Manifestação em Austin, Texas. Foto publicada na revista Elle © DPA/ABACA |
“Life” in this “society” being, at best, an utter bore and no aspect of “society” being at all relevant to women, there remains to civic-minded, responsible, thrill-seeking females only to overthrow the government, eliminate the money system, institute complete automation and eliminate the male sex.
—Valerie Solanas, SCUM Manifesto (1965-67)
Zombies e Acordados
A discussão sobre o racismo contemporâneo é uma trapalhada. Há racismo, há presunções neo-coloniais, mas há também um novo racismo, de sinal contrário, anti-branco, desprezível. A moda politicamente correta, importada dos estudos culturais ensinados nas universidades americanas, fundida com fenómenos de feminismo radical (Valerie Solanas) e teorias culturais racistas de sinal contrário (Fanon) deu origem a um cocktail explosivo, com múltiplas espoletas, difíceis de desarmar com duas linhas de texto...
Por exemplo, na revista Sábado desta semana, numa entrevista realizada por Vanda Marques à escritora, advogada e atriz Rachel Khan, esta afirma que lhe deu vontade de rir quando Meghan Markle afirmou ser vítima de racismo. Porquê, pergunta a jornalista? Responde Rachel Khan:
“Sim, claro. É que o racismo é uma arma. Qualquer um, apesar da sua condição social, se apresenta como vítima. Acho indecente o que ela fez. Ela é uma das maiores fortunas mundiais e diz-se vítima? As verdadeiras vítimas estão em silêncio.”
O argumento, apesar de atraente, falha o alvo. De facto, a mulher que casou com o Príncipe Harry foi vítima de comportamentos racistas em diversos momentos da sua vida, nomeadamente em Los Angeles, quando queria singrar como atriz, e sobretudo depois de casar com o príncipe inglês (ler a este propósito o artigo publicado na Time).
No caso português, as provocações urbanas de extrema esquerda (ou dum cretino que se diz socialista) contra o racismo e contra o colonialismo corre não só o risco de estimular estes sentimentos atávicos, como deita ao lixo a oportunidade para uma revisão serena da relação dos portugueses com outros povos, nomeadamente a partir da conquista de Ceuta (1415), e do início da aventura dos Descobrimentos. Existe uma comunidade linguística portuguesa, na Europa, em África, na América, na Ásia e na Oceania. Outrora esta comunidade foi também um território soberano, que se foi fragmentando. Hoje resta a língua e a memória recente, traumática ainda para muitos que sofreram de forma especialmente dramática a descolonização abrupta provocada pelo colapso da ditadura. Mas há também uma memória mais antiga, que é preciso estudar e divulgar, em vez de reprimir e desfigurar com discursos atávicos de sinal contrário.
A verborreia pós-colonial, anti-racista e neo-neo-neo feminista tem origem em problemas que subsistem. Porém, a maneira correta de os enfrentar, que passa pela desmontagem da ignorância arrogante e sectária do chamado movimento Woke, e pela crítica sistemática aos pioneiros desta revolta das palavras, deve igualmente atender aos motivos e razões das novas queixas, corrigindo as desigualdades flagrantes, as violências e as iniquidades que persistem e pesam sobre as vidas de milhares de seres humanos. Há, pois, problemas de fundo que se arrastam e devem ser resolvidos (nos conceitos, na linguagem e nas leis), e há o folclore desta discussão extremada, uma espécie de exorcisma ou psicodrama de Moreno, ao qual não devemos dar demasiada importância, aceitando-o e até participando nesta sua componente teatral e de dramatização. Só assim ajudaremos a resolver, pelo menos parcialmente, o eterno problema da igualdade de oportunidades e de tratamento dos seres humanos em sociedade. Este é um problema, no limite, insolúvel, mas podemos e devemos melhorar a qualidade da nossa civilização e as suas probabilidades de sobrevivência. A grande questão da diversidade humana existe desde que os portugueses entraram em contato com o Manicongo, o Gama chegou à Índia e a frota de Magalhães deu a volta ao mundo. Este mundo redondo tem sido palco de lutas territoriais sem fim desde então, de que as discussões e confrontações ideológicas (religiosas, etc.) são sempre a aparência enganadora das coisas.