Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado |
O que nasce torto...
A inauguração de algumas salas da nova extensão do Museu do Chiado deu origem a uma trapalhada lastimável.
- O secretário de estado revogou um seu despacho anterior sobre a transferência das obras de arte da chamada Coleção da SEC (na realidade, um cúmulo de aquisições discricionárias e tipicamente burocráticas), depositadas desde 1997 no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, para o acervo do agora chamado Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, em fase de ampliação das suas exíguas instalações.
- O diretor do museu, David Santos, e a curadora Adelaide Ginga, que está ao serviço da instituição e é co-curadora da exposição em causa, não gostaram que o subtítulo da exposição —“O legado da coleção da Secretaria de Estado da Cultura ao MNAC”— fosse inopinadamente mudado para “Arte Portuguesa na Coleção da Secretaria de Estado da Cultura (1960-1990)”.
- O copo finalmente transbordou quando a hierarquia de que depende o Museu do Chiado (Secretário de Estado da Cultura e Diretor-geral do Património) exigiu a supressão nos textos da exposição da frase “incorporação da coleção SEC no MNAC”, para assim, segundo Adelaide Ginga, “não criar problemas institucionais com Serralves”.
A versão de Serralves
Num comunicado de três páginas, no qual é relatada a sequência de correspondência entre as duas instituições, Serralves realça que o então diretor do Museu do Chiado David Santos, que se demitiu na passada semana, “concordou integralmente e de forma explícita com as condições” pedidas, ou seja, que as 114 obras da designada “Coleção da SEC” emprestadas por Serralves seriam creditadas como “obras da Coleção da Secretaria de Estado da Cultura (SEC) em depósito na Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea”.
“O Conselho de Administração de Serralves considerou então que estavam reunidas as condições para o empréstimo das obras e, em 22 de junho de 2015, foi assinada pelos diretores dos dois museus, Suzanne Cotter e David Santos, uma ficha de empréstimo das obras que cumpriu integralmente as condições estabelecidas”, refere o mesmo comunicado.
e ainda...
Num protocolo assinado em 1997, entre a Fundação de Serralves e o Ministério da Cultura, pode ler-se que a intervenção de Serralves, em termos da coleção de arte do Estado - a chamada coleção da Secretaria de Estado da Cultura - se “deverá centrar no período a partir da década de [19]60 e que o Museu do Chiado abarcará a arte portuguesa dos finais do século XIX até à década de 60”, ficando as obras afetas à coleção da Fundação de Serralves depositadas “por um período de 30 anos”, a contar da data daquele protocolo - até 2027 - automaticamente “renovável por períodos de cinco anos”.
Lusa via RTP, 16 Jul, 2015, 07:09 (notícia completa)
As razões de David Santos (1)
Resposta ao Comunicado do Conselho de Administração da Fundação de Serralves sobre a Coleção da Secretaria de Estado da Cultura
Tal como decorre do teor do próprio texto da carta de 18 de Maio de 2015, citada no comunicado do Conselho de Administração da Fundação de Serralves de 15 de Julho, o assentimento que então dei, em conformidade com ordem hierárquica superior, à identificação das obras nos termos da creditação “solicitada” pela Fundação de Serralves, e que aceitei, numa lógica de cooperação institucional e por entender que não esvaziava de sentido a exposição, tal qual tinha sido inicialmente concebida, jamais implicou abdicar, no próprio texto curatorial, da justificação da exposição, com a necessária referência à afectação da colecção SEC ao Museu Nacional de Arte Contemporânea-Museu do Chiado, determinada por despacho do SEC de 5 de Fevereiro de 2014, cuja revogação me foi comunicada no dia 6 do mês em curso e na sequência da qual me foi, então sim, determinado superiormente que eliminasse qualquer referência à dita afectação.
Vila Franca de Xira, 16 de Julho de 2015
David Santos
Comparando as duas versões relatadas dos acontecimentos parece-me evidente que houve uma gestão desastrosa do melindre suscitado pelo despacho de Barreto Xavier, entretanto revogado, que determinava a “incorporação da coleção SEC no MNAC”. A ser verdade o que escreve a administração da Fundação de Serralves, então a frase citada não poderia mesmo ser inscrita na exposição Narrativa de uma Coleção, independentemente do estipulado no despacho de 2014, pois compete ao SEC, e não do diretor do Museu do Chiado, estabelecer o tempo e o modo de execução do referido despacho.
Não há também censura, nem usurpação de autoria, quanto à decisão da tutela.
Sou amigo de David Santos, e sou amigo de Adelaide Ginga, como amigo sou de Jorge Barreto Xavier e de Nuno Vassallo. O critério desta opinião teria, pois, quer de outra natureza.
Alguns antigos responsáveis pela dislexia museológica nacional solidarizaram-se com David Santos e protestaram in situ contra as decisões de Jorge Barreto Xavier e Nuno Vassallo. Se não foi apenas um reflexo condicionado, nem um ato falhado, gostaria de conhecer os seus argumentos (2)
Como tenho opinado, e recentemente escrevi, o Museu do Chiado não deve ser mais um museu de arte contemporânea sem estrutura institucional à altura do título, sem missão clara e justificada, sem meios nem orçamento decentes, sem autonomia, sucessivamente entregue a direções fracas porque dependentes de um estado burocrático capturado pelas clientelas partidárias ou culturais de turno.
O Museu do Chiado deve ter uma e uma única missão: ser o Museu do Chiado, começando por reler o que Pessoa opinou sobre a Contemporânea, e museografar de forma competente e viva o legado riquíssimo de quem o habitou aquele coração da cidade, dando-lhe a forma e a fama cultural que merece.
Como é possível ainda não termos visto no Museu do Chiado uma exposição antológica sobre Rafael Bordalo Pinheiro?
“Perante qualquer obra de qualquer arte — desde a de guardar porcos à de construir sinfonias — pergunto só: quanta força?” (Álvaro de Campos, in Arquivo Pessoa)
Sobre este mesmo tema, neste blogue
NOTAS
- Da leitura deste esclarecimento enviado por David Santos ao Público online concluo que havia atrito evidente nas negociações do 'empréstimo' das obras da Coleção SEC, à guarda da Fundação de Serralves, ao Museu Nacional de Arte Contemporânea-Museu do Chiado. Se não fosse este o caso, o Museu de Serralves não poderia emprestar o que não era seu à entidade a quem fora destinada a referida coleção, embora só depois 2027, se... Mais relevante é ainda o facto de as divergências terem sido levantadas pela própria administração de Serralves, instância obviamente acima da que representa a diretora do museu com o mesmo nome, Suzanne Cotter. Logo, o assunto deveria ter transitado (transitou?) para o secretário de estado da cultura, Jorge Barreto Xavier, a quem competiria decidir as ações a empreender. Nem o diretor do Museu do Chiado, nem a co-curadora da exposição, Adelaida Ginga, tinham autoridade para insistir numa frase —“incorporação da coleção SEC no MNAC”—, menos ainda depois do despacho para que remetia a frase ter morrido. O SEC revogou a 6 de julho. O diretor demitiu-se a 8. Mas a exposição só inauguraria a 15, ou seja, tudo poderia ter sido resolvido nos oito dias que se seguiram à revogação do despacho de 2014.
- Li, entretanto, o panfleto de Raquel Henriques da Silva publicado em tempo útil pelo Público. O raciocínio do panfleto é tipicamente formal e burocrático, e aposta, como é usual em vésperas eleitorais, numa das hipóteses que concorrem, no caso, António Costa, e portanto numa mudança de titular à frente dos negócios da cultura, e certamente também num novo diretor para o que não deixa de ser um micro museu—segundo RHS, nacional e da arte portuguesa dos séculos 19, 20 e 21!
Raquel Henriques da Silva sabe muito bem o que é engolir sapos, e conhece melhor que ninguém o resultado pífio da sua prestação museológica no país. O que decidiu ruiu, e o que se mantém, bem (Serralves), ou mal (Museu Berardo), não dependeu de si. A sua visão de típica burocrata centralista nunca lhe permitiu perceber a periferia de Lisboa, quanto mais o resto do país.
Estender o Museu do Chiado para as antigas instalações ocupadas pelo Governo Civil de Lisboa foi obra do atual secretário de estado, Jorge Barreto Xavier, assim como o despacho que, se executado com prudência, sensibilidade e diplomacia, teria levado paulatinamente o acervo sofrível, conhecido como Coleção SEC, para as futuras reservas do Museu do Chiado, quando as mesmas estivessem prontas. Por isto, aliás, o protocolo com Serralves, de 1997, previu prudentemente um depósito das mencionadas obras, nas reservas no novo Museu de Serralves, até 2027. A abertura da nova extensão do Museu do Chiado e a exposição que hoje lá podemos ver teria antecipado este prazo, precisamente porque fora coroado de êxito o trabalho político paciente e juridicamente informado de Jorge Barreto Xavier. No fim, alguém borrou a pintura, cedendo à provocação (admito) de um administrador de Serralves, mas esta culpa, do que pude apurar, não pode ser assacada ao secretário de estado da cultura. Este engole sapos, tal como Raquel Henriques da Silva, à sua dimensão, terá engolido uma mão cheia deles ao longo da sua carreira. É a vida dos funcionários públicos e dos políticos que chegam e partem. Falar de censura, ou de atentado à autoria, a propósito deste escusado incidente é que não tem o mínimo fundamento.
David Santos foi colocado perante uma pressão vinda do alto, tal como Barreto Xavier e Nuno Vassallo. Não soube gerir a pressão, e portanto decidiu mal, pois em nome de uma honra e deontologia que não estavam em causa comprometeu a sua própria agenda profissional e o projeto que defendeu para o Museu do Chiado. Os artistas que dele muito esperavam ficaram, uma vez mais, apeados.
Leio insistentemente que os quadros da dita Coleção SEC andam por ai abandonados nos gabinetes ministeriais, “em gabinetes no Palácio da Ajuda e na Presidência do Conselho de Ministros” (RHS, Público, 14/7/2015), como se fosse uma lepra que ataca a pintura, a fotografia e a escultura. Mas as obras de arte não são feitas para decorar ou comemorar os aposentos de quem as compra—as nossas casas, os átrios e os gabinetes das administrações de empresas e instituições, as praças emblemáticas das cidades de todo o mundo? Não vemos, quase diariamente, uma monumental tapeçaria de Eduardo Batarda decorando as molduras humanas do Tribunal Constitucional? Não vemos pela televisão pinturas do mesmo Batarda, de Jorge Martins e de outros artistas portugueses nas reportagens políticas que nos chegam da sede da Comissão Europeia em Bruxelas? Onde crê a Raquel Henriques da Silva que as obras de arte devem estar? Nas morgues dos museus, onde por definição só os conservadores e os restauradores as observam, em museus que ninguém visita, ou entre os mortais que todos somos?
Não temos nem poupança, nem competências para alimentar 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 museus de arte moderna e contemporânea com os impostos que pagamos cada vez mais, ou com isenções fiscais que muita falta fazem noutras instâncias sociais. Sobretudo quando é para mostrar os mesmos artistas do cardápio palaciano de sempre, e boa parte destes museus estão invariavelmente às moscas salvo quando há inaugurações. E mesmo nestas...
Se querem rentabilizar o Museu do Chiado chamem-lhe apenas Museu do Chiado, e convoquem Álvaro de Campos, o Almada Nome de Guerra, o Rafael Bordalo Pinheiro, Leitão de Barros, Mário Barradas, a voz genial de Villaret, Cezariny, O'Neill, Jorge Vieira, Lopes Graça, Joly Braga Santos, Hogan, Luís Pacheco, em suma, os mortos mais vivos do Chiado, e então teremos um museu a sério, pós-contemporâneo, habitado e explosivo.
Estou farto de escribas e burocratas.
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