Ferreira Leite e Marcelo no road show do NAL. Na sua santa ignorância atacam o "TGV"
Estou cada vez mais convencido que o acordo entre o PS e o PSD sobre a viabilização do orçamento de estado de 2011 teve uma cláusula secreta sobre dois assuntos muito especiais: o chamado "TGV", e o NAL — novo aeroporto de Lisboa. Publicamente, havia que reanalisar tudo. Mas no recato das negociações deixaram-se portas entreabertas para o retomar destes dois dossiers à medida que a crise financeira amainasse.
O NAL esteve para nascer na Ota, mas a blogosfera derrotou tamanha idiotia e prova de corrupção. Agora, o poderoso lóbi partidário e financeiro do betão (que engloba figurões do PSD e do PS, construtoras e banqueiros agarrados à seca glândula orçamental do regime) teima na construção do desnecessário aeroporto de Alcochete, na forma de um três-em-um: quem ficar com a construção/exploração do novo aeroporto ganha as privatizações da ANA e da TAP para ajudar às despesas e assim erguer um monopólio! O negócio secreto pode pois resumir-se assim: o PSD deixaria passar o "TGV" agora, e o PS deixaria seguir, mais tarde, o novo aeroporto com tudo o que implica — por exemplo, a construção de uma segunda travessia ferroviária no estuário do Tejo, sem a qual o NAL se revelaria um descalabro financeiro imediato. O PSD manteve, porém, a sua linha de pressão e propaganda: atacar diariamente o "TGV". Esta espécie de insistência subliminar sobre a outra parte do possível acordo secreto negociado entre Eduardo Catroga e Teixeira dos Santos ganhou esta semana um pico de propaganda, na qual foram incluídas as vozes partidárias e mediáticas de Luís Marques Mendes, Marcelo Rebelo de Sousa e Manuela Ferreira Leite. Todos repetiram uma lição ensaiada!
Enquanto a ligação ferroviária em bitola europeia entre o Poceirão e Caia é assunto de estado reiteradamente decidido em duas cimeiras ibéricas, e já com cabimento financeiro comunitário assegurado, nada foi até agora decidido, antes pelo contrário, a propósito do novo aeroporto de Lisboa e das privatizações da TAP e da ANA. Por outro lado, o fiasco do concurso público internacional para a construção da TTT acabou no adiamento oficial da iniciativa. No entanto, a reeleição presidencial de Cavaco Silva, apesar de medíocre, parece ter lançado fogo no rabo laranja do NAL (claro que Jorge Coelho e a Mota-Engil também torcem pelo festim). Marcelo defendeu a meio da semana a lição decorada sobre a interessante ideia de dar a TAP e a ANA a quem construir o futuro aeroporto —imaginem que eram os espanhóis, ou os beduínos do Qatar! No Expresso desta semana Ferreira Leite atacou uma vez mais o "TGV", exibindo completa ignorância sobre o tema, como aliás é timbre da maioria dos agentes partidários, economistas e jornalistas.
Todos, sem excepção, ignoram que a principal vantagem competitiva da nova linha em bitola europeia entre o Poceirão e o Caia não é, nem a alta velocidade, nem o transporte de passageiros (e por isso a alcunha "TGV" é mal aplicada e enganosa), mas sim o transporte de mercadorias entre os portos atlânticos portugueses de águas profundas —Lisboa, Setúbal e Sines— e toda a Europa, a começar por Espanha. Estes portos estão actualmente ligados a Espanha por vias férreas em bitola ibérica, o que está bem para ligar a rede ferroviária portuguesa à rede ferroviária espanhola, mas dificulta o transporte de mercadorias para França e resto da Europa, onde os comboios circulam, precisamente, sobre carris afastados entre si segundo uma bitola mais estreita (bitola europeia, bitola internacional ou bitola UIC).
Se no caso do transporte de passageiros esta dificuldade pode ser superada sem grande perda de tempo, recorrendo a rodados com eixos telescópicos, já no caso dos comboios de mercadorias tal expediente é impossível. Por exemplo: um comboio com 750 metros de comprimento, carregado com os novos automóveis da Volkswagen, não pode sair da Autoeuropa e chegar a Milão, Paris, Londres, Berlim ou Moscovo. E vice-versa, sem uma linha ferroviária de bitola europeia até ao Poceirão, mas também até aos portos de Setúbal e de Sines, será sempre impossível aos fabricantes alemães, italianos, franceses ou mesmo ingleses optarem pelos nossos portos atlânticos para despacharem alguns dos seus modelos automóveis para África, América do Sul ou Ásia (neste caso, através do Canal do Panamá, cujo alargamento estará pronto em 2014).
Mas mais: o próprio transporte de mercadorias em contentor, a forma dominante de transporte de objectos de um país para outro, e de uma região ou cidade para outra, sairá seriamente prejudicado se for necessário mudar os ditos contentores de comboios de bitola ibérica para comboios de bitola europeia e vice-versa (o grande negócio alfandegário que Jorge Coelho e a Mota-Engil querem montar no Poceirão), na medida em que tais manobras tomam tempo e trabalho, gerando sobre-custos na ordem dos 30%, além de uma diminuição drástica nos fluxos de mobilidade, e por conseguinte quebras brutais nos volumes totais de mercadorias transportadas.
Resumindo: se Portugal ficar desligado da rede europeia de transporte ferroviário de mercadorias, toda a vantagem económica da nossa frente atlântica sairá criminosamente diminuída. Num tal cenário os europeus desviarão o tráfego marítimo mais importante para Algeciras e Huelva, subalternizando os nossos portos de Sines, Setúbal e Lisboa.
No momento em que a costa portuguesa e a nossa Zona Económica Exclusiva se encontram numa posição praticamente equidistante dos principais eixos do crescimento mundial (Alemanha, Brasil, China-Ásia e África ocidental), rasgar os acordos oficialmente celebrados com Espanha, que são do evidente interesse de ambos os países, em nome da obscura e néscia cobiça de uma corja de empresários e financeiros corruptos assistidos por intelectuais orgânicos, no mínimo tontos, seria provavelmente o acto mais cretino da política económica portuguesa desde a queda da ditadura.
Mas o que verdadeiramente me espanta é a gente que durante toda esta semana montou mais esta operação de propaganda agressiva contra o "TGV" ser a mesma gente serviçal, atenta e obrigada do senhor que anda há mais de um ano a defender a importância do mar para o futuro de Portugal. Mas qual é afinal a importância do mar para o presidente e fraco caudilho Aníbal Cavaco Silva? Em que pensa este senhor quando pensa no mar? Nos nossos portos, no controlo aéreo e marítimo da ZEE? Na oceanografia? Ou nos problemas do senhor Fernando Fantasia e nos quatro mil hectares que este comprou em Alcochete por 250 milhões de euros para especular com um aeroporto que não será tão cedo, se que é que algum dia será?
Por fim, o vídeo que acompanha este texto mostra como comboios de mercadorias e transporte rodoviário se articulam de modo expedito. Com o aumento imparável do preço do petróleo, e por conseguinte de todos os combustíveis líquidos, esta articulação será cada vez mais crítica para a viabilidade das economias. Ferrovia e construção naval regressarão muito em breve ao centro das prioridades estratégicas das economias. Se o senhor Aníbal, o senhor Marcelo e a senhora Manuela sabem algo que nem eu nem o resto dos portugueses sabem a este respeito, façam o favor de nos explicar.