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quarta-feira, julho 03, 2019

A burocracia na era simplex

As senhas de Godot


As senhas de Godot


Depois de receber uma carta do Instituto dos Registos e do Notariado para ir levantar o meu renovado Cartão de Cidadão a Oeiras, na 2ª Conservatória do Registo Predial, dirigi-me ao edifíco contíguo ao Tribunal da Comarca, no qual, curiosamente, estão instalados dois cartórios que se ignoram mutuamente. As primeiras vítimas desta incongruiência são os clientes distraídos, desde logo por pensarem que serão tratado como clientes.

O acesso visível ao edifício parece ser uma entrada geral dos dois cartórios, mas não é. No piso zero existe apenas a Conservatória do Registo Civil, a do Registo Predial sobrevive no 1º andar. Acontece que a maioria das pessoas vai tratar dos seus documentos de identidade na dita Conservatória do Registo Civil. A mim, porém, tocou-me levantar o CC na Conservatória do Registo Predial. Não me apercebi que eram duas entidades separadas à nascença por uma laje de betão, e em guerra.

As instruções que a fardada rececionista, ladeada por um latagão de polícia, com arma ao coldre, ia distribuindo pelos que chegavam, não eram, afinal, para mim. Indicou-me assim erradamente a máquina das senhas que não me eram destinadas. Passaria três horas à espera de vez para recolher um documento pronto para entrega há quase uma semana. Quando finalmente fui atendido, a funcionária olhou para o aviso e, como se tivesse ganho o dia, disse: não é aqui. Este é o Registo Civil, e o seu aviso é para o Registo Predial. Onde fica esse cartório, que ninguém teve a amabilidade de me informar? É no andar de cima, respondeu o insecto à espera da metamorfose. Furioso, subi ao primeiro andar. Silêncio e meia dúzia de animais como eu bovinamente à espera. Havia senhas de Godot, mas a sinalética eletrónica estava avariada. Dirigi-me ao balcão e perguntei: é aqui que posso levantar o meu Cartão de Cidadão? Resposta: é na porta do fundo. Bati na porta do fundo, apesar de nela se poder ler: "Não bater à porta".

Apareceu-me uma buldozer. Quando lhe mostrei o aviso, disse-me com aquela delicadeza incomodada que mata qualquer um: nós só entregamos documentos mediante agendamento. Agendamento?! Perguntei irritado. E refilei: mas a carta que recebi não fala em tal coisa. E li-lhe o aviso:

"Cara(o) Cidadã(o),
Para levantar e activar o seu Cartão de Cidadão, deverá dirigir-se ao local de levantamento abaixo indicado, fazendo-se acompanhar da presente carta." Etc...

Pois é, mas nós só funcionamos por agendamento, disse o buldozzer de seda. Perguntei de novo: e que devo fazer para agendar? Está ali o número, na parede, apontou. Telefonei duas vezes. A gravação mandou-me, por duas vezes, dar uma curva e voltar a tentar mais tarde. Mas espera aí! Por que é que eu estou a falar com um robot se tenho as pessoas de carne e osso diante de mim, uma das quais terá a obrigação de me entregar o cartão já emitido e pago?

Dirigi-me de novo ao balcão (para não bater à porta onde se lê "Não bater à porta") e reiterei: preciso do meu Cartão de Cidadão, que está nesta Conservatória pronto para ser entregue. O vosso sistema de agendamento não responde, e eu estou aqui. Por isso gostaria de ter uma satisfação pelo que está a acontecer. Mas como não devo bater à porta onde se lê "Não bater à porta", como é que eu volto a falar com a sua colega. Eu tenho que resolver este assunto hoje. A buldozer de seda reapareceu.—estou aqui. Voltou à carga com as regras daquele cartório: nós só atendamos mediante agendamento. E eu retorqui: mas não é isso que vem escrito na carta oficial que lhe voltei a mostrar. Quero o Livro de Reclamações, por favor! Com certeza! E mais—retorqui—como se chama? Não vê (apontando para uma tabuleta espetada peito)? E mais—cairei em cima de si com um processo, se continuarmos neste impasse! Tenho bilhetes de avião comprados para uma viagem inadiável ao estrangeiro. Tratei da renovação a tempo, e não é a senhora que me irá estragar a vida! Ai vai viajar? Tem um comprovativo? Tenho, sim senhora. Deixe-me procurar o bilhete no telemóvel... Aqui está! Porque não me disse isso logo que chegou? Eu não preciso de palmadas no rabo (praguejou)—toda a gente ouviu. Fui, por fim, conhecer o relicário onde guardavam o meu CC. A burocracia esvaía-se. Fiz um agendamento, ou melhor a buldozer fez um agendamento por mim, usando para tal o meu telemóvel, o qual viria a dar o seguinte resultado: 8 de outubro!

Queixando-se das máquinas que não funcionam, das condições de trabalho, do esforço, das nossas más criações, lá foi buscar o meu Cartão de Cidadão. Agradeci-lhe, pedindo desculpa pela adrenalina das minhas barbas zangadas. Viu o meu sorriso, mas não se deixou seduzir. Muito anos do mesmo, à espera da metamorfose.