segunda-feira, dezembro 08, 2025

O mundo depois da guerra na Ucrânia


Uma leitura do National Security Strategy 2025

Este documento do governo americano, em estilo jornalístico direto, cuja leitura recomendo, condensa uma alteração profunda na diplomacia americana, que configura basicamente o novo posicionamento dos Estados Unidos perante a emergência do que reconhecem ser um mundo multipolar (Estados Unidos, Europa*, China), onde, porém, tencionam continuar a ser militarmente dominantes, deixando embora de ser vendedores de bíblias e democracia. 

Objetivos principais consagrados neste documento, por vezes contraditório ou vago: 

— manter as vias de comunicação, nomeadamente marítimas, aéreas e eletrónicas, abertas e protegidas, tanto dos piratas convencionais, como de terroristas e estados com pretensões de dominação global ou regional; 

— impedir que os excessos de capacidade produtiva e comercial da China e da Europa continuem a esvaziar a América de fábricas, trabalhadores, conhecimento e tecnologia, agravando ainda mais o astronómico défice da sua balança comercial, usando para tal tarifas alfandegárias como arma destinada a restabelecer o  equilíbrio orçamental e uma agressividade mercantilista renovada; 

— consolidar as suas alianças estratégicas e parcerias no mundo, aumentá-las, até, nomeadamente na América do Sul e em África, para assim poderem manter o modelo cultural em que acreditam, mas sobretudo garantirem o acesso a recursos estratégicos imprescindíveis ao crescimento económico na era da robótica e da IA: metais, raros e não raros, energia, muita energia!

As considerações sobre o fim das grandes migrações dizem respeito apenas aos Estados Unidos, apesar das insinuações sem fundamento estatístico que dirigem à União Europeia. O cenário catastrófico que o documento traça sobre a Europa, cujo PIB em Paridade do Poder de Compra é maior do que o dos Estados Unidos (1), é claramente desproporcionado. Creio mesmo que a Europa, além de ser o principal parceiro comercial dos Estados Unidos (2), é também o único contraponto credível dos excessos da ganância monopolista norte-americana. 

Curiosamente, ao anunciaram a sua descolagem orçamental dos sistemas de defesa dos países aliados, libertaram a Alemanha e o Japão dos constrangimentos impostos a estas duas potências mundiais no rescaldo da derrota estes dois países na Segunda Guerra Mundial. Entre o Trump I e o Trump II, o Japão construíu dois porta aviões e acaba e ameaçar Pequim relativamente às suas putativas intenções de invadir a Formosa, alterando, se o fizer com sucesso, o equilíbrio estratégico na região do Índico-Pacífico.

Querer a paz através da força, o mantra que os rapazes do Trump repetem sem parar, está, na realidade, à prova, nomeadamente na Venezuela. Um bom teste para verificar a consistência da estratégia que acabam de anunciar aos quatro ventos.

Creio que os Estados Unidos temem, de facto, a Europa (um receio que vem de longe, como se sabe...), sobretudo se esta, num tempo pós-Putin vier a incorporar a Ucrânia na União Europeia e numa NATO-Europa, e conseguir, por outro lado, estabelecer uma parceria estratégica com a Rússia, o que colocaria os Estados Unidos e a China numa situação geo-estratégica mundial inteiramente nova e duradoura.


NOTAS

1. PIB em Paridade do Poder de Compra da Europa, considerando as medições do FMI, Banco Mundial e os números da CIA (The World Factbook), é superior ao dos Estados Unidos e inferior ao da China.

2. Se considerarmos a Europa democrática alargada (incluindo a União Europeia, o Reino Unido, a Suíça, a Noruega e outros países democráticos, excluindo a Rússia e a Ucrânia), o volume total de comércio com os Estados Unidos supera claramente o comércio com a China, sendo portanto esta a maior parceira comercial dos EUA fora do continente americano em 2024, i.e., depois do México e do Canadá. Já agora, a UE é a maior parceira comercial da China.

* — o documento prefere referir a Rússia, certamente pela contagem de espingardas!

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