O Reembolso britânico e a PAC francesa
Margaret Thatcher pronunciou em 1984 uma frase, que viria a tornar-se célebre, sobre o esquema de utilização do orçamento comunitário, ao verificar que 45% desse orçamento ia direitinho para uma coisa chamada Política Agrícola Comum, da qual o Reino Unido via apenas algumas migalhas (devido à proporção diminuta do seu sector agrícola no PIB e ao elevado nível de desenvolvimento do sector), sendo seu principal beneficiário a França do então Ministro da Agricultura, Jacques Chirac. A frase, que voltou a ecoar depois da crise de confiança suscitada pelos NÃOS de franceses e holandeses no referendo ao Tratado Constitucional, foi esta: " I want my money back!"
Houve outros grandes beneficiários desta PAC, como os alemães, os espanhóis e os italianos. Mas o essencial é que esta grande fatia dos dinheiros comunitários (que para 2007-2013 corresponde ainda a 40% de todo o orçamento comunitário...) tem servido para atrasar o desenvolvimento estratégico da Europa, criando uma subsídio-dependência absolutamente escandalosa, com consequências dramáticas, por exemplo, entre os produtores agrícolas dos países menos desenvolvidos. Os ingleses exigiram, pois, que 2/3 da diferença entre o que dão e recebem da UE regressasse aos cofres de Sua Majestade. E assim foi ao longo dos últimos 20 anos...
Entretanto, nas vésperas da discussão das perspectivas financeiras para o próximo Quadro Comunitário, Jacques Chirac, numa tentativa desesperada de distrair as atenções do mundo, e sobretudo dos franceses, do seu desaire referendário, resolve denunciar o reembolso britânico (conhecido por British Rebate), exigindo uma substancial redução do mesmo. A tempestade desabou então sobre a cimeira, a qual acaba de encerrar os seus penosos trabalhos, sem resultados e ressoando o odor do fracasso por todos os poros nacionais que ali convergiram, ansiosos, muitos deles, pelos dinheiros esperados, se não mesmo contabilizados.
Tony Blair, picado pelo seu putativo sucessor, Gordon Brown, teve uma oportunidade inesperada, mas de ouro, para jogar uma cartada de mestre contra, não apenas Jacques Chirac, mas sobretudo contra a inércia corrupta e subsidio-dependente de boa parte do continente europeu. Sim, disse ele -- estamos dispostos a reduzir o envelope do Reembolso Britânico se, ao mesmo tempo, pusermos na mesma mesa negocial a Política Agrícola Comum. Caiu o Carmo e a Trindade. Blair manteve-se firme nos argumentos. Em suma, não houve compromisso possível.
E agora? Bom, não há orçamento comunitário à vista e os referendos foram adiados em toda a Europa. Por outro lado -- e eis uma consequência positiva de toda esta embrulhada pós-referendária -- temos finalmente reunidas as condições para uma verdadeiro debate europeu, em moldes amplos e democráticos. Resta-nos agora esperar que os dirigentes políticos mais desgastados sejam varridos da cena institucional, e que outros mais jovens, ambiciosos, corajosos e consistentes ocupem os seus lugares. Se assim suceder, a pausa valerá seguramente a pena, e um novo referendo, desta vez sobre um texto porventura menos espesso e melhor conhecido de todos os cidadãos europeus, poderá ser submetido a votação simultaneamente em todos os estados da União.
Ouvi Tony Blair algumas horas depois, na conferência de imprensa que deu sobre o fracasso da cimeira. Para ele, a PAC corresponde a uma visão ultrapassada da Europa, que a impede de assumir reorientações estratégicas essenciais, nomeadamente nos domínios da globalização, da segurança europeia e da defesa estratégica comum. Para Blair, todos estes domínios exigem dar uma prioridade absoluta ao desenvolvimento científico e tecnológico, e ainda à modernização urgente das pequenas e médias empresas europeias. O orçamento da PAC, além de incrementar os fluxos migratórios das populações economicamente bloqueadas de África, e de produzir um desgaste sem precedentes dos solos europeus (devido à intensidade insustentável dos modelos de exploração) impede, pura e simplesmente, o objectivo de tornar a Europa, nos próximos dez anos, na economia mais competitiva do planeta, sem deixar de ser ao mesmo tempo um modelo recomendável de democracia e bem estar social. A Europa precisa, como de pão para a boca, de uma nova visão estratégica. Tony Blair, Gordon Brown e Jack Straw demonstraram possui-la, contra uma esmagadora maioria de países desgraçadamente prisioneiros das suas crises de liderança.
Portugal faria bem em restabelecer rapidamente o seu alinhamento estratégico com a velha Albion, na linha dos passos dados por Durão Barroso durante a crise iraquiana. Freitas do Amaral deu sinais de sabedoria em toda esta crise. Pode muito bem vir a ser uma alternativa credível a Cavaco Silva.
O-A-M #81 18 Junho 2005