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sábado, dezembro 10, 2011

Os piratas de sempre

A bomba lançada por David Cameron na cimeira europeia foi encomendada pela City e pelos paraísos fiscais de sua majestade

David Cameron conduz um Mini Cooper fabricado pela BMW em Oxford.
Foto© Sang Tan/AP (The Guardian)

Nick Clegg deu provavelmente o tiro de partida para o fim da coligação presidida pelo conservador e primeiro-ministro inglês David Cameron, na sequência do veto inglês imposto por Cameron à revisão do Tratado Europeu. Já todos sabíamos que esta seria a posição britânica, mas talvez fosse razoável esperar um pouco mais de tacto e mediação.
Deputy prime minister Nick Clegg is no longer prepared to take the hits for the coalition on policies he does not agree with.

Just 24 hours after appearing to back Cameron, sources close to Clegg made clear that the deputy prime minister believed the PM had been guilty of serious negotiating failures that risked damaging the national interest, British jobs and economic growth. The Guardian, 10-12-2011.

 O Reino Unido tem tido desde sempre uma posição oportunista relativamente à União Europeia: quer todas as suas vantagens, mas nenhum dos seus preços. No entanto, apesar da tolerância demonstrada pelo "continente" (onde é que já ouvimos este tipo de idiossincrasia?) o resultado tem sido a desindustrialização acelerada do país (primeiro, a favor do Japão, e depois da Alemanha) e o seu empobrecimento deslizante, só disfarçado pela sua ainda formidável indústria de serviços, nomeadamente financeiros.

A City londrina e os seus paraísos fiscais são responsáveis por uma verdadeira rede de especulação à escala global (1), curiosamente protegida pelo direito europeu, ao mesmo tempo que disfarçam na sua actividade frenética boa parte do descomunal endividamento da economia e da sociedade britânicas. O Reino Unido tornou-se, embora esconda a realidade o mais que pode, um gigantesco banco negro (shadow bank) cujos contornos começam agora a ser revelados.

Ora foi precisamente a pressão exercida pelo eixo franco-alemão para limitar os graus de liberdade desta actividade financeira não regulada e obscura (2), maioritariamente sediada em Londres e nos off-shores do reino e da rainha, que acabaria por quebrar a tradicional fleuma britânica. O primeiro ministro inglês levava um veto no bolso acompanhado de uma única instrução: usar em qualquer caso!

O endividamento descontrolado da Europa e dos Estados Unidos da América é um fenómeno complexo (3) cuja análise deixaremos para outra oportunidade. Mas importa reter o facto de que o mesmo decorre de fenómenos aparentemente tão diversos quanto o crescimento demográfico global, o envelhecimentos das populações, a maior redistribuição dos recursos naturais, energéticos e tecnológicos disponíveis que se seguiu à descolonização mundial, a urbanização em massa, a automação tecnológica e a desmaterialização de uma gama imparável de processos de produção, organização, informação, comunicação e gestão, ou ainda da especulação financeira generalizada que acabaria por tomar conta das economias empresariais, públicas e pessoais.

A Europa e os Estados Unidos são os olhos de um furacão financeiro sem precedentes na história económica. A ameaça de colapso do sistema é real (4)! O olho esquerdo deste furacão foi o Lehman Brothrers (e em geral, a chamada crise das hipotecas subprime), o olho direito chama-se Grécia (e em geral, a chamada crise das dívidas soberanas na zona euro). Os impactos do subprime na Europa e no resto do mundo foram tremendos, em grande medida por causa da concentração existente no sistema financeiro e da globalização da sua actividade. No entanto, se as dívidas soberanas europeias degenerarem num verdadeiro colapso do crédito e da circulação monetária, as suas repercussões na economia americana seriam provavelmente fatais. Daí a inevitabilidade de a Eurolândia ter que passar por alguma forma de Quantitative Easing (5), isto é, de criação de liquidez assente em nada mais do que quimeras! No entanto, a Alemanha só aceitou ir por este caminho de forma mitigada (envolvendo os bancos e os especuladores) e ancorada (no FMI), depois de garantir que a esmagadora maioria dos países da União Europeia aceitaria implementar previamente mecanismos de convergência tributária, prudência orçamental e supervisão financeira mais transparentes e confiáveis.


POST SCRIPTUM

Acabo de ler o discurso de Helmut Schmidt ao congresso ordinário do SPD — uma reflexão de grande sabedoria cuja leitura a todos recomendo (versão portuguesa aqui; transcrição original neste pdf; registo vídeo integral aqui). Recomendo ainda, muito a este propósito, a audição do histórico discurso de Wiston Churchill na Universidade de Zurique um ano depois da capitulação alemã (1946), no qual o primeiro ministro inglês apelou à constituição dos Estados Unidos da Europa sob iniciativa do eixo franco-alemão (registo áudio aqui.)

É muito curiosa a ausência, no discurso de Schmidt, de qualquer referência ao Reino Unido, a não ser indirectamente, no ataque claro dirigido à banca pirata mundial que hoje desafia de forma descarada os estados soberanos, os governos democráticos e centenas de milhões de pessoas em todo o mundo. 11-12-2011 18:40


NOTAS E REFERÊNCIAS
  1. “MF Global and the great Wall St re-hypothecation scandal”, by Christopher Elias (UK). Reuters, 12/7/2011.
    “Rumours, disasters and ‘re-hypothecation”, by Golem XIV, December 8, 2011.
    “Shadow Rehypothecation, Infinte Leverage, And Why Breaking The Tyrany Of Ignorance Is The Only Solution”. Tyler Durden, ZeroHedge, 12/10/2011.
  2. Entre os múltiplos esquemas destinados, por um lado, a criar liquidez do nada (ou melhor dito, da expropriação potencial intempestiva do valor intrínseco a várias categorias de activos financeiros e não financeiros), e por outro, a especular com a sorte dos investimentos, numa lógica autofágica do sistema financeira enquanto tal, o buraco negro dos derivados financeiros OTC —com um potencial de destruição na ordem dos 10x o PIB mundial— e o agora evidenciado esquema das rehipotecas financeiras (que gozam de especiais privilégios na City e nos ilhéus propriedades pessoais da rainha de Inglaterra) são as principais armas de destruição maciça do sistema financeiro global. A tentativa de colocar a zona euro a suportar as fugas de radioactividade financeira resultantes da implosão em curso deste sistema deu origem à verdadeira guerra movida pelo par dólar-libra ao euro. Menos mal que os alemães ainda sabem pensar e têm os ditos no sítio!
  3. “Chris Martenson and James Turk talk about Europe and the global economy” (video). E ainda este quadro sobre o descontrolo do défice na União Europeia. 
  4. “Eurozone banking system on the edge of collapse.” By Harry Wilson
    “The eurozone banking system is on the edge of collapse as major lenders begin to run out of the assets they need to keep vital funding lines open.” Telegraph, 10:01PM GMT 09 Dec 2011.
  5. “The ECB Decision – A Detailed Analysis”, by Pater Tenebrarum. Acting Man, December 9th, 2011.
    “ECB as Pawnbroker of Last Resort (POLR)”, by Izabella Kaminska. ft.com/Alphaville, Nov 29 2011.
    “True ‘Austrian’ Money Supply update”, by Michael Pollaro. Forbes, Jul. 17 2011.

act. 11-12-2011 11:30; 18:44; 22:58

sexta-feira, outubro 28, 2011

Uma década de austeridade

O euro não sucumbiu, o dólar, sim, apodrece!

A Eurolândia ganhou a primeira grande batalha que lhe foi movida pelo par dólar-libra, mas tem pela frente uma década de austeridade, e precisa dramaticamente de maior e melhor integração económica, financeira e social, precisa de outra coesão política e de uma estratégia global comum.

Rich Mattione ©GMO LLC
(clicar para ampliar a img)
Eurozone bail-out: holes emerge in the 'grand solution’ to solve EU debt crisis
A trillion euro bail-out to save the EU’s single currency is in danger of unravelling after Germany’s central bank warned that the rescue measure was too dependent on the high-risk deals that caused the economic crisis. By Bruno Waterfield — 27 Oct 2011, The Telegraph.

Apesar do nervosismo evidente do eixo que continua a unir Washington a Londres, a verdade é que a Eurolândia se safou, por enquanto, de mais um grande aperto e de mais uma ameaça de cisão. Sem ceder no essencial, a Alemanha acabou por convencer a França e os países do Sul de que a melhor maneira de atacar a crise das dívidas soberanas da União é perspectivá-la a médio-longo prazo, ou seja, repartir no imediato entre governos (i.e. pagadores de impostos), bancos e fundos de investimento, os efeitos mais nefastos e prementes do buraco negro criado pelo sobre endividamento privado e soberano e pelas bolhas especulativas do casino derivativo em que se transformou a chamada inovação financeira desenhada pelos piratas de Wall Street, e, por outro lado, convencer os mais indisciplinados de que vai ser necessário manter, como alternativa à inflação monetária suicida da América, um programa de disciplina orçamental (austeridade), aumento da produtividade e reequilíbrio da balança comercial comunitária e intra-comunitária, no mínimo, ao longo dos próximos dez anos. Só assim continuaremos a contar com a boa vontade (liquidez) e expectativa positiva da China-Japão, Rússia, produtores de petróleo e Brasil.

De acordo com os números de Rich Mattione (“Et tu, Berlusconi? The daunting (but not always insuperable) arithmetic of sovereign debt”. By Rich Mattione — October 2011 © GMO LLC) a situação europeia, no que diz respeito às dívidas soberanas, é grosso modo esta:

País Dívida Pública
Alemanha2.062.000.000.000 (83% do PIB)
França1.591.000.000.000 (82% do PIB)
Reino Unido1.353.000.000.000 (80% do PIB)
Bélgica341.000.000.000 (96% do PIB)
PIIGS3.123.000.000.000
Portugal161.000.000.000 (93% do PIB)
Irlanda148.000.000.000 (95% do PIB)
Itália1.843.000.000.000 (118% do PIB)
Grécia329.000.000.000 (145% do PIB)
Espanha642.000.000.000 (61% do PIB)

Ou seja, como já aqui se escreveu repetidamente, as dívidas públicas da Alemanha e da França juntas superam a totalidade das dívidas soberanas do PIIGS (Itália incluída!) Mais: ao contrário da Espanha, cujo problema é sobretudo uma gigantesca dívida externa, resultante da sua monumental bolha imobiliária, raros são os países da União Europeia que respeitam o Pacto de Estabilidade e Crescimento em matéria de endividamento público, cujo limite é de 60% do PIB. Nenhum dos acima citados pode, de facto, atirar a primeira pedra. A próxima grande dor de cabeça que levou a Alemanha a despachar rapidamente o caso grego chama-se, obviamente, Itália!

O apoio dos países emergentes e produtores de petróleo à Europa resulta de uma nova compreensão estratégica do mundo actual. Os Estados Unidos não poderão continuar a gastar e consumir o que gastam e consomem, sobretudo tendo em conta que produzem cada vez menos coisas palpáveis, e a própria Europa terá que rever alguns aspectos insustentáveis do modelo de consumo e bem-estar social estabelecido numa época em que era sobretudo uma potência colonial, a demografia mundial era outra e o petróleo abundava. O mundo tornou-se muito mais pequeno, muito mais povoado, envelhecendo dramaticamente nos países mais industrializados, com um número crescente de recursos ameaçados ou mesmo em vias de extinção, e onde deixou, pura e simplesmente, de haver hegemonia militar. Em caso de guerra mundial, morreremos todos, ou quase todos!

Mais do que persistirmos numa lógica de conflitos e guerras assimétrica pelos recursos que deixaram de ser abundantes, e em muitos casos se extinguem a olho nu, parece mais evidente a cada dia que passa, que ou conseguimos desenvolver um modelo de crescimento zero criativo, justo e sustentável, ou espera-nos o abismo ao virar de cada esquina de cada crise financeira, de cada guerra, de cada desastre ambiental, ou de cada incidente climático extremo.

É fundamental substituirmos a lógica suicida do prisioneiro encurralado, por uma nova lógica de cooperação competitiva.

act. 28-10-2011 23:10