Mostrar mensagens com a etiqueta Bruno Latour. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Bruno Latour. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, janeiro 01, 2021

Da utopia 2.0 à extinção

Clicar para ampliar

Neste blog o tema do colapso do homem moderno é, por assim dizer, recorrente e certamente influenciado por muitas leituras, desde The Limits to Growth (Meadows, Donella H et al., 1972) até à Teoria Ator-Rede de Bruno Latour, Michel Callon e John Law, passando pela desmontagem dos mitos em volta do homem moderno e das suas ciências e utopias políticas realizada por Jean-Francois Lyotard. Por um lado, a civilização industrial assente no uso de fontes abundantes de energia, altamente calóricas, facilmente transportáveis e baratas (carvão, petróleo, gás natural) ao longo de dois séculos de extraordinário crescimento e desenvolvimento tecnológico, encontra-se hoje confrontada com os limites ao crescimento impostos quer pelo fim do acesso fácil àquelas três energias fósseis, quer pelos efeitos da queima destes fósseis na composição da atmosfera. Por outro lado, a perceção de que a ação humana, sobretudo das sociedades mais ricas, mais produtivas, mais cultas e tecnologicamente mais avançadas, poderá estar na origem duma extinção em massa da vida existente no planeta, precedida por crises violentas e mesmo colapsos de cidades, países e regiões geográficas inteiras é, em si mesma, um desafio à qualidade e autoridade da racionalidade do homem moderno (1).

Perante este desafio sem precedentes, dada a sua escala planetária e a destruição dos equilíbrios naturais causados pelo homem moderno naquela fina película de vida que recobre o planeta (a que Latour chama zona crítica), parece haver dois tipos de resposta dominante: a de curto e médio prazo, que passa pela chamada agenda ecológica, cujos pontos críticos são a decisão de abandonar as energias fósseis e o controlo e limitação dos acessos aos recursos naturais disponíveis (pela via da monitorização e de leis de restrição às capturas e extrações); e a de médio e longo prazo, que passa pela descoberta de novos continentes de energia e matérias primas, a que Rory Rowan chama futurismo colonial.

Embora a espuma dos dias nos entretenha com futebol e coscuvilhice politiqueira, a verdade é que o nosso país tem vindo a apostar nas duas vias de mitigação potencial de uma crise que se aproxima com a força dum maremoto, seja pela aposta nas energias eólica e voltaica, nos metais raros (lítio, por exemplo) e no hidrogénio, seja, mais silenciosamente, pela preparação de uma nova aventura colonial precedida dum período de descobertas e exploração. Estas duas novas epopeias em surdina são, por um lado, a conquista do espaço, desde logo pela necessidade urgente de o libertar de uma crescente poluição aeroespacial, e a conquista da profundidade oceânica, onde se espera encontrar um novo e imenso manancial de espécies vivas, de minerais e de novas matérias primas (2). Interessa notar, desde já, que o arquipélago dos Açores, a par da extensão previsível da Platafoma Continental portuguesa, são o novo mare nostrum e a nova terra incognita que poderão oferecer ao nosso país uma segunda grande oportunidade de vencer a sua atual pequenez e pobreza relativas.

A grande dúvida reside, porém, na qualidade destas estratégias de mitigação. Haverá alguma consistência nos seus pressupostos, ou não passarão duma fuga em frente onde se misturam business as usual, especulação e wishful thinking?

NOTAS

1. 2020: The Year Things Started Going Badly Wrong

Posted on December 23, 2020 by Gail Tverberg

The economy is like a down escalator that citizens of the world are trying to walk upward on. At first the downward motion of the escalator is almost imperceptible, but gradually it gets to be greater and greater. Eventually the downward motion becomes almost unbearable. Many citizens long to sit down and take a rest.

In fact, a break, like the pandemic, almost comes as a relief. There is suddenly a chance to take it easy; not drive to work; not visit relatives; not keep up appearances before friends. Government officials may not be unhappy either. There may have been demonstrations by groups asking for higher wages. Telling people to stay at home provides a convenient way to end these demonstrations and restore order.

But then, restarting doesn’t work. There are too many broken pieces of the economy. Too many bankrupt companies; too many unemployed people; too much debt that cannot be repaid. And, a virus that really doesn’t quite go away, leaving people worried and unwilling to attempt to resume normal activities.

Some might describe the energy story as a “diminishing returns” story, but it’s really broader than this. It’s a story of services that we expect to continue, but which cannot continue without much more energy investment. It is also a story of the loss of “economies of scale” that at one time helped propel the economy forward.

(...)

With diminishing returns everywhere and inadequate sources of very inexpensive energy to keep the system going, major parts of the world economic system appear headed for collapse. There doesn’t seem to be any way to keep the world economy growing rapidly enough to offset the down escalator effect.

Citizens have not been aware of how “close to the edge” we have been. Low energy prices have been deceptive, but this is what we should expect with collapse. (See, for example, Revelation 18: 11-13, telling about the lack of demand for goods of all kinds when ancient Babylon collapsed.) Low prices tend to keep fossil fuels in the ground. They also tend to discourage high-priced alternatives. Unfortunately, all the wishful thinking of the World Economic Forum and others advocating a Green New Deal does not change the reality of the situation.

https://ourfiniteworld.com/2020/12/23/2020-the-year-things-started-going-badly-wrong/

2. “Beyond Colonial Futurism: Portugal’s Atlantic Spaceport and the Neoliberalization of Outer Space”

In November 2016 Portugal’s Ministry of Science, Technology, and Higher Education announced plans to open the Atlantic Spaceport, a logistics site for commercial space launches. Located in the Azores, a mid-Atlantic archipelago and autonomous region of Portugal, the Atlantic Spaceport is the lynchpin of national and European attempts to make the country an “innovation hub” for the fast-growing commercial space sector. With these plans, the Portuguese state, and its backers at the European Space Agency, are seeking to position the country as a player in the neo-liberalization of outer space, whereby the governance of space is restructured around the growth of private industry and a gradual shift from space exploration to space exploitation.

Understood within the context of Portugal’s post-financial crisis economic policy, the Atlantic Spaceport takes its place amongst other attempts to stimulate growth by drawing on the country’s colonial territories and relationships with former colonies—from “golden visa” programs offering residency to wealthy Brazilians investing in Portuguese real estate and courting investment from oil-rich Angolans, to the hotly contested plans to offer deep-sea mining concessions of the Azores’ coast. However, in official discourses Portugal’s venture into the commercial space sector is framed in terms of international cooperation, scientific collaboration, and economic development with the Atlantic Spaceport, positioning the country as a geopolitical pivot between Global North and Global South, with its colonial history figured as the launchpad for techno-futurist imaginaries of human life in space.

This lecture seeks to use the Atlantic Spaceport as a lens through which to explore the deep entanglement of colonial imaginaries and neoliberal governance in the context of European space exploration, rather than in the more familiar setting of American final-frontierism. It argues that only by understanding the ways in which contemporary visions of off-Earth futures are constitutively bound up with patterns of colonial thinking, capitalist accumulation, and neoliberal governance is it possible to imagine these futures otherwise and to develop modes of thought and practice whereby the promise of space exploration as a vector of freedom and justice – both on and off-Earth – might be realized.

—in e-flux lectures: Rory Rowan, “Beyond Colonial Futurism: Portugal’s Atlantic Spaceport and the Neoliberalization of Outer Space”

Published on April 18, 2018


Beyond Colonial Futurism
https://www.e-flux.com/video/198108/e-flux-lectures-rory-rowan-beyond-colonial-futurism-portugal-s-atlantic-spaceport-and-the-neoliberalization-of-outer-space/

Portugal Space
https://ptspace.pt/pt/home/

AIR CENTRE
https://www.aircentre.org/events/

Space Resources
https://space-agency.public.lu/en/space-resources.html

Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental (EMEPC)
https://www.emepc.pt/

sábado, dezembro 19, 2020

Um parlamento para gaivotas

 

Ana Marques Maia/ Público
video still (pormenor)

 

Projecto de Resolução n.º 807/XIV/2ª

Recomenda ao Governo a criação de um Grupo de Trabalho para dar resposta ao crescente conflito entre gaivotas e humanos

A crescente ocupação humana dos espaços naturais tem vindo a criar algumas situações de conflito entre os humanos e os animais, usualmente com perdas para estes últimos. São inúmeras as espécies que têm sofrido decréscimos populacionais devido a interacções negativas, por perda de espaço para nidificarem, se alimentarem e descansarem. No entanto, algumas espécies têm conseguido adaptar-se aos espaços urbanos, podendo, contudo, esta adaptação resultar em situações de conflito.


A proposta legislativa da deputada não inscrita Cristina Rodrigues é um passo em frente no que poderia ser uma alteração histórica da Assembleia da República: um parlamento dos seres animados e inanimados que tornam a vida humana possível, e habitam na chamada zona crítica do planeta. 

Há demasiados deputados no nosso parlamento: 230. 170 seriam suficientes. Podemos até afirmar que para defender os interesses particulares dos portugueses, 100 pessoas eleitas seriam mais do que suficientes. Os outros 70 representantes seriam deputados e deputadas de outras formas de vida: corais, minhocas, lémures, sapos, polvos, gaivotas, abelhas, ursos, cavalos, salmões, lobos, cães, linces, gatos, canários, pombos-correio, papagaios...; mas também araucárias, pinheiros mansos e bravos, oliveiras, sobreiros, azinheiras, magnólias, roseiras, hibiscos, ervilhas de cheiro; mas também a água doce, o mar salgado, os rios, o fogo, as praias, vales, montanhas, desertos e noites. Estas individualidades, quase sempre entes coletivos e simbióticos, estariam pois representadas no órgão legislativo máximo do país por direito próprio. Como? Por exemplo, através de gémeos idênticos (identical twins). Estes representantes estariam de algum modo ligados a atores e jogadores inteligentes, ciber-humanos, dotados de ultra-sensibilidade e enorme espírito de responsabilidade e colaboração. Neste parlamento das coisas (causas) os trabalhadores assalariados defenderiam as suas causas (as suas coisas), tal como o fariam os empresários, os muito pobres e os muito ricos, as rolas migrantes, as gaivotas e os cagarros de São Jorge, os linces da Serra da Malcata, as lagartixas, as lagoas saudáveis e as lagoas em processo de eutrofização avançada, as nuvens e o mar.  

A ideia de um parlamento das coisas (things, cousas, do latim causă, causa) foi proposta por um filósofo francês chamado Bruno Latour. Sempre me fascinou a sua ANT (Actor Network Theory). Devo, porém, confessar que não aprofundei a ideia lendo ou escutando este autor de modo sistemático, seja por recear alguma deceção, seja por preferir divagar livremente sobre aquela repentina iluminação. A influência universitária deste pensador híbrido é hoje muito significativa, nomeadamente na proposta de novos paradigmas para a ação cognitiva e política, por exemplo, através do que designa “thought exhibitions”, as quais certamente ajudam a compor a didascália da sua filosofia, mas pouco acrescentam, em minha opinião, aos problemas teóricos e práticos da arte contemporânea e pós-contemporânea. Leibniz (1714), Gabriel Tarde (1893), James Lovelock (1965-72), Lynn Margulis (1971), Donna Haraway (1984), e obviamente Jean-François Lyotard (1979), herdeiro do pós-humanismo revolucionário e marxista (L’Inhumain, 1988), são referências importantes no pensamento de Latour (1987).

A questão identitária que re-emergiu tão fortemente no início deste século, sobretudo como causa e consequência do 11 de Setembro, é uma representação da impossibilidade material e humana de uma modernidade global, de uma efetiva democracia global, de uma verdadeira liberdade internacionalista dos povos, em suma, é uma imagem da crise que nasce da grande religião laica falhada, o marxismo. Esta pretensa ciência anunciou o enterro das velhas religiões e a libertação dos povos de todo o mundo. O destino e o caminho somariam uma nova totalidade construtivista. Mas como os sonhos da razão nas gravuras de Francisco de Goya, os muitos herdeiros de Hegel fartaram-se de gerar monstros. 

Estamos há já algum tempo a entrar numa outra fase da luta de classes, no sentido matemático e lógico da expressão. No horizonte, pressentimos um conflito de interesses subjetivos e objetivos de enormes dimensões. Desta vez, porém, os humanos não são os únicos atores da guerra de classes, nem sequer os principais protagonistas desta agonística territorial e identitária. Agora é a vez da revolução alastrar às ‘coisas’ em geral, às causas em geral. Haverá, porventura, uma convulsão animista de proporções bíblicas. Os demónios e os anjos enterrados regressarão com toda a sua força, penetrando-nos, pobres arrogantes, até ao mais ínfimo das nossas células e membranas.

Gaia, ao contrário do green business as usual, não é o ‘planeta azul’, não é um ‘organismo’, mas antes uma propriedade emergente da interação entre organismos, como Lynn Margullis bem argumentou. Na feliz formulação de uma estudante sua, “Gaia is just symbiosis as seen from space”. 

Latour e outros chamam a esta propriedade emergente, a esta simbiose, ‘zona crítica’, uma espécie de pele do planeta, ou ‘verniz’ (outra expressão de Latour) a que também se chama vida, mas de que fazem parte vida e não-vida, semi-vida e sobre-vida. 

Nesta membrana planetária única, animais modernos, animais antigos (arqueia) e proto-animais interagem com plantas, fungos, bactérias e vírus, com o oxigénio que as algas e as florestas produzem, com a água salgada, o sal e outros minerais, com a água doce dos rios, lagos e aquíferos, e por aí adiante. 

O Sol e a Lua, a força gravitacional e a rotação da Terra, ou ainda a atividade nas regiões profundas do planeta, que por exemplo se manifesta na atividade vulcânica e tectónica, e traz ouro e petróleo à superfície, está de algum modo fora do microscópio de Bruno Latour, talvez por serem coisas sobre as quais os humanos são totalmente incapazes de interferir Creio, aliás, que será esta impossibilidade de impor constrangimentos ao Sol (não há vacina possível contra as explosões do grande astro que nos aquece e é certamente o nosso único Deus) a razão pela qual Bruno Latour restringe o seu mundo de possibilidades, ficando de algum modo prisioneiro da tradição filosófica francesa do pós-guerra no seu irreprimível desejo de descoberta de um novo Leviatã, desta vez ecológico e reticular. Latour evita os telescópios, preferindo as lunetas e os microscópios. 

A metáfora do ‘parlamento das coisas’ é uma experiência mental cuja principal utilidade é demonstrar a insuficiência e até a insignificância dos parlamentos humanos resultantes de uma crise de comunicação e de colaboração entre todos os atores da Mãe Terra. Há, por conseguinte, um frenesim de vozes não humanas que os humanos terão que aprender rapidamente a reconhecer, para poderem dialogar, antes que seja tarde demais. Esta zona crítica a que chamamos vida, um rizoma de cadáveres produtivos (apesar de sempre esquisitos), rebentos, nados mortos e seres que nascem, crescem e morrem, é uma raridade absoluta no universo que conhecemos. Na nossa arrogância e medo, acreditamos que somos os únicos responsáveis pela extinção aparentemente em curso. Para salvar a pele, tudo faremos para reverter o infeliz desfecho da rã que puseram numa panela de água que foi aquecendo lentamente. Oxalá!


Nota soturna sobre o momento que passa...

A China deixou escapar o génio da garrafa. Passarão muitas décadas até que este descuido, ou ação premeditada, seja perdoada e esquecida. Espera-nos um longo inverno micro-biológico pela frente. As economias que resistirem ao colapso em curso, não terão condições nem vontade de regressar à velha normalidade. Outra normalidade nascerá deste holocausto provocado pela incúria e ganância humanas. Se algo de útil podemos fazer neste momento, é conversar sobre o que nos está a acontecer. Estamos a caminho dum colapso catastrófico e duradouro? Se já sabemos que teremos que mudar de vida, se houver vida para mudar, porque não começamos já? Os pequenos gestos contam.

Não foi o vírus que fechou os humanos em casa. Fomos nós!


Nota de esperança

A última filosofia nascida em França dá pelo nome de Realismo Especulativo. Quentin Meillassoux é o seu principal expoente. Contesta uma vez mais a filosofia kantiana do conhecimento. E retira, uma vez mais, a centralidade humana do processo cognitivo e ontológico. O evento certamente contingente conhecido por SARS-CoV-2, e o desfecho que resultar deste ‘acidente’, serão certamente dois oportunos testes de resistência a mais esta tentativa de instaurar e prosseguir uma ontologia orientada para os objetos, na qual o humano não tem lugar.


REFERÊNCIA

Bruno Latour recebeu recentemente o prémio Spinozalens, precisamente focado no seu trabalho sobre o parlamento das Coisas (1989). Eis a sua conferência dada ao receber o prémio da International Spinozaprijs Foundation.