quarta-feira, novembro 09, 2005

Paris a arder

Recolher obrigatório para os adolescentes

Paris, Nov 2005. Christopher Ena/APNão tardará que as demais comunidades encurraladas pela estupidez capitalista -- a célebre mão invisível do mercado global -- sigam o exemplo dos arrabaldes de Paris e dos demais subúrbios franceses. A situação é explosiva em todos os países capitalistas que abriram oportunisticamente as suas portas a uma imigração sem regras e quase sempre clandestina, e que se vêm agora perante um arquipélago de becos sem saída. No fundo, os imigrantes, explorados e olhados de soslaio durante trinta anos por essa Europa fora, voltam agora a ser os primeiros a sofrer os efeitos da deslocalização massiva de capitais e mercados para a China, para a India e para outros mercados de mão de obra barata (quando não mesmo de semi-escravatura) emergentes. O neo-colonialismo não subsiste apenas nas ex-colónias europeias, mas como ficou agora demonstrado, no interior dos próprios países europeus, onde alguns milhões de imigrantes começam a descobrir até que ponto o beco sem saída onde se encontram é uma consequência indesmentível do próprio colonialismo, que julgavam desaparecido.
Só depois de percebermos o cerne desta questão, poderemos partir para as interpretações mais maniqueístas, que vêm a mão tenebrosa de Bin Laden e o fundamentalismo islâmico como causas de todas as crescentes dificuldades do Ocidente. Não são. O que não quer dizer que não aproveitem as oportunidades que vão surgindo. E o rastilho que pegou nos subúrbios de Paris, podendo alastar a toda a Europa (e não só) mais cedo e rapidamente do que a tão temida pandemia gripal causada pelo virus H5N1, é provavelmente a maior ameaça à estabilidade das democracias ocidentais surgida depois do 11 de Setembro e da entrada da China na Organização Mundial de Comércio (WTO). A guerra do Iraque, precipitada calculisticamente pelos estrategas dos EUA, foi, por outro lado, uma terrível acha para esta fogueira civilizacional
As democracias do bem-estar social estão irremediavelmente ameaçadas pelo fim dos combustíveis fósseis baratos, pelas guerras que lhe estão e estarão associadas ao longo das próximas décadas, pelas deslocações massivas de capitais para as regiões mais populosas, miseráveis e autoritárias do planeta (sem nenhum pudor pelos atentados aos direitos humanos), pela concentração sem precendentes da riqueza mundial nas mãos de um punhado de imbecis, pelas tensões raciais e étnicas que tenderão a espalhar-se como gasolina ateada, pelo congelamento preventivo de um número crescente de liberdades e garantias duramente conquistadas ao longo dos últimos 250 anos, pelo esgotamento dos actuais modelos de representação e exercício do poder democrático e ainda pela corrupção que atinge zonas impensáveis da chamada classe política.
Não sei se ainda iremos a tempo de salvar a utopia. Sei, em todo o caso, que tal possibilidade implicaria sempre sermos capazes de levar a cabo uma nova revolução, desta vez em nome da pura sobrevivência da dignidade humana. Chamemos-lhe, para já, a Revolução da Sustentabilidade.

O-A-M #96 09 Nov 2005

1 comentário:

Anónimo disse...

Perfeitamente de acordo! Aliás, ou muito me engano ou a constatação desse facto é cada vez maior entre os ocidentais. É uma consequencia de que todos sabemos que não podemos fugir, e não vale a pena agir cobardemente com essa estúpida frase "isso já não é pra mim", porque a descendencia cá fica para assistir à desgraça crescente. Infelizmente, todos são unânimes a considerar que no final ganhará, como sempre, o poder dos interesses!
Vamos todos esperar sentados???
p.s. Gostei do seu parecer sobre a arte contemporanea!