quinta-feira, outubro 07, 2004

Marcelo 1

Santana e a liberdade de opinião


Se ninguém no interior do PSD tomar a iniciativa de declarar uma cisão ideológica e organizacional da deriva populista e autoritária que tomou conta do partido e da governação, Jorge Sampaio não encontrará motivo suficiente, à luz da actual Constituição, para demitir o actual Governo, dissolver a Assembleia da República e convocar Eleições Legislativas antecipadas.


Eu nunca votei no PPD/PSD. Quando era trotskysta votava na LCI e depois dessa inesquecível aventura juvenil votei consecutivamente no Partido Socialista, mesmo desconfiando frequentemente de alguns dos seus protagonistas. Ora esta circunstância nunca diminuiu o prazer com que sempre escutei e vi o comentário semanal de Marcelo Rebelo de Sousa ao longo dos últimos quatro anos e meio.
Todos conhecíamos o seu credo político e religioso, todos sabíamos por que clube de futebol torcia, mas precisamente por serem transparentes as suas convicções, mais valor adquiriam semanalmente os seus exercícios críticos sobre a situação do País. Fino na observação, arguto nos argumentos, claro nas palavras e sibilino quanto baste nas estocadas que regularmente enfiava nas suas vítimas circunstanciais, o comentário do “Professor Marcelo” chegava a milhões de Portugueses como um breve mas verdadeiro acto de consciência sobre a nossa condição colectiva. Mesmo quando percebíamos que tomava de ponta algum político em particular, aquele sermão de Domingo era um verdadeiro tónico para o começo de cada semana de trabalho. A sua voz valia mais do que o latim farisaico de toda a corja de cortesãos que louvam chefias, traficam influências e acautelam reformas. A isenção de Marcelo Rebelo de Sousa é sobretudo uma isenção autoral, baseada no respeito intrínseco da lógica dos argumentos e na ética dos factos a que se aplicam. Num País democrático e livre, o contraditório a exercer sobre as opiniões que expendia sempre teve (e terá!) o seu lugar próprio. Esse lugar chama-se liberdade de opinião e de imprensa. Não se chama tempo de antena governamental ou para-governamental, nem arreganhar o dente do autoritarismo, como sucedeu com o recado que Santana Lopes encomendou a Paes do Amaral e ao seu Ministro dos Assuntos Parlamentares (cujo nome desconheço, e não pretendo recordar).

Para saber o que está por detrás da pressão intolerável exercida pelo enigmático e pardo Sr. Paes do Amaral sobre Marcelo Rebelo de Sousa (uma pressão aliás ilegítima, ilegal e suficiente para retirar ao Sr Paes do Amaral a faculdade de empresariar negócios de comunicação) recomendo que se siga a pista do dinheiro. Como sempre sucede nestes casos de promiscuidade entre governantes e empresários, o segredo está quase sempre aí. Por exemplo, não é verdade que a Media Capital se encontra neste momento no meio de uma operação com o Metro de Lisboa, cujo fim é alastrar mais ainda a nódoa da publicidade que encharca o quotidiano de todos nós? Não se esperaria, ao invés, que o Metro de Lisboa, equilibrasse o uso de um espaço público exclusivamente pago com os impostos dos Portugueses e com Fundos Comunitários (igualmente pagos com os impostos de todos os Europeus) entre zonas reservadas à publicidade comercial e zonas reservadas a suportes de comunicação comunitária (por exemplo, de associações do pequeno comércio tradicional, Câmara Municipal de Lisboa, Associações Culturais da Cidade, Organizações Não Governamentais, etc.)? E já agora, pode o Metro de Lisboa negociar, sem recorrer a consulta pública, a cedência do espaço que ocupa (mas não é seu) a uma qualquer empresa com que resolva privilegiar relações de interesse? E se pode, deveria poder?

O caso da censura a Marcelo Rebelo de Sousa releva, todavia, de uma guerra mais profunda e que pode rebentar a qualquer momento. Trata-se do futuro do actual PPD/PSD. O Cavalo de Tróia chamado Paulo Portas encontra-se bem aninhado no âmago do velho Partido fundado, entre outros, por Francisco Sá Carneiro e Pinto Balsemão. Paulo Portas, depois de já ter atrelado o futuro político de Santana Lopes ao seu próprio calendário desconstrutivo, sabe que se for a eleições sózinho mostrará ao mundo que o seu PP, na realidade, não existe (e que portanto não passa dum parasita do PSD). Assim sendo, Paulo Portas tem que gizar um de dois cenários até 2006: ou garantir que o PP vai coligado com o PSD às próximas Legislativas, ou provocar a aparição de uma nova força partidária, sempre depois do prazo legal de dissolução da Assembleia da República, mas a tempo de constituir uma nova força partidária com capacidade de triplicar o ridículo score eleitoral do PP. Num caso e noutro, a sensibilidade social-democrata mais genuína do PPD/PSD está tramada!

Creio que é esta realidade profunda que, em última análise, explica a reacção de Marcelo Rebelo de Sousa, e as reacções solidárias para com ele de Marques Mendes e Pacheco Pereira. Não se pode fingir por muito mais tempo o facto de que a aliança entre Santana Lopes e Paulo Portas visa redefinir profundamente o actual espectro partidário. Ou muito me engano, ou teremos dois novos partidos nas eleições de 2006: o PSD, por um lado, liderado por Marques Mendes; e o PPD, por outro, com Paulo Portas na respectiva liderança (e Santana Lopes na corrida para a Presidência da República). Vai ser uma balbúrdia? Pois vai! Mas há alternativa? Não creio. As cartas deste jogo já foram jogadas...

Finalmente. como irá agir o PR?
Se ninguém no interior do PSD, tomar a iniciativa de declarar uma cisão ideológica e organizacional da deriva populista e autoritária que tomou conta do partido e da governação por efeito da sólida ligadura estabelecida entre Santana Lopes e Paulo Portas, separando assim o PSD do PPD, através de um Congresso fundacional que crie um novo Partido, Jorge Sampaio não encontrará motivo suficiente, à luz da actual Constituição, para demitir o actual Governo, dissolver a Assembleia da República e convocar Eleições Legislativas antecipadas.

Eu diria, portanto, que o futuro está nas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa, Marques Mendes, Pacheco Pereira, em suma, de todos os verdadeiros social-democratas do partido que Pedro Santana Lopes herdou sem nenhuma legitimidade.

O-A-M #55 07 Outubro 2004

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