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terça-feira, setembro 27, 2016

Sexo, Mentiras e Propaganda




Os cães de Pavlov


Recebi, como é habitual, um email propondo os temas da Política Sueca da semana. Entre estes era impossível escapar ao que se anunciava por toda a imprensa escrita e audiovisual, mesmo antes da coisa aparecer, como o escândalo literário do ano. Tem um título: Eu e os Políticos—o que não pude (ou não quis) escrever até hoje. Tem autor: José António Saraiva, filho de um prestigiado historiador de literatura portuguesa que fora dos primeiros intelectuais a dissidir do PCP. Além de arquiteto, o Saraiva, como também é conhecido, foi diretor do Expresso durante vinte anos (1985-2006), fundador e diretor do semanário Sol durante uma década (2006-2016) e pretende agora, ao que parece, instaurar um novo estilo de retratística política, de pendor essencialmente literário, para não dizer mesmo, libertário. Curiosamente, a biografia de José António Saraiva que podemos ler na Wikipédia não menciona a sua inglória criação do semanário Sol. Tal como Paulo Portas, pretendeu matar o pai, perdão, o Expresso, e também falhou o desígnio.

A propaganda demolidora sobre o livro Eu e os Políticos, ou melhor dito, sobre o seu autor, começara numa bem conhecida orquestra mediática de nome Global Media, dona das publicações de referência, Diário de Notícias, Jornal de Notícias, Açoriano Oriental e TSF, e de mais uma dúzia de publicações menores, como o Dinheiro Vivo, Notícias Magazine, Evasões, ou O Jogo. O que era e é um livro razoavelmente bem escrito e divertido, composto por quarenta e dois incisivos retratos de personalidades conhecidas dos portugueses tornou-se, em menos de 48 horas, num escândalo supostamente erótico cuja velocidade de propagação me fez lembrar os episódios tabloidescos em volta dos videos pornográficos de Tomás Taveira, ou do famoso boato sobre a entrada nas Urgências do Hospital Santa Maria da cantora de uma então famosa 'girl band' depois de uma noite de sexo anal com um jogador de futebol guineense.

Mas como foi possível tamanho embuste sobre uma crónica de costumes que tão bem retrata alguma da gente que há décadas entra diariamente, e por vezes várias vezes ao dia, em nossa casa? Quem montou este circo de pulgas amestradas da opinião mediática? (1)

Não sou leitor de José António Saraiva, até porque deixei de ler regularmente jornais portugueses há uma boa quinzena de anos. Li-o muitas vezes quando ainda comprava semanalmente o Expresso, e sempre gostei da sua prosa enxuta, sintética e assertiva, apesar de nunca me ter interessado muito pela vidinha dos nossos políticos, as suas manias e gritantes limitações intelectuais, resistindo assim, instintivamente, à armadilha telenovelística de tentar perceber o nosso presente e o nosso futuro a partir das intrigas diariamente tecidas pela partidocracia que nos conduziu a um cada vez mais evidente abismo. Prefiro olhar para as tendências que movem as coisas apesar do que dizem fazer os seus declarados, mas quase nunca determinantes, atores e figurantes. “Descobri que a maior parte dos problemas se resolvem por si próprios. Sem ser preciso fazer nada”, terá dito um dia António Guterres a José António Saraiva, encostado a um balcão do Pabe. Frase certamente extraordinária, corroborada, aliás, por algo parecido que outro ex-ministro socialista me confidenciou um dia sobre a impreparação dos governantes portugueses horas antes de qualquer reunião importante em Bruxelas, e que define tão bem, lapidarmente mesmo, a Política à Portuguesa. Se for verdade, como penso que é, esta indolência aparentemente congénita dos nossos políticos nascidos do colapso da ditadura salazarista não deixa de ser um grave obstáculo ao nosso futuro coletivo. Acreditar, praticar e promover este género de indigência abre caminho a que os problemas, por vezes, acabem por resolver-se da pior maneira possível, com trágicas consequências para as suas vítimas, ironicamente as mesmas que elegem regularmente esta espécie de políticos.

Tinha que comentar o livro...

Procurei-o. Primeira tentativa, umas dez livrarias depois, nada. Em desespero de causa telefonei na quinta-feira passada à editora. O livro estava esgotado. Nova edição sairia esta semana. Mas eu precisava de o ler até sábado! Já no Porto, voltei à rua depois de umas dicas da Gradiva. Dirigi-me à FNAC da Rua Santa Catarina. Nada. Apressei-me em direção à Leya, na mesma rua. Nada! Havia ainda naquela zona uma derradeira hipótese: a Bertrand do CC La Vie, na Rua Fernandes Tomás. Deambulei pela livraria à caça do exemplar. Comecei pelas novidades, e nada. Dirigi-me à caixa do estabelecimento para a derradeira pergunta. Uma pessoa na minha frente está a ser atendida. Nervoso, volto a olhar para trás, escrutinando as prateleiras. Mesmo diante do meu joelho, o que não vira antes lá estava: três exemplares da quarta edição do “livro proibido” esperando por leitores tão apressados quanto eu. Paguei o exemplar e comecei de imediato a lê-lo, enquanto me afastava do La Vie em direção a casa (2).

Devorei, enquanto caminhava, os três capítulos mais referidos como prova de que tinha nas mãos o fruto proibido de um ogro literário capaz de violentar sem qualquer pudor a confiança e a intimidade alheias: os retratos dedicados a Miguel e Paulo Portas, e o dramático capítulo sobre Margarida Marante. Não há nada nestes três textos que não seja público e objeto de inúmeras referências e descrições na nossa imprensa, incluindo a imprensa cor-de-rosa, e a de escândalos.

Mas se é assim, que incomodou então tanto a aldeia saloia do nosso jornalismo?

Li o livro de uma ponta à outra. As anedotas e indiscrições que pontuam de cor a escrita minimal de José António Saraiva revelam tão só aparências caleidoscópicas comuns à maioria dos humanos. Nós somos uma espécie de cebolas caracteriológicas e comportamentais. O que damos a ver de nós próprios a toda a hora é sempre uma construção de geometria variável, mais ou menos desnudada, mais ou menos mascarada, ou cuidada, e sempre estratégica, por mais que pensemos o contrário e nos julguemos espontâneos. Isabel Moreira tem tatuado no braço esquerdo o número 080110? Estou a revelar uma inconfidência, ou a devassar a privacidade de alguém? Não, porque a dita cicatriz é pública e frequentemente exibida pela ilustre deputada da esquerda socialista pós-moderna. Apreciei, em suma, a escrita na primeira pessoa, ao mesmo tempo honesta, literariamente cristalina, por vezes cáustica, outras roçando a brejeirice, mas sobretudo com momentos de inesperado humor.

Nada do que li justificaria o alvoroço, salvo... talvez, a incomodidade que o livro terá porventura provocado em Daniel Proença de Carvalho, advogado de José Sócrates, e Presidente do Conselho de Administração da Global Media (ex-Controlinveste), conglomerado empresarial do regime cujas dificuldades financeiras parecem ser óbvias, a avaliar pelas sucessivas e recentes entradas de capital angolano (dezembro de 2014) e chinês (em 2017?) no mesmo. A relação de Proença de Carvalho com o suspeito de corrupção José Sócrates, o papel que este advogado sibilino do regime obviamente desempenha no empório de propaganda que dirige, e as pulgas jornalísticas que mordem à voz do dono, formam uma espécie de orquestra de manipulação do inconsciente coletivo, que é preciso denunciar. O Photomaton de José António Saraiva, ao inscrever esta realidade lamentável em livro, subindo o patamar da sua escrita para as prateleiras das livrarias e bibliotecas, fá-lo certamente, e assim se produziu o mesmo efeito que as campainhas de Pavlov.




NOTAS

  1. A menção reiterada ao estado mental duvidoso de José António Saraiva é um dos principais diapasões porque afinaram várias das crónitas escritas e audiovisuais sobre o livro maldito e o seu autor. Atendendo a que alguns dos escribas e papagaios estabeleceram esta conexão psiquiátrica sem terem declaradamente lido o livro demonstra sem margem para dúvidas o grau de indigência a que chegou uma parte da corporação jornalística indígena. Felizmente que nem todos afinam por este cânone autodestrutivo.
  2. Eu e os Políticos—o que não pude (ou não quis) escrever até hoje compõe-se de 42 retratos de outras tantas personalidades conhecidas da vida política (37), dos negócios (3), da advocacia (1) e dos média (2). Apenas três mulheres constam como personagens desta pequena história (o que dá bem ideia do machismo dominante na vida pública indígena): Margarida Marante, Leonor Beleza e Manuela Ferreira Leite. Há quem tenha direito apenas a duas ou três despiciendas páginas de atenção (Nuno Morais Sarmento e José Pacheco Pereira), e há quem tenha direito a mais: Álvaro Cunhal (um extraordinário retrato realizado em seis páginas), Marcelo Rebelo de Sousa (a radiografia dum presidente traquina), Mário Soares (nove páginas cheias como o personagem), José Manuel Durão Barroso (doze páginas necessárias sobre um transmontano urbanizado em calda maoista), Aníbal Cavaco Silva (a mais longa descrição do político com mais horas de função nas duas mais poderosas posições do poder constitucional), José Sócrates (retrato fatal em 10 pp.), Jorge Sampaio (o 'hipócrita', como o designou Guterres, em 12 páginas), Manuel Maria Carrilho (dos seus hábitos gastronómicos espartanos, à ascensão e queda dum político embrulhado pela imprensa cor-de-rosa— 7 pp.),  António Costa (o Babouche em quatro páginas), e mais alguns...
Atualização: 28/09/2016 10:39 WET

quinta-feira, junho 25, 2015

Revolução sem condutor?

Salazar, colocado no poder pelos militares de um país na bancarrota

Do diagnóstico da crise ao futuro vai ainda uma grande incerteza


Acabei de ler este mês dois livros que recomendo vivamente: Pensar o que lá vem—Para acabar com o Portugal pasmado, de Manuel Maria Carrilho, e Carta a um Bom Português—Manual para Fazer a Revolução de Cidadania que Falta para Resgatar o País, do corajoso e ativo jornalista, José Gomes Ferreira.

O primeiro é uma reflexão rara no panorama português da Filosofia Política, e deveria ser lido por todos aqueles que têm votado no Partido Socialista e no resto dos derivados adulterados do marxismo que ainda subsistem no país e no parlamento. Trata-se de uma viagem autocrítica, em sentido lato, ao fim do conforto das boas ideias. É certo que Manuel Maria Carrilho não se coloca nunca fora da órbita do Partido Socialista, que defende como uma identidade para lá das más conjunturas e dos desastrosos protagonistas. O PS é ainda, para o antigo ministro da cultura de António Guterres, a bóia de salvação num naufrágio que nunca mais acaba. À direita do PS, Carrilho apenas vislumbra a fuga em frente da burguesia financeira mundial, que vê como protagonista de primeira linha do individualismo comportamental e do neoliberalismo económico, e cujo enriquecimento pornográfico só poderá promover maiores desgraças no futuro. À esquerda do PS, não descortina mais do que uma mole de arteriosclerose ideológica, oportunismo sindical e aventureirismo hedonista no que resta da extrema-esquerda. A total e irremediável incapacidade da esquerda à esquerda do PS de voar eleitoralmente aconselha, na visão pragmática deste filósofo, promover o aggiornamento do PS, em vez da sua destruição na fogueira do populismo iconoclasta. Não acompanho este desejo reformista orgânico, mas percebo e respeito as suas motivações e ainda quem o acompanha no desiderato: Henrique Neto, Ventura Leite, Armando Ramalho, etc.

O segundo livro, que parece pertencer a uma trilogia iniciada com O Meu Programa de Governo, não é nem populista, nem neoliberal. Pertence, isso sim, a uma nova categoria de observação e posicionamento perante um regime basicamente rentista, devorista, neocorporativo, clientelar e rotativista, podre de oportunismo e corrupção, e que cavou a sua própria e irremediável sepultura. José Gomes Ferreira não conhece, ou melhor, não sente nem vibra com os velhos paradigmas morais da esquerda, e o que desta conhece são sobretudo mentiras, oportunismos e hipocrisia de circunstância. Ao mesmo tempo viu como o capitalismo indígena, historicamente frágil, prisioneiro de banqueiros, de rendeiros e de bandos de piratas socialistas (PS), sociais democratas (PSD) e populistas (CDS-PP), se transformou numa jangada a caminho do naufrágio, onde o salve-se quem puder acabaria por levar o país à falência e à perda de soberania financeira, económica e institucional. O que José Gomes Ferreira tem feito é identificar objetivamente, sem preconceitos, nem medos, os pontos de rotura do regime. Mas não só! Também exige uma mudança profunda no regime democrático, para o que reclama, como muitos de nós, uma nova Constituição, sem fantasias nem cintos de castidade hipócritas, aceitando ainda como boa a nossa integração na União Europeia, apesar das inúmeras e graves vicissitudes por que tem passado. No fim do livro ficamos a saber o que pretende quando convida o Bom Português a fazer uma revolução. José Gomes Ferreira quer uma nova Constituição e a Democracia de Qualidade reclamada, nomeadamente, por Henrique Gomes, Henrique Neto, Luís Campos e Cunha, ou Mira Amaral. Mas não diz como lá chegar, ou por outra, recomenda manifestações do bom povo português à porta da Casa da Democracia (a Assembleia da República), um comportamento individual consequente no dia a dia, e diz ainda que “temos de aproveitar a revolução electrónica para a pôr ao serviço da nossa Revolução de Cidadania.” Mas falta claramente um condutor, ou um navegador, para esta revolução. Quer dizer, falta uma síntese operacional estratégica dos pontos fundamentais a mudar, e meios para lá chegarmos. Falta, creio, uma ideia de plataforma abrangente, pós-partidária —no sentido de uma democracia sem hegemonia partidária—, capaz de congregar a maioria do país num processo credível de transformação.

Mais do que uma democracia de qualidade, precisamos de uma democracia qualitativa, isto é, de uma democracia não apenas decente, mas que seja também um edifício ideológico e cultural novo. Onde, por exemplo, a felicidade, o amor, ou a qualidade da água, do ar e os equilíbrios ecológicos sejam mais importantes do que o sucesso, o PIB, a produtividade, ou do que a taxa de crescimento. A realidade do planeta está a deteriorar-se rapidamente. Os humanos, ou se adaptam, ou extinguir-se-ão mais cedo do que o esperado, a par de muitas outras espécies em extinção.

Seja como for, os dados estão lançados. Basta compilar o muito que se tem escrito sobre a crise do nosso regime e sobre a crise mundial, e ainda a sobre a necessidade imperiosa de mudarmos de vida, para ficarmos com um diagnóstico suficientemente fundamentado, a partir do qual poderemos então modelar da melhor maneira a inadiável metamorfose do país.