sexta-feira, junho 13, 2025

Somos todos pretos

Mapa completo: Wikipédia


A costela negra do português

Todos temos (pelo menos uma) costela da África subsariana. E o resto da humanidade moderna, também.

Não apenas desde há 150 mil anos para cá, mas também por via dos contatos múltiplos havidos entre europeus e africanos desde a Antiguidade (fenícia, grega, romana), e depois, desde o século 15 da nossa era até hoje.

No caso português, a mestiçagem está na origem da sua formação cultural e depois religiosa e política, desde a chegada dos celtas, dos povos germânicos, dos vikings e dos mouros muçulmanos. E tornou-se política oficial do reino desde Afonso de Albuquerque (Vila Verde dos Francos ou Atouguia da Baleia, c. 1452–1462 – Goa, 16 de Dezembro de 1515), instalando-se na cultura portuguesa até hoje. Ao contrário dos muçulmanos e judeus, os cristãos portugueses, e por inerência cultural, os ateus e agnósticos portugueses, não estabeleceram nunca, nem estabelecem hoje, algum tabu contra o casamento entre pessoas de origem, estatura, aparência e tradições, nomeadamente religiosas, diferentes. Só assim se explica como foi possível ao milhão de habitantes de uma nação cujo estabelecimento (Condado Portucalense) contava em 1415 (data da conquista de Ceuta) mais de cinco séculos de existência, mas escassamente povoado (durante toda a expansão ultramarina, a população portuguesa oscilou entre um milhão e um milhão e duzentas mil almas), estabelecerem um império global tão vasto durante os séculos 15 e 16.

Significam estes factos que não somos racistas? Depende da definição de racismo. 

O atavismo étnico, que já é uma evolução do atavismo gentílico, é cultural, não é natural. Prende-se, sobretudo, à lógica de formação e preservação das famílias humanas.

Por ser uma espécie de defesa ancestral da integridade das comunidades e dos seus recursos vitais, esta herança cultural manifesta-se frequentemente sempre que famílias, tribos, nações, estados, impérios, se vêem ameaçados na sua estabilidade económica e felicidade por causas que, na generalidade, desconhece, procurando, por causa deste desconhecimento, bodes expiatórios. A xenofobia e o racismo, mas também a falocracia e o patriarcado, surgem frequentemente neses momentos críticos das comunidades como escapismos inevitavelmente míopes, injustos e intrinsecamente violentos.

O documentário "A origem do homem (The real Eve)", realizado com base nas investigações de Stephen Oppenheimer, é uma boa introdução à desmistificação das teorias raciais de origem europeia estabelecidas sobretudo durante o século 19.

PS: vi no FB uma notícia mal amanhada sobre este mesmo assunto com uma imagem IA que nada tem que ver com a descoberta arqueológica.

O Homem Atlântico

Múmia natural de 7 mil anos encontrada na caverna de Takarkori, sul da Líbia
Archaeological Mission in the Sahara, Sapienza University of Rome.

O homem atlântico pertence a uma linhagem de povos única, oriunda do noroeste de África (cordilheira do Atlas) e da Península Ibérica, ainda que com características herdadas de outros povos antigos e modernos que migraram um dia em direção a esta região, sejam os da África Subsariana, sejam os povos da Europa do Norte, Central, Escandinava e de Leste.

O nosso saber sobre o passado, como o nosso saber sobre o futuro têm ambos fragilidades evidentes. E sempre foi assim. O que não implica que saibamos hoje menos do que ontem...

Citação de um artigo da Nature

Published: 02 April 2025

Ancient DNA from the Green Sahara reveals ancestral North African lineage

Nada Salem, Marieke S. van de Loosdrecht, Arev Pelin Sümer, Stefania Vai, Alexander Hübner, Benjamin Peter, Raffaela A. Bianco, Martina Lari, Alessandra Modi, Mohamed Faraj Mohamed Al-Faloos, Mustafa Turjman, Abdeljalil Bouzouggar, Mary Anne Tafuri, Giorgio Manzi, Rocco Rotunno, Kay Prüfer, Harald Ringbauer, David Caramelli, Savino di Lernia & Johannes Krause 

Nature volume 641, pages144–150 (2025)

ABSTRACT

Although it is one of the most arid regions today, the Sahara Desert was a green savannah during the African Humid Period (AHP) between 14,500 and 5,000 years before present, with water bodies promoting human occupation and the spread of pastoralism in the middle Holocene epoch. DNA rarely preserves well in this region, limiting knowledge of the Sahara’s genetic history and demographic past. Here we report ancient genomic data from the Central Sahara, obtained from two approximately 7,000-year-old Pastoral Neolithic female individuals buried in the Takarkori rock shelter in southwestern Libya. The majority of Takarkori individuals’ ancestry stems from a previously unknown North African genetic lineage that diverged from sub-Saharan African lineages around the same time as present-day humans outside Africa and remained isolated throughout most of its existence. Both Takarkori individuals are closely related to ancestry first documented in 15,000-year-old foragers from Taforalt Cave, Morocco, associated with the Iberomaurusian lithic industry and predating the AHP. Takarkori and Iberomaurusian-associated individuals are equally distantly related to sub-Saharan lineages, suggesting limited gene flow from sub-Saharan to Northern Africa during the AHP. In contrast to Taforalt individuals, who have half the Neanderthal admixture of non-Africans, Takarkori shows ten times less Neanderthal ancestry than Levantine farmers, yet significantly more than contemporary sub-Saharan genomes. Our findings suggest that pastoralism spread through cultural diffusion into a deeply divergent, isolated North African lineage that had probably been widespread in Northern Africa during the late Pleistocene epoch.

sábado, junho 07, 2025

Para onde cairá a Rússia depois de Putin?

 


Germany's Merz says some US lawmakers have 'no idea' of the scale of Russia's rearmament. 

By Friederike Heine and Andreas Rinke 

Reuters. June 6, 2025 3:10 PM GMT+2Updated a day ago


Vamos por partes. A Rússia de Moscovo e Putin quer reconstituir o antigo império czarista que Estaline manteve e expandiu na sequência da derrota da Alemanha em 1945. Vê neste fim estratégico a única via para impor à Europa central e ocidental um futuro entendimento estratégico global capaz de travar as ambições da China e dos Estados Unidos. Uma Rússia irrelevante seria uma porta aberta para a entrada da China na Europa. Uma espécie de regresso dos mongóis, nascidos em Pequim!

Tendo esta perspetiva presente, a invasão da Ucrânia serviria, em teoria, simultaneamente, os interesses de toda a Eurásia dominantemente cristã (apesar do Grande Cisma) relativamente ao novo Tratado de Tordesilhas que norte-americanos e chineses querem estabelecer na segunda metade deste século, por tempo indeterminado, e já  agora face ao novo Islão radical e fundamentalista. Mas como, perguntar-se-à? 

Respondo: restabelecendo o poderio militar do que foi a URSS, e do que foi o império czarista. Com ou sem vitória de Vladimir Putin (de preferência, sem), a Federação Russa e a Rússia de Kiev sairão desta guerra civil como duas poderosas forças militares e tecnológicas.

Acontece que o desiderato esplanado por Putin na sua visita a Lisboa, em 2007, de algum modo degenerou em sucessivas campanhas militares e policiais de terror intoleráveis contra aqueles que gostaria de ver como aliados principais na longa caminhada para uma Eurásia toda poderosa entre a China e a América—um imenso poder continental e marítimo finalmente coerente. Como é evidente, esta seria a maior dissuasão dos sonhos imperiais da China e dos Estados Unidos que o século 21 tem vindo a revelar.

Se a velha ideia da grande ilha que domina o mundo, de Halford Mackinder, faz sentido, nomeadamente como travão a um novo Tratado de Tordesilhas, depois do estabelecido entre Portugal e Castela-Aragão no dealbar do século XVI, e da Conferência de Ialta de 1945, a verdade é que a sua capital não poderá estar em Moscovo, nem em Berlim, nem sequer em Bruxelas, mas em Lisboa!

Vladimir Putin talvez esteja ainda a tempo de compreender isto, estancando unilateralmente a hemorragia da invasão da Ucrânia, retirando as suas tropas e desocupando todo o território ucraniano, incluindo a Crimeia, ainda que com garantias de acesso civil e militar ao Atlântico e ao Mediterrâneo, e garantias culturais e linguísticas às comunidades russófilas que vivem na Ucrânia. Não sei. Tudo dependerá da lucidez das elites russa e ucraniana. Sei, porém, que ambos os países teriam muitíssimo a ganhar com a paz e o início de um processo de reconciliação, sobretudo se a Ucrânia aderisse ao mesmo tempo à União Europeia e à NATO. Que melhor via de acesso teria Putin para regressar ao seu antigo desiderato de uma aproximação estratégica às democracias europeias?

Vendo a guerra da Ucrânia numa perspetiva mais ampla, eu diria que está a ser aproveitada para a criação de uma força militar estratégica e tática euroasiática formidável, capaz de travar as ambições imperiais americana e chinesa.

É nesta lógica, ainda que apresentada sob o disfarce de um rearmamento europeu contra Moscovo, que se poderá perceber a urgência do novo chanceler alemão, bem como do holandês que dirige neste momento a NATO. A guerra é sempre um teatro de sombras...

O que acabo de escrever não é uma fantasia, nem um cenário, mas uma hipótese de leitura, através  do denso nevoeiro da guerra, das forças tectónicas geoestratégicas atualmente em movimento.

Última nota e aviso ao futuro presidente Gouveia e Melo: Portugal deve manter uma certa equidistância entre Moscovo e Kiev, ainda que apoiando preferencialmente o país agredido. Não deve pôr-se em bicos de pés. Deve, sim, ser uma Suíça geopolítica no decisivo jogo imperial em marcha.


LINK

https://www.reuters.com/business/aerospace-defense/germanys-merz-says-some-us-lawmakers-have-no-idea-scale-russias-rearmament-2025-06-06/