O voto de Sócrates
José Sócrates precisa de Cavaco Silva na Presidência, como garantia do seu próprio futuro político e âncora imprescindível à estabilidade do seu Governo. Vejamos porquê.Imaginemos que, por absurdo, Mário Soares ganha. Não vale a pena desenhar cenários para os demais candidatos. Que sucederia? Bom, teríamos uma maioria, um governo e um presidente. Os poucos que não tivessem encontrado ainda lugar no combóio de Sócrates correriam então como ratos aflitos para o novo avião presidencial. Soares, igual a si mesmo, teria que meter Porto Alegre e a Esquerda na gaveta e sacar de dentro dela o Sr. Bush, o Sr. Blair, o Estado mínimo e a Globalização liberal, tudo por causa de uma teimosa, egoísta e vastíssima clientela de Estado, tudo por causa de uma incontida vaidade pessoal. O País seria finalmente uma politocracia (e o PS uma força incontrolável), na qual polícias, tribunais e imprensa estariam fortemente ameaçados. A corrupção elevar-se-ia inevitavelmente ao patamar de uma autêntica pandemia. A desorganização do Estado atingiria níveis catastróficos. Os caciquismos locais e regionais transformar-se-iam em autênticos contra-poderes anti-regime. Boa parte da economia seria vendida ao desbarato (sobretudo aos Espanhóis). O País mergulharia, por fim, num período de ansiedade e desespero com consequências dificilmente imagináveis. Com sorte, no fim do primeiro mandato presidencial, o eleitorado clamaria nas urnas por um golpe de Estado constitucional. Isto é, pela restauração da ordem, por uma separação efectiva e estável dos diversos poderes democráticos, e ainda por uma ampla revisão dos poderes do Presidente da República, em linha com as filosofias constitucionais norte-americana e francesa. Cavaco triunfaria então muito para além das suas actuais ambições.
Creio que é fundamentalmente por esta ordem de causas que José Sócrates, em cujo regaço caíu inesperadamente o poder, aposta sub-conscientemente na vitória de Cavaco Silva já nas próximas eleições presidenciais. Ele sabe que, com Cavaco na Presidência, haverá o necessário equilíbrio social e político, sem o qual não será possível domar o monstro da dívida pública, controlar a corrupção, pôr os caciques rapidamente na ordem e criar um ambiente favorável ao investimento privado, interno e internacional, bem como a uma imprescindível paz social (sem a qual não será possível negociar a dificílima adaptação do nosso regime produtivo e laboral à profunda instabilidade da actual divisão mundial do trabalho).
O mundo que aí vem (estamos a falar dos próximos 10-20 anos) será um mundo caracterizado pelo encarecimento exponencial dos preços da energia e dos derivados industriais do petróleo e do gás natural. Será um mundo castigado pela inflação e pela subida imparável das taxas de juros. Será um mundo em que muitos Estados se confrontarão com a sua inevitável insolvência financeira. Será um mundo de hiper-concentração capitalista no qual centenas de milhares de empresas (bancos, seguradoras, companhias aéreas, transportadores rodoviários, etc.) irão à falência. Será um mundo atravessado por surtos devastadores de terror e guerra ("convencionais", mas também químicos, biológicos e nucleares). Será um mundo, enfim, dramaticamente fustigado pela sua própria insustentabilidade: desastres meteorológicos e ambientais, epidemias e pandemias, implosões urbanas e suburbanas, fome em larga escala e violentíssimas guerras civis.
Não, não estou pessimista. Basta ler nas entrelinhas dos discursos e sobretudo das decisões políticas mais relevantes das últimas décadas. Basta ler alguns relatórios sobre a derrapagem sistémica em que o mundo já entrou, ou está a ponto de entrar, para se temer o pior. Os Estados Unidos e o Reino Unido preparam-se para uma nova ofensiva militar no Médio Oriente, desta vez armadilhada em torno de países como o Irão e a Síria. E fazem-no, sobretudo, como estratégia preventiva face à ameaça objectiva representada pelo crescimento económico da China. O mundo não está, de facto, para brincadeiras!
É neste contexto de fundo que a próxima eleição presidencial adquire uma tão grande importância. O tempo para corrigir a nossa trajectória declinante e sobretudo impedir o colapso do Estado escasseia dramaticamente. Quatro anos de hesitação, ou pior ainda, de desmando, poderão ser-nos fatais. É por isso que, apesar de não ter uma particular simpatia pelo Sr. Aníbal Cavaco Silva, vou votar nele. Ao contrário das candidaturas do PCP, do Bloco de Esquerda (e de alguma ainda possível candidatura de Paulo Portas), apenas a candidatura de Manuel Alegre, mesmo perdendo para Cavaco Silva, poderá trazer um contributo útil para a nova discussão de que o País precisa. Saiba ele sonhar com uma visão generosa e verosímil de Portugal.
As palavras de Sócrates sobre Mário Soares servem apenas para evitar uma mais do que provável humilhação.
O-A-M #91 22 Out 2005