domingo, novembro 19, 2006

Lisboa-Moscovo

Portugal: transiberiano e transatlântico
“[...] in early 2009, George W. Bush will fade into the wilderness, remembered (if we bother) for being the front man for the mother of all defeats — in Iraq, in the world-system, and at home for the Republican party.” — Immanuel Wallerstein Commentaries, Mother of All Defeats
Na Sexta Feira passada, dia 17 de Novembro, o Diário Económico anunciava na respectiva capa: “Russos da Gazprom entram no capital da Galp”. O sobressalto foi geral. Muito antes do previsto e acordado, a petrolífera nacional, que o Estado português foi alienando em troca de receitas preciosas para diminuir a dívida pública, prepara-se para admitir um novo parceiro estratégico na sua estrutura accionista. Nada mais nada menos do que o gigante russo do gás natural, que o bruto Putin salvou da rapina arquitectada pelos oligarcas do ébrio Ieltsin em articulação criminosa com a irmandade anglo-saxónica do petróleo.

Todos podemos imaginar que uma tal jogada, ou ensaio experimental, só poderia ter lugar como provocação e na expectativa de uma derrota em toda a linha da estratégia de quem anunciou a bondade e inevitabilidade de um Novo Século Americano. A família Bush e o carabineiro Cheney devem ter mandado alguém telefonar para Lisboa, indagando se a notícia do Diário Económico tinha mesmo fundamento ou se era uma brincadeira de mau gosto. Sócrates deve ter tremido. Mas, bem vistas as coisas, o Sr. Américo Amorim está no seu papel, e neste caso, a estratégia que promove apenas pode fortalecer a posição portuguesa em vários tabuleiros do xadrez político actual:
— aumenta o potencial de fornecimento de um dos principais bens energéticos deste século;
— diversifica, a prazo, a nossa dependência energética: Argélia, Nigéria, Rússia, Irão...;
— contribui para a muito necessária recuperação da estratégia atlântica do país (portos de Sines, Setúbal, Lisboa, Figueira da Foz, Aveiro e Leixões);
— e dá o mote para uma redefinição da geometria estratégica portuguesa, não apenas mais ambiciosa, mas sobretudo capaz de evitar uma simbiose suicida com a Espanha.

Ligar por terra Portugal ao resto da Europa significa sempre pedir direito de passagem à Espanha. Mas se o fizermos sabendo e demonstrando que temos as vias marítimas e aéreas abertas e bem oleadas, então nada teremos a temer do sempre arrogante iberismo castelhano.

Precisamos de diversificar as nossas parcerias estratégicas para lá dos nossos tradicionais aliados (EUA e Reino Unido), dos quais já só podemos esperar pouca ajuda e muitos problemas. Além do mais, é bem provável que os Estados Unidos, à beira de uma crise económica, social e política sem precedentes na sua história, se fechem sobre si mesmos, pondo de algum modo fim à globalização tal como a conhecemos hoje(1). Neste cenário, uma América repentinamente humilhada e atingida pela psicose securitária pode tornar-se numa ameaça perigosa à paz mundial(2). Pode, pelo contrário, adaptar-se aos futuros equilíbrios geo-estratégicos, fazendo algumas jogadas de antecipação. Por sua vez, a União Europeia, que continua sem liderança credível, depende energeticamente do Irão e da Rússia, o que não pressagia nada de bom. Putin, como se vê, parece acreditar que o Século Russo pode estar ao virar da esquina!

Quanto a Portugal, que deverá prever turbulências e mesmo estagnação no processo de fortalecimento político da União Europeia, tem que começar a pensar pela sua cabeça, fazer as suas apostas e ousar. Quem, para além da Alemanha, poderá estar verdadeiramente interessado em investir no fortalecimento estratégico de Portugal, nomeadamente por causa do seu óbvio potencial atlantista(3)? Já não são os Estados Unidos da América, nem sequer a velha Inglaterra. A Espanha, muito menos. Pois sim, é mesmo a Rússia de Putin e do nacionalista que se lhe seguirá.


Notas
1 — Sobre a crise sistémica mundial vale a pena ler o Boletim Europe 2020.
The US consumer, i.e. the US middle class, basically becomes insolvent, victim of overwhelming debt, a negative rate of saving, the bursting of the real estate bubble, the rise of interest rates and the collapse of US growth. All these elements are dependent, and mutually reinforcing, to plunge the United States, starting from the end of 2006, into an economic, social and political crisis without precedent?

2 — Sobre a tentativa americana de impedir a emergência de uma nova Rússia à frente da Eurásia, vale a pena ler, além do fundamental The Grand Chessboard, de Zbigniew Brzezinski, The Emerging Russian Giant Plays its Cards Strategically, de F. William Engdahl.
On October 10 [2006], Russian President Vladimir Putin flew to the German city of Dresden for a summit on energy issues with Germany's Chancellor Angela Merkel. On the agenda were proposed plans to more than double German import of Russian natural gas. Putin told the German Chancellor that Russia would 'possibly' redirect some of the future natural gas from its giant Shtokman field in the Barents Sea. The $20 billion project is due to come online 2010. Putin's Dresden talks followed an earlier summit in Paris in late September with Putin and French President Chirac and Merkel. A week after his Dresden talks, the Indonesian Navy Chief of Staff announced a remarkable shift away from that country's traditional purchases of NATO military equipment. Indonesia will buy twelve modern Kilo-Class and Lada-Class Russian submarines. Indonesia cited advantages of cost and reliability over NATO French or German equivalents.

3 — O transporte marítimo de matérias-primas, de combustíveis, de produtos transformados e semi-transformados, e mesmo de pessoas, será cada vez mais importante no futuro. A Europa Ocidental encontra-se numa situação de dependência extrema do petróleo e gás natural oriundos da Rússia e do Irão, da Argélia, do Iraque, do Mar Cáspio e do Médio Oriente. Necessita, por isso, de uma opção atlântica de recurso para a sua segurança energética (de que Lisboa poderá vir a ser a respectiva placa giratória), seja na direcção do Golfo da Guiné —Cabo Verde (sobretudo devido ao seu interesse militar), São Tomé e Príncipe, Nigéria, Angola—, seja na direcção da América do Sul, cuja autonomia estratégica depende cada vez mais de alianças fortes com a Eurásia; seja para a consolidação de pontes físicas mais longínquas, nomeadamente com a China e a India (as quais precisam, tal como a Europa Ocidental, de uma boa escapatória à dependência do vasto império energético russo. Finalmente, Lisboa está nas melhores condições para servir de amortecedor diplomático entre os Estados Unidos e o actual movimento das placas geoestratégicas globais.

PS — Juro que não recebi um Euro do Amorim para escrever o que acabo de assinar!

OAM #153 18 NOV 2006

2 comentários:

Anónimo disse...

Efectivamente, no hay nada, o muy poco que temer al iberismo castellano. Castilla ya no es, ni mucho menos, lo que era hace 500 anhos. Castilla es una region empobrecida y con muy poco poder dentro de una Espanha fuertemente descentralizada, la mas descentralizada de Europa, y con con extrairdinario resugir economico.
El iberismo ha sido siempre mas portugues que español aunque algunos nos gustaria que tambine fuese un impulso en este lado de la península.
Creo que caminamos a muy alta velocidad hacia una integracion efectiva Espanha -Portugal. Pero no veremos ni un tratado de unio, ni una capitan unica de la Republica Iberica ni un partamento comun.
Lo que vamos a ver es un incremento poderoso de lo que ya hay: comercio, trabajo, inversiones, turismo, influencia portuguesa en galicia... iberismo del s XXI.
Olvidense de la arrogante Castilla que no existe desde hace 200 años.

Pep Caballer Barcelona Catalunya

António Maria disse...

Eu dou-me bem com as Espanhas (tenho muito bons e fieis amigos galegos, extremenhos, andaluzes e catalães). Também aceito que boa parte do anel marítimo da península (Portugal, Galícia, País Basco, Catalunha) enfraquece de algum modo o centro de gravidade madrileno. Todavia, precisamente porque conheço a sensibilidade dos processos autonómicos da Espanha actual --uns mais intitucionais do que outros, uns mais federalistas que outros e uns mais independentistas que outros--, e sei também que os principais países europeus continuam a seguir as suas próprias agendas nacionais em matéria de política externa, temo que a profunda crise geo-estratégica e económica mundial que aí vem, por efeito da longa crise energética, de recursos e climática que já começou, possa complicar repentinamente o processo de integração europeia, remetendo de novo para os estados nacionais a responsabilidade de garantir as respectivas integridades económico-territoriais.