sexta-feira, agosto 03, 2007

Desastres

Aspecto dos corredores do Hospital Clínico de Barcelona. Fonte: EFE

O Estado necessário

No dia 1 de Agosto de 2007 uma ponte com 8 faixas de rodagem situada à entrada da cidade de Minneapolis, no estado norte-americano do Minnesota, colapsou, arrastando para o meio do rio que atravessa, cerca de 50 veículos. Morreram provavelmente mais de 30 pessoas neste desastre. Tal como no caso da ponte de Entre-os-Rios (que colapsou em 5 de Março de 2001, matando 70 portugueses), relatórios técnicos apontaram para problemas de manutenção e fadiga de materiais. No caso da ponte do Minneapolis, tais problemas foram ainda agravados por problemas estruturais de concepção, conhecidos dos administradores das autoestradas da região (entretanto demitidos.) As pontes americanas, outrora o orgulho de toda uma engenharia pioneira, precisam de um investimento em manutenção na ordem dos 9 mil milhões de USD durante 20 anos. O investimento, porém, não tem ido além dos 2 mil milhões...

Os apagões eléctricos repetem-se um pouco por todo o mundo, sendo mesmo diários, semanais ou mensais em alguns países africanos e da América Latina. Porém, os casos bem vivos na nossa memória ocidental e europeia, do chamado Northeast Blackout of 2003 (ver OAM de 16-08-2003), do apagão italiano do mesmo ano e ainda do que há precisamente uma semana tirou a luz a mais de 10 mil habitantes da cidade e área metropolitana de Barcelona, durante, pelo menos, dois dias, demonstram que o problema deixou de ser uma mazela do Terceiro Mundo, e ameaça tornar-se um escândalo crescente nas sociedades ditas ocidentais, democráticas e desenvolvidas.

A tragédia ocorrida no aeroporto de Congonhas, no passado dia 17 de Julho, da qual resultaram 200 vítimas mortais, não foi resultado de um erro humano, mas sim o resultado de uma acumulação de erros, ineficiências acumuladas e de uma enorme irresponsabilidade política por parte das autoridades brasileiras (de que resultaram aliás a demissão do ministro da defesa do país e a própria interdição do aeroporto.)

O possível colapso da economia estado-unidense, provocado pela acumulação criminosa de todos os défices que um país pode contrair (comercial, de pagamentos e público), e de que a implosão do sector imobiliário (e a provável falência de muitos fundos de pensões e seguros de saúde) é a manifestação mais imediata, dramática e preocupante, encontra-se de momento semi-estancado (numa espécie de Unidade de Cuidados Intensivos) pelo conjunto das demais economias fortes do planeta (sobretudo China, Europa e Japão), as quais temem pelas consequências económicas (1), e sobretudo político-militares, de um cenário de derrocada súbita da nota verde. A resposta até agora desenhada pelos estrategas mais agressivos dos EUA tem passado por uma desestabilização geo-estrtatégica sem precedentes do mundo actual, destinada a fazer funcionar a única indústria que ainda parece residir no território norte-americano: a indústria da morte tecnológica sistemática e em massa. A venda de mais de 60 mil milhões de dólares de armamento a Israel, Arábia Saudita, Egipto e outros países amigos naquela que continua a ser a mais rica plataforma petrolífera do planeta, mostra até que ponto os Estados Unidos são, de facto, e talvez por necessidade estratégica, os principais, se não únicos, responsáveis pela corrida armamentista iniciada sob o pretexto da ameaça terrorista mundial e o perigo iraniano.

Como se tudo isto não fossem notícias suficientes de um Verão abrasador (os efeitos na Roménia, Grécia e Itália têm sido tremendos), temos a Europa (nomeadamente o Reino Unido) e o Sul da Ásia (20 milhões de deslocados pelas cheias na India, Nepal, Bangladesh) a registar chuvas e inundações sem precedentes, ao mesmo tempo que uma seca milenar afecta gravemente a Austrália, e os mais devastadores incêndios de que há memória assolam a Europa e as Canárias.

Nos aeroportos portugueses e em muitos outros, perdem-se bagagens por causa da completa irresponsabilidade de empresas como a Groundforce, certamente mais preocupada com a globalização da empresa-mãe, a Globália, do que com o vexame de quem protesta junta dos balcões incompetentes da TAP e da ANA.

Um apagão informático, causado pela ineficiência da Portugal Telecom, deixou 600 caixas Multibanco da grande Lisboa inoperacionais, entre as 11 e as 17 horas do dia 1 de Agosto, i.e. quando milhares de alfacinhas se preparavam para ir de férias!

Desgraçados, em suma, os que cairem na tentação de firmar um contrato por telefone com a TV Cabo ou qualquer outra grande empresa portuguesa. Sem saberem como, compram o que não sabem, e o que não querem, e depois, mesmo quando é patente o logro em que cairam (o serviço prometido não funciona, o preço não foi bem explicado, etc...), para anularem o contrato que tão facilmente "assinaram" de boca, vão ter que passar as passas do Algarve. Por telefone, nem pensar! Ninguém lhes aceita reclamações ou anulações de contrato. Por e-mail, também não. Só por fax (coisa que já ninguém usa, como toda a gente sabe), ou por carta registada. E depois, o mais provável, é continuarem a pagar o que não querem e o que não funciona, até que a kafkiana máquina de uma qualquer destas corporações cotadas em bolsa resolva, enfim, atender devidamente os protestos.

A globalização, apesar da euforia propagandística das agências de comunicação e da publicidade (que vendem a alma ao Diabo a cada segundo que passa), começou a estrebuchar. O sintoma mais evidente é este: como apenas vive da especulação bolsista, sabe cada vez menos de produtos e interessa-se cada vez menos pelos ditos, deixando-os apodrecer, e deixando ao cuidado dos seus poderosos exércitos de advogados corruptos a tarefa de litigarem com os desgraçados consumidores.

Mas a prova de que as coisas podem começar a mudar está não apenas na posição do governo espanhol face aos provedores responsáveis pelo apagão de Barcelona, mas também no modo como as autoridades policiais e judiciárias norte-americanas lidaram com o cartel promovido pela British Airways para expoliar (desde 2004) os passageiros e empresas que recorriam ao seus serviços, através de sobretaxas combinadas com outras companhais aéreas (nomeadamente a Virgin Atlantic.) Surpreendentemente apanhado pelas malhas da investigação policial norte-americana, o principal operador aéreo de sua Magestade não só se expôs a um ridículo de proporções planetárias como espera uma multa de 350 milhões de Libras Esterlinas.

Em Portugal, a decisão sem precedentes da Autoridade da Concorrência, de multar em 38 milhões de Euros a PT Comunicações, do grupo Portugal Telecom, por abuso de posição dominante, chega igualmente em boa hora. A contestação que a PT pretende mover contra a AdC não passa de um erro de miopia que acabará por pagar caro.

De uma forma ou de outra a cidadania vai começar a reagir ao descalabro da especulação financeira generalizada, começando por desmascarar e condenar publicamente os sórdidos conluios entre a imbecilidade política e a lógica autofágica da globalização. Talvez seja bom os governos democráticos começarem a perceber que a festa está mesmo prestes a terminar. Ponham as barbas de molho e comportem-se!

O Estado Providência faliu e em seu lugar emergiu, sob o alto patrocínio das corporações virtuais do Capitalismo, aquilo a que um arguto e preocupado pensador conservador português (Prof. Adriano Moreira) chamou "Estado exíguo" - quer dizer, Estado incapaz, impotente, subjugado e tendencialmente corrupto. A esta espécie de liquefacção dos sistemas democráticos de poder, e dos próprios estados e nações, que ameaça a própria sobrevivência das tipologias racionais e jurídico-legais herdadas da Mesopotâmia, da Grécia, de Roma e das tradições judaica, cristã e muçulmana, entre outras, precisamos de opor a ideia de um Estado necessário, nem mínimo, nem providencial; apenas atento, suficiente, fiável, fraterno, inteligente, justo e dotado de uma racionalidade democrática seminal. Um Estado acima dos governos que o devem respeitar e servir em nome, não apenas da vontade popular que os elege, mas sempre e também do interesse geral.

Actualizado em 07-08-2007



Post scriptum - Um surto de Febre Aftosa acaba de ser detectado no Sul do Reino Unido, obrigando Gordon Brown a regressar de férias. BBC online 03-08-2007.

Notas

1) Se uma pessoa ficar sem emprego e deixar de poder pagar a hipoteca da sua casa, o mais provável é que fique sem ela e sem o dinheiro que lá enterrou. Isto é, na rua! Se este drama se multiplicar por milhares, ou centos de milhar de casos (por efeito do desemprego crescente, da falta de criação de novos empregos, da quebra do poder de compra, da falência e fechos de empresas e, finalmente, de uma subida das taxas de juro), os bancos que emprestaram o dinheiro de forma aventureira (é o caso dos famosos empréstimos de 2ª categoria --subprime--, onde muito investimento especulativo --hedge funds-- foi realizado ao longo da última década), entram num beco cuja saída mais comum é a falência. Foi o que aconteceu já a várias entidades norte-americanas, abraços com mais de 2 milhões de hipotecas incobráveis (ConsumerAffairs), e acaba de ocorrer ao banco alemão IKB, a quem, para evitar a inevitável falência, foi concedido um empréstimo de 8100 milhões de euros. Este empréstimo foi realizado na sequênia de uma intervenção política directa do governo alemão, através do banco público KfW, em consórcio com algumas grandes instituições bancárias europeias: Crédit Suisse, Société Générale, Barclays, BNP Paribás e Deutsche Bank. A ameaça de derrocada do sistema financeiro mundial ("crise sistémica"), muito por causa das suas próprias filosofias especulativas, e no imediato, do historial de verdadeira pirataria político-financeira dos EUA, é conhecida desde, pelo menos, Fevereiro de 2006 (embora só muito tarde e a más horas os média convencionais tivessem começado a fazer-se eco do problema real que temos entre mãos --sabe-se lá porquê!!). Não se percebe, em toda esta trapalhada, porque deve o cidadão que deixa de pagar as prestações da casa que comprou e hipotecou, ficar sem a mesma, quando o banco que especulou e foi à falência merece um segunda oportunidade. Dirão os hipócritas, que é para salvar o sistema financeiro! Eu diria que a razão é outra: trata-se de assegurar que o dito banco falido possa continuar a espoliar os seus clientes das casas que deixaram de pagar, salvando assim a lógica especulativa do actual sistema económico. Mas se houver mais um, dois ou dez IKBs na Europa, na Ásia e no Médio Oriente, que ocorrerá? Quem irá então escrever as cartas de conforto? E não há uma regra comunitária que impede apoios públicos a empresas em situação económica difícil? O NÃO dos franceses e holandeses à constituição europeia --que jaz e arrefece-- talvez fosse mesmo o prenúncio de dificuldades muito mais sérias e difíceis de ultrapassar. Coitado do Socratintas.

Actualização de referências (
10-08-2007 0301)
1) Mortgage concerns hit US markets (BBC online)
2) China threatens 'nuclear option' of dollar sales (Telegraph online)
3) Rival to Nato’ begins first military exercise (Times online)
4) Market Meltdown. Cramer à CNBC no seu melhor: "Bernanke has no idea how bad it is out there." -- YouTube (07-08-07)
5) Stock Market Meltdown, by Mike Whitney. (Global Research)

OAM #226 02 AGO 2007

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