da produtividade, do emprego, e dos rendimentos do trabalho, bem como a crescente desigualdade na distribuição da riqueza, do que uma nova revolução cognitiva, cultural e energética. No entanto, as novas tecnologias de que tanto falamos, e que têm sobretudo origem, entre 1994 e 2004, na evolução rápida da micro-computação, na automação, na Internet e nas redes sociais electrónicas, são uma pálida amostra da grande Revolução Industrial ocorrida entre 1870 e 1940. Se nada de mais radical ocorrer nas próximas décadas, a transição para uma era de "crescimento zero" será seguramente mais dramática do que neste momento podemos imaginar.

As tentativas de aumentar a procura agregada (mundial ou nacional) através do aumento dos défices públicos e privados, na esperança de um regresso da maré do crescimento, têm sido em vão, e a persistência nesta deriva macro-económica só poderá conduzir ao desastre financeiro e a crises profundas nos regimes políticos existentes. Os percursos temerários da Grécia e de Portugal na primeira década deste século foram mais do que elucidativos!

De onde virão então os recursos necessários para promover uma nova era cultural e de criatividade científica, tecnológica e artística, não só geradora de produtos cognitivos preciosos para melhorar a produtividade e as balanças comerciais dos países, mas igualmente indutora de novos equilibrios sociais?

Não há muitas alternativas.

A política monetária dos bancos centrais poderá continuar, por mais algum tempo, a deter as dinâmicas deflacionistas inerentes à mudança de era, mas o preço deste perdão ilimitado e contraditório das dívidas públicas, bem como da gigantesca bolha formada pela especulação financeira mundial, poderá ser mais alto do que se espera. Outra crise financeira como a de 2008, que implicações terá em países como Portugal, e na ordem mundial?

Eu só vejo uma saída neste labirinto colocado entre dois mundos, o mundo anterior, de inovação estrutural, energia barata e crescimento rápido, e a nova normalidade, que pode ser resumida como a chegada de uma era de crescimento ténue, ou de "equilíbrio"—para usar a expressão de David Hackett Fischer.

E a saída é esta:

— reorganizar a despesa pública de uma ponta à outra, tornando-a mais racional, mais eficiente e melhor orientada estrategicamente. Só atacando a despesa inútil e insustentável em setores como os da segurança social, educação e saúde, se poderá reorganizar a despesa estratégica do Estado, fazendo uso mais justo e racional de uma receita fiscal atingida por fadiga prolongada.

Uma das ideias que é possível e desejável explorar desde já, ainda que em modelo experimental circunscrito, é a criação do chamado Rendimento Básico Incondicional, do qual decorreria o fim de uma infinidade de esquemas assistencialistas redundantes, burocráticos e muito caros quando sopesados na perspetiva da redução da base contributiva provocada pela recessão demográfica (menos pessoas, menos pessoas ativas, e mais pensionistas.)

Outra ideia a caminho é a de revolucionar o sistema educativo e a assistência médica familiar, adaptando ambos os sistemas à rápida expansão e democratização das tecnologias de informação e comunicação e respetivas redes sociais.

Uma vez iniciada esta espécie de metamorfose orçamental, haveria seguramente recursos para uma aposta estratégica na criatividade, essencial à tal próxima revolução de ideias, sem a qual não sairemos do sobe-e-desce depressivo em que estamos.

A) O mapa


Antes de passar ao Modelo de Organização do Sistema de Criação Artística Nacional que proponho a este colóquio, seria essencial começar por desenhar um Mapa Público da Criação Artística em Portugal.

É neste mapa dinâmico que o Modelo poderá lançar verdadeiramente as suas raízes.

Será este mapa dinâmico que permitirá avaliar em tempo real a evolução e qualidade do sistema.

Será este mapa dinâmico que garantirá a transparência do sistema e a comparação permanente da sua performance com a performance de sistemas similares noutros países, nomeadamente europeus.

Este mapa dinâmico servirá também, pela sua própria natureza, para avaliar a qualidade e dinamismo das instituições governamentais e autárquicas no setor da educação artística, cultura e indústrias culturais e criativas.


B) Objetivo


Desenvolver uma rede nacional de criatividade artística dirigida a um universo de 250 mil pessoas.

C) As prioridades


1) Educação artística e desenvolvimento de estratégias de criatividade, desde o Jardim de Infância até à Universidade. Ou seja, apostar na melhoria do ensino público artístico, sem prejudicar, antes favorecendo, o ensino privado das artes. O Estado deve ser forte no que faz, e para tal, face a dificuldades fiscais crescentes, deverá eleger bem as suas prioridades, deixando de procurar estar em toda a parte.

2) Assumir no Orçamento de Estado a função estratégica da criatividade nas suas múltiplas potencialidades: desenvolvimento de competências (aprendizagem contínua e investigação), exportação cultural e consumo interno (de algoritmos, plataformas e conteúdos), e criação de emprego especializado e não especializado.

3) Criar uma Fundação para a Arte e Tecnologia (FAT), financiada pelo Orçamento de Estado (nomeadamente por receitas fiscais provenientes de direitos de autor e da produtividade acrescentada pelos autómatos), por receitas dos Jogos da Santa Casa, por fundos comunitários, e ainda por doações de particulares—com incidência favorável nos seus impostos.

O orçamento anual desta Fundação deverá aproximar-se dos 200 milhões de euros.

Atendendo a que a despesa do Estado anda pelos 87 mil milhões de euros, e que a despesa dos ministérios financiada por receitas gerais anda pelo 50 mil milhões de euros, o custo aqui previsto para estimular a criatividade e a criação artística e cultural a nível nacional estaria bem abaixo dos 0,5% da despesa dos ministérios, e não chegaria sequer a 0,23% da despesa inscrita no Orçamento de Estado de 2017*. O custo anual por indivíduo abrangido seria de 800 euros.

A gestão desta fundação deverá gozar de ampla autonomia e independência, contando para tal com a assessoria de um conselho consultivo alargado aos atores e representantes das indústrias criativas e culturais, assim como das principais instituições artísticas, educativas e culturais do país.

4) Potenciar a emergência de aceleradores de competências criativas e tecnológicas no tecido criativo instalado (media labs, festivais, projetos criativos plurianuais, programas de intercâmbio internacional, nomeadamente com os países da lusofonia), através de melhor despesa pública, linhas de crédito bancário adequadas, e créditos fiscais indexados a resultados futuros.

5) Diminuição da discricionariedade na aplicação dos dinheiros públicos, através da publicitação, simplificação e escrutínio dos processos de candidatura e aprovação de projetos, atribuição de subsídios e outros apoios, assim como da avaliação de resultados.

Esta é, como se calcula, uma reforma de fundo!

António Cerveira Pinto


POST SCRIPTUM

* No Orçamento de Estado de 2017 (~87 mil milhões de euros), a despesa total efetiva do Ministério da Cultura, que passou a abranger a RTP, é de 444,8 milhões de euros, ou seja, 0,51% da despesa pública, assim distribuida:

  • MC: 209 milhões de euros
  • RTP: 235,8 milhões de euros
Se tivesse sido criada, à semelhança do que fez em tempo Mariano Gago no ministério da educação e ciência, uma Fundação para a Arte e Tecnologia, à qual seria atribuída uma dotação na ordem dos 200 milhões de euros, o orçamento da cultura ficaria assim:
  • MC: 209 milhões de euros
  • FAT: 200 milhões de euros
  • RTP: 235,8 milhões de euros
Total: 644,8 milhões de euros (0,74% do OE2017)


Como decorreu a sessão parlamentar.

Antes de mais, fui muito bem recebido pelos senhores deputados, à exceção do CDS e dos Verdes, que não apareceram. Agradeço, naturalmente, ao Bloco de Esquerda, que teve a iniciativa de propor o colóquio, ao PSD, ao PS e ao PCP, a oportunidade de expressar as minhas opiniões na casa da democracia.

O auditório esteve longe de encher. Por outro lado, os convidados (refiro-me à assistência) que marcaram a sua presença e animaram o colóquio eram na sua esmagadora maioria criadores e produtores oriundos das artes performativas, sobretudo teatro (a maioria), e dança. Havia alguns protagonistas do setor das artes plásticas, que se mantiveram em silêncio. Não me apercebi da presença de autores ou produtores das áreas do cinema, video, fotografia, música. Será que estes últimos estão satisfeitos? Ou já desistiram? Não sei.

O que mais me surpreendeu das intervenções oriundas do teatro e da dança foi a sua quase meticulosa desmontagem do logro que tem aparentemente sido a política cultural do governo de António Costa, cuja existência depende, como sabemos, do apoio parlamentar do PCP e do Bloco de Esquerda.

Algumas ideias foram mesmo cortantes.

Exemplo 1: no VIII Governo Constitucional (1981-83), chefiado por Francisco Pinto Balsemão, Francisco Lucas Pires dedicou à cultura 0,26% do Orçamento de Estado, enquanto o governo de António Costa (2015- ), apoiado pelo PCP e pelo Bloco, dedicou 0,2%.

Exemplo 2: dos 209 milhões de euros que tocaram ao ministério da cultura em 2017, apenas 6,2% (ou seja, uns 13 milhões) financiaram a atividade dos produtores independentes. Em 2006, o dinheiro aplicado na produção e criação artísticas independentes (da tutela estatal) foi da ordem dos 20 milhões de euros.

Exemplo 3: o PS, em 2011, procedeu a cortes no orçamento da produção independente na ordem dos 23%, o PSD-CDS agravou estes cortes elevando-os para 38%, finalmente o governo de António Costa, apoiado pelo PCP e pelo Bloco, mantiveram até agora os cortes sucessivamente realizados pelos dois governos anteriores, não se sabendo até à data deste colóquio o que será em 2018 a famosa aposta de António Costa na cultura.

Para já, sabe-se que a burocracia não parou de crescer e de torturar administrativamente quem afinal é a principal origem e justificação da existência de edifícios do Estado dedicados à cultura, do património cultural, dos ministros e secretários de estado da cultura, dos diretores-gerais, presidentes de institutos e diretores de museus, deputados e comissões parlamentares, e ainda alguns milhares de funcionários públicos que, por junto, consomem 92,8% das receitas fiscais (e dívida pública) dedicados pelo estado ao universo cultural.

Mais socialista, é difícil!

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