Ocupação do Museu do Chiado, Lisboa (4-5/6/2014) Foto Facebook
Quem se mete com meninos acorda molhado
Por ANTÓNIO CERVEIRA PINTO
Portugal
PIB per capita (2013) 15.842,2 euros
Remunerações do trabalho per capita (2013): 7.641,6 euros
Salário médio líquido (2013): 984 euros/mês; 13.776 euros/ano
Salário médio anual dos trabalhadores temporários (2013): 6.984 euros/ano
Salário mínimo (2014): 485,0/mês; 6.790 euros/ano
Pensão média da Segurança Social (2012): 4.135,1 euros/ano
Dinheiro gasto pelo museu na produção da obra e exposição de Rui Mourão: 8.000 euros (RM dixit)
A ação promovida pelo artivista Rui Mourão durante a inauguração da exposição para que foi convidado pelo Museu do Chiado (vídeo), uma entidade 100% pública, dirigida por David Santos, que para esta instituição transitou após concurso, depois de vários anos à frente do Museu do Neorrealismo, em Vila Franca de Xira, é uma típica manifestação daquilo a que poderíamos chamar a política rasca dos meninos e meninas desmioladas e mimadas de uma democracia falida.
Comportamento rasca #1: não se morde a mão de quem nos dá de comer, e se para o artivista Rui Mourão oito mil euros por uma única tarefa é poucochinho, deveria ter recusado o convite, pois haveria certamente algumas centenas de artistas desejosos de ocupar o seu lugar. Rui Mourão traíu a confiança de um jovem diretor de museu, sério e que goza de grande apreço entre a geração de artistas que sucedeu àquela que durante mais de vinte anos ocupou todos os poros institucionais da cultura contemporânea indígena, bloquenado enquanto pôde a geração que David Santos tem vindo a defender pela sua ação conhecedora e ponderada. Do ponto de vista legal, e sobretudo da decência, Rui Mourão rompeu unilateralmente um contrato e insultou a instituição que o acolheu. Se eu fosse diretor do Museu do Chiado a sua exposição teria sido imediatamente encerrada. Creio mesmo que o responsável governamental pela instituição —Jorge Barreto Xavier— não terá outra alternativa se não seguir este procedimento, sob pena de abrir caminho à transformação da arte portuguesa em mais um sindicato de artistas funcionários semi-públicos mal criados.
Comportamento rasca #2: o artivista Rui Mourão acha que o estado deve alimentá-lo a ostras e caviar, em nome da cultura, e dos direitos de dois milhões de pobres que têm o direito de ver gratuitamente as suas ocupações de museus porque, diz ele, é um contribuinte líquido. É? E já agora, quem pagará a gratuitidade dos museus se os artistas que supostamente devem criar a riqueza de que os museus se alimentam são os primeiros mandriões que fazem da caça ao orçamento, e não da arte, a sua verdadeira especialidade? Em que se distingue o artivista Rui Mourão do resto da corja rendeira, devorista e partidocrata que condena? Não foi a caça ao tesouro orçamental sobre endividado que nos trouxe até aqui?
Comportamento rasca #3: o artivista Rui Mourão poderia ter lançado a sua diatribe no público CCB, que continua a servir escandalosamente o concubinato cultural sórdido do tempo do 'socialista' José Sócrates (sem incorrer em quebra de contrato ou de confiança), ou no Centro Comercial Colombo que é da mesma Sonae que condena por financiar à sua maneira a sala onde precisamente montou o seu estendal, ou ainda no BES Arte & Finança, por razões óbvias de oportunidade. Poderia, por exemplo, dirigir uma simples carta ao 'socialista' António Costa perguntando-lhe quanto pagou ou tenciona pagar, com o dinheiro que os contribuintes de Lisboa não têm, pela coleção de design e moda do MUDE, adquirida a um único colecionador. Mas não, preferiu atacar uma instituição sem orçamento, indefesa, apunhalando pelas costas a boa fé do seu diretor. Foi mais fácil, não foi? Mas agora temos um problema novo nos museus e centros de arte do país: vai ser necessário redigir um contrato-tipo para todas as exposições que vierem depois deste ato de descarado oportunismo e carreirismo.
Rui Mourão reclama a existência de um ministro da cultura, e até ensaiou a turma ensonada que o acompanhou na sua rasquíssima performance a repetir em coro este choro tipicamente infantil e próprio de meninos e meninas mimadas para quem pensar não costuma ocupar os seus tempos livres. Saberá o artivista traiçoeiro e a turma de sindicalistas culturais que acampou no museu que os países culturalmente mais produtivos e marcantes deste planeta —Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Suíça, Áustria e Japão— não têm ministérios da cultura? Então ocupa-se um museu público para exigir um ministro da cultura? Quem vos encomendou o sermão?!
Por fim, saberão os campistas do Museu do Chiado que os cortes na cultura têm ocorrido na maioria dos países europeus com tanta ou mais virulência que em Portugal? E se sabem, ou se o artivista Rui Mourão sabe, pois até escreveu um livro, não seria razoável pensarmos todos numa discussão mais informada e mais educada sobre o assunto?
Uma leitura a propósito...
We should allow failing arts organizations to die.
A debate that began (for me) nine months ago, finally gets real at #aftacon.
By Devon Smith on Jun 15 - M
Agree or disagree: we should let arts organizations that don’t adapt die.
Arts organizations are already dying. In Detroit, in New York City, in the UK. From operas to art galleries. This is no longer an urban versus rural debate. A nonprofit versus for profit debate. A “one discipline is dying” but “others are inexplicably thriving” debate.
This is a simple acknowledgement that the industry represented by the people and organizations in this room, is in decline. And I think that not only should we allow it, we should encourage it.
Ocupação do Museu do Chiado, Lisboa (4-5/6/2014) Foto Facebook
A arte sujeita à condição pós-moderna tornou-se um complexo industrial, de serviços e de consumo de massas — o que muda quase tudo!
Nos últimos quarenta anos, ou seja desde a década de 1970, que as sociedades industriais em fase de terciarização acelerada se deparam com um problema social novo: o desemprego estrutural causado, nomeadamente, pelo extraordinário aumento da produtividade das tecnologias e métodos de gestão. Este problema agravou-se a partir de meados dos anos oitenta do século passado, com a emergência de grandes países, sobretudo em termos demográficos, como a China, a Índia, a Nigéria e o Brasil, entre outros. Quase tudo, incluindo o design e a arte, começaram a ser produzidos nestas novas geografias a custos incomparavelmente mais baixos. Qual foi então a resposta americana e europeia a este desafio? Basta ler o premonitório livro The End of Work (1995), de Jeremy Rifkin, para o sabermos. Na realidade, os poderes políticos resolveram apostar em duas cartas: educação e formação profissional permanentes e financiamento do consumo. As distorções desta economia artificial acumularam-se paulatinamente até formarem uma bolha especulativa monumental. Desde 2006 que a bolha começou a rebentar. Já vamos em oito anos de colapso económico, financeiro, social e cultural. Porque as causas não são as que a espuma populista dos partidos da nomenclatura fazem crer aos cidadãos para lhes arrancar votos (cada vez menos, aliás), a obrigação dos intelectuais, dos cientistas e dos artistas, pela exigência livremente assumida das suas missões, é olhar para as dificuldades de uma maneira diferente, desinteressada, sem o que a metamorfose em curso será ainda mais dolorosa, e porventura mortal.
Da convocatória publicada no sítio do Museu do Chiado
Inauguração da exposição OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado, sexta-feira, 19h.
O projeto que Rui Mourão expõe no MNAC - MC (comissariado por Emília Tavares), consiste num conjunto de videoinstalação + livro + performance.
Na inauguração será lançado o livro "Ensaio de Artivismo (vídeo e performance)" escrito por Rui Mourão (com apresentação de David Santos e um texto da curadora Emília Tavares).
A performance a realizar na inauguração contará com a colaboração do Colectivo Negativo.
"O título – OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS – é uma apropriação de um slogan de protesto, repetido em cartazes levantados na Acampada do Rossio em 2011, movimento que direta ou indiretamente marcou o percurso de muitos dos atores e impulsionadores das 10 performances artivistas ocorridas em Lisboa entre 2008 e 2013 reunidas nesta vídeoinstalação, juntamente com outras tantas entrevistas realizadas e gravadas com protagonistas das ações abordadas e que relatam, na primeira pessoa, os respetivos posicionamentos e interpretações. Fruto de um trabalho de investigação de campo, acompanhando e filmando ativistas nas suas ações, esta vídeoinstalação permite esboçar uma etnografia de práticas e agentes de contestação ao nível dos chamados novos e novíssimos movimentos sociais e, simultaneamente, percecionar as analogias existentes entre as estratégias de dissensão no âmbito do protesto político no espaço público e as dissensões formais do campo artístico. São essas estratégias – artivistas – vindas do exterior do sistema institucional, que apostando na criatividade, na emoção, na comunicação e no inesperado, permitem a qualquer pessoa motivada tornar-se num ator político a ocupar a esfera pública."
Rui Mourão, in "Ensaio de Artivismo (vídeo e performance)". Lisboa: MNAC-Museu do Chiado, 2014 (no prelo).
"Rui Mourão reafirma uma postura artística que é ela também de resistência ao senso comum e da aptidão da arte contemporânea para ser um processo de compromisso social. Sobre o resultado desse processo ainda muito haverá a avaliar, mas para já, as dissensões que este trabalho expõe deixam como possibilidade a resiliência aos ditames que o sistema das artes espera dos artistas, “que operem críticas construtivas do sistema mas não ameacem as instituições públicas, as classes hierárquicas e outros legados do liberalismo burguês; que intervenham na cultura mas não pareçam agressivos ou seriamente preparados para lutar pela igualdade política.”(Lipovetsky, Gilles, Serroy, Jean, L’Esthétisation du Monde: vivre à l’âge du capitalisme artiste. Paris: Gallimard, 2013, p. 435)"
Emília Tavares, in "Ensaio de Artivismo (vídeo e performance)". Lisboa: MNAC-Museu do Chiado, 2014 (no prelo).
A exposição estará patente até dia 28 de setembro, 2014. Terça a domingo, 10 - 18h.
Ocupação do Museu do Chiado, Lisboa (4-5/6/2014) Foto Facebook
Post scriptum
A quebra de confiança
protagonizada pelo artivista Rui Mourão, além de favorecer objetivamente
aqueles que arruinaram o país e asfixiaram a disseminação da cultura
portuguesa no mundo (tal a insistência em tentar demonstrar que apenas
tínhamos dois artistas medíocres e oportunistas: Sarmento e Cabrita
Reis), é o exemplo de uma ação inqualificável de promoção pessoal,
sobretudo para consumo externo, numa tentativa desesperada de furar o
bloqueio referido. Confundir exibicionismo e oportunismo mediático a
qualquer preço com arte é um caminho hoje muito trilhado, típico de uma
cultura propagandística que corre atrás da notícia e mais recentemente
dos LIKES. No entanto, à medida que o tempo dos média se torna circular,
e uma nova instância do eterno retorno regressa, a decantação recomeça:
GARBAGE IN/ GARBAGE OUT.
No Brasil os artistas sabem o que é arte e responsabilidade social. Em Portugal, ainda andamos atrás dos patrocínios da EDP - que são pagos com os nossos impostos e nas rendas excessivas e taxas abusivas incluídas na fatura elétrica que pagamos todos os meses.
A corja partidária e a cleptocracia indígenas são os principais responsáveis. Mas nós também somos responsáveis, por distração, ingenuidade ou estupidez!
A tragédia imensa de Valonj depois do colapso da barragem deveria ser mostarda e explicada às autoridades partidárias, municipais, regionais e nacionais envolvidas no projeto da barragem do Fridão
Amarante é uma cidade portuguesa que poderá ficar sob ameaça de uma tragédia como a que ocorreu em Itália se deixarmos construir a barragem do Fridão. O documentário do National Geographics sobre a este crime, cujos culpados acabariam na prisão, é um aviso!
O acidente de automóvel substitui as batalhas medievais como tema artístico de eleição
Em 1933, o presidente Roosevelt, numa América em profunda depressão, decretou o confisco do ouro na posse dos cidadãos, pagando-lhes uma miséria pelas onças e jóias confiscadas. Realizado o assalto, o ouro subiu em flecha, por decreto! O governo de Washington pagou 20 dólares por cada onça de ouro expropriada, e depois subiu a cotação da mesma para $35, ou seja, o governo americano levou a cabo um roubo equivalente a 75% da riqueza em ouro acumuladas pelos cidadãos ameficanos.
Talvez a memória deste rapto leve os ricos americanos, mas não só, a pensar duas vezes antes de voltarem a meter os dólares todos em ouro. Não será melhor diversificar o risco de confisco público, apostando noutros valores, como por exemplo as obras de arte e a propriedade rural fértil e com água? Os governos têm sempre maneira de roubar o que não lhes pertence, quando as suas cabeças estão a prémio, em nome, claro, dos povos que diariamente também roubam. O fascismo fiscal, como temos vindo a sentir no nosso país, é uma delas.
A procura desesperada de valor prossegue numa América onde o dólar se transformou num vulgar e barato papel higiénico. Ouro, terra que dê pão e água, e arte, são sempre oportunas alternativas ao papel-dinheiro, às obrigações dos governos, dos bancos e das EDPs deste mundo. A nova bolha bolsista de Wall Street, que se financia na diarreia monetária a que a FED chama Quantitative Easing, tem vindo a gerar ativos financeiros astronómicos, ao mesmo tempo que os sem abrigo e sem comida da América ultrapassam já 15% da população. É, pois, lógico que os especuladores e os muito ricos encaminhem parte das suas montanhas de dólares virtuais para algo bem real, como seja uma pintura de Francis Bacon, ou um desastre de Andy Warhol.
As duas leiloeiras fizeram vendas agregadas astronómicas. É de prever que algum reflexo desta exuberância acabe por chegar à Europa e a... Portugal.
Francis Bacon, “Three Studies of Lucian Freud” (1969)
Financial Crisis: What if Carnage Is Structural, Not Cyclical?
February 21, 2010
Michael Panzner
Throughout the financial crisis, policymakers have focused on keeping things afloat until the storm passes. They've spent vast sums of taxpayer funds trying to jumpstart growth until the economy is back on track. They've encouraged people to keep the faith until businesses start hiring again.
But what happens if all those "untils" turn out to be wide of the mark? What if the carnage we've experienced so far is structural, not cyclical? If that's the case, then Americans are going to find that instead of experiencing better times ahead, they are going to be much worse off than they were -- or are. — inSeeking Alpha.
A Revolução Industrial tirou e continua a tirar dos campos (agora sobretudo na Ásia) milhares de milhões de agricultores e camponeses, provocando o aparecimento de uma malha cada vez mais densa de sociedades urbanas por todo o planeta. A invenção dos aparelhos mecânicos e electromecânicos, movidos a água, vapor, electricidade, ou por efeito da explosão de gases comprimidos, alimentado-se todos eles de energia maioritariamente oriunda do carvão, petróleo, gás natural, barragens (e mais recentemente, do álcool, do biogás, do vento e do Sol) conduziu a um aumento exponencial da produtividade, nomeadamente no crítico sector da produção e segurança alimentares. O regresso a uma agricultura baseada no esforço físico humano e em animais de transporte, carga e tracção, parece-nos hoje impensável. Só mesmo no quadro de um esgotamento irremediável das fontes energéticas abundantes que o homem vem utilizando intensamente e transformando desde finais do século 18, poderíamos antever a perspectiva enigmática de um tal retrocesso.
Mas este mesmo avanço tecnológico, com os sempre almejados ganhos de produtividade que marcaram simultaneamente a evolução das máquinas e das formas de organização do trabalho industrial, a par da procura de uma maior proximidade das matérias primas e de contingentes de mão-de-obra assalariada socialmente menos exigente e mais barata, conduziu-nos, porém, a uma nova vaga de desertificação profissional — desta vez, nas cidades, e sobretudo nas imensas cinturas industriais que foram crescendo como cogumelos e rizomas em toda a Europa, nos Estados Unidos e em outras partes do mundo. A crise social daqui resultante provocou, a partir do início da década de 70 do século passado, o crescimento de uma vasta burocracia letrada, associada a um crescimento exponencial do sector de serviços, por sua vez envolvido na expansão e diversificação do consumo. O consumo cultural e os sistemas de bem-estar social, onde predominam as áreas da educação, saúde e protecção social (na doença, no desemprego e na velhice), fizeram dos serviços públicos e privados o grande herdeiro, em termos de emprego e crescimento, das economias camponesa e industrial.
The Long-Term Employment Bust
Feb 18, 2010
David P. Goldman
High levels of unemployment may last indefinitely. A number of economists (including this writer) have been warning about permanent joblessness, and the idea is now seeping into popular magazines.
More than 8 million American jobs were lost since 2007, based on the most recent revision of the overall job count of U.S. establishments. But that is not the worst of it, because the establishment survey fails to capture smaller businesses and the self-employed. By the Bureau of Labor Statistics’ broadest measure of unemployment, including the forced part-time workers and so-called discouraged workers, the unemployment rate rose to 17 percent from 8 percent before the recession. — inFirst Things.
Os agricultores, camponeses e pescadores transformaram-se em patrões de indústria e operários, e estes, no ciclo seguinte, em especuladores financeiros, burocratas (funcionários públicos e operadores de serviços), e consumidores (cinéfilos, turistas, etc.) A transformação subsequente, que começou na década de 1980 e atinge agora uma fase de aceleração dramática, levou já a um novo e espectacular aumento da produtividade tecnológica do trabalho, com a consequente libertação de energia humana.
Até agora, este tipo de libertação social do trabalho deu origem a períodos dramáticos de desemprego, a que se seguiram períodos de criação em larga escala de novas formas de trabalho humano tecnologicamente assistido, e melhores condições de vida. A prova disto mesmo é o crescimento demográfico e o aumento da esperança de vida dos humanos ao longo de todo o século 20, apesar das mortíferas guerras que, por outro lado, caracterizaram a economia industrial ao longo dos últimos 200 anos — na sequência das revoluções políticas, sociais e tecnológicas desencadeadas pela criação dos Estados Unidos da América (1776), pela Revolução Francesa (1789) e pela invenção da máquina a vapor (1790.)
Até ao aparecimento e disseminação do computador pessoal (início da década de 1980) e da Internet (início da década de 1990) a humanidade concentrou-se sobretudo na evolução e expansão das suas capacidades físicas de transformação material da realidade, de mobilidade e de projecção de forças. As tecnologias resultantes da imaginação científica e da criatividade narrativa e formal serviram pois para modelar um super-homem essencialmente metálico. Esta evolução teve, porém, várias consequências desastrosas: exaustão de recursos naturais não renováveis; destruição progressiva de ecossistemas essenciais à manutenção da vida terrestre (que, sabemos hoje, é em si mesma um grande organismo simbiótico); e transformação do animal humano num consumidor insaciável de bens que cada vez menos produz directamente e sobre os quais foi perdendo o direito de propriedade (o crédito universal tornou-se no mais invasivo, pernicioso e eficaz estratagema de expropriação maciça dos povos.)
Os cenários sombrios que prevêem o prolongamento da civilização humana através de um paradigma radicalmente novo e inesperado —a eliminação programada de uma parte substancial da humanidade— derivam das próprias projecções económicas do esgotamento dos modelos de sociedade baseados no trabalho humano. Uma debulhadora mecânica expulsa o camponês dos campos, tal como o robô expulsa o operário da fábrica, tal como os computadores em rede dispensarão progressivamente boa parte dos burocratas, médicos e enfermeiros, professores e investigadores actuais.
Ao exteriorizarmos em máquinas e redes interactivas crescentemente sofisticadas a realização dos movimentos físicos, transformações e operações mentais necessários aos sistemas de suporte de vida adequados à nossa espécie e ao respectivo estado cultural, ficamos basicamente com tempo livre que, no Capitalismo conhecido, ninguém quer comprar! Dito doutro modo: um número reduzido de humanos poderá, num futuro próximo (30 a 100 anos), concentrar nas suas mãos o controlo neural, à escala planetária, da totalidade dos meios de produção e das regras de sociedade.
Que se fará então do tempo humano disponível, mesmo tendo em conta que a seguir ao actual pico demográfico se seguirá uma contração brutal do número de humanos à face da Terra? O ajustamento demográfico, nomeadamente em nome de novos e radicais patamares de sustentabilidade —como prevê a chamada Teoria de Olduvai— que preço terá?
Dados referentes aos EUA.
Enquanto a lógica do Capitalismo assentou no crescimento do PIB mundial —para o que foi necessário inventar a globalização e virtualização dos mercados financeiros, e a liberalização do comércio mundial—, ocorreu um fenómeno curioso: os países mais ricos começaram a crescer sobretudo pelo lado do consumo (e do endividamento), à medida que os países mais pobres cresciam por importação dos modelos produtivos e de exploração do trabalho humano entretanto esgotados nos países mais desenvolvidos, fazendo a sua própria transição económica (da agricultura para indústria, e desta para os serviços...) A deterioração das balanças comerciais entre consumidores e produtores foi crescendo silenciosamente ao longo dos últimos 40 anos, até atingir o actual ponto de ruptura. Quando a China exige —como acaba de exigir— a transferência de patentes, de marcas, de conhecimento e da própria investigação, para o seu território, em troca do prolongamento da aquisição maciça da dívida americana, e assistimos, por outro lado, ao esvaziamento da gigantesca bolha de endividamento privado e público dos Estados Unidos, Canadá e Europa, percebe-se facilmente que, muito possivelmente, a civilização humana se encontra à beira de uma dramática mudança de paradigma.
US Companies Required to move Research Centers to China
Feb 18, 2010 01:14 AM
Howard Richman
On January 29, nineteen trade groups including the U.S. Chamber of Commerce and the National Association of Manufacturers sent a letter to U.S. Government officials about China's new requirement that they move their research and development centers to China as a condition for doing business with the Chinese government. — inSeeking Alpha.
A expansão do conhecimento, combinada com uma desmaterialização progressiva dos processos de felicidade e a concentração/expropriação radical da propriedade privada, permite antever uma redução em massa dos activos humanos improdutivos e economicamente insuportáveis — não necessariamente através do extermínio violento das populações, mas antes recorrendo a processos indirectos e suaves de redução demográfica selectiva. A automação inteligente dos processos produtivos levada ao extremo dispensará boa parte da mão de obra humana actual. Mantê-la apenas como destino final da produção foi o modelo experimentado ao longo dos últimos 40 anos. Os limites deste modelo, chamado erradamente pós-industrial, estão agora à vista, sobretudo pela evidência da destruição de recursos e alterações nocivas aos equilíbrios ambientais do planeta que causou.
The End of Work
In 1995, Rifkin contended that worldwide unemployment would increase as information technology eliminates tens of millions of jobs in the manufacturing, agricultural and service sectors. He traced the devastating impact of automation on blue-collar, retail and wholesale employees. While a small elite of corporate managers and knowledge workers reap the benefits of the high-tech world economy, the American middle class continues to shrink and the workplace becomes ever more stressful. — inWikipedia.
A indecisão que actualmente paralisa governos, partidos políticos e decisores em geral —bem à vista, por exemplo, na incapacidade revelada pelos directórios da União Europeia na resolução do problema do endividamento soberano de países como a Grécia, Irlanda, Espanha e Portugal — é a prova provada de que o que está em causa não é uma qualquer crise cíclica do Capitalismo, mas uma verdadeira avaria sistémica deste modo de exploração. O simples facto de a 26 de Fevereiro não termos ainda em Portugal um Orçamento de Estado aprovado, nem se vislumbrar o que vai ser o famoso Programa de Estabilidade e Crescimento, mostra até que ponto vai a impotência e o medo populista dos principais protagonistas do exausto regime político que temos desde 1975. Os decisores financeiros e políticos meteram, pura e simplesmente, a cabeça debaixo da areia, e esperam que a crise passe. Mas não vai passar. Ou não vai passar sem a adopção de medidas extremas. Ou irá levar duas décadas a atenuar o impacto destruidor do buraco negro criado pelo mercado de derivados financeiros — o qual tem um valor nocional equivalente a 4x a riqueza total produzida no mundo, e 9x o PIB mundial. Quando esta e a próxima década tiverem passado, o mundo será certamente outro.
Em 1516 Tomás Moro escreveu a Utopia, num mundo que iniciava então profundas mudanças tecnológicas, económicas, sociais e culturais. Todos sabemos o que lhe custou o silêncio perante as dúvidas e interrogações insistentes de Henrique VIII. Mas pouco saberão, ou se lembrarão, que o personagem chave de um dos principais tratados da modernidade (a par da Divina Comédia, de Dante, e do Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão) é um viajante lusitano, de nome Raphael Hythlodaeus. Como era costume à época (1), os sub-textos eram frequentemente tão ou mais importantes do que os textos. No caso, Utopia significa simultaneamente um não-lugar (Οὐτοπία) e um lugar afortunado (Εὐτοπία), ao passo que o nome do viajante português —culto no Latim, mas excelso na língua Grega—, por sua vez, mistura o apelido Hythlodaeus —que em grego [Υθλοδαιος] significa pessoa que diz coisas sem sentido (2)— com o nome Raphael, que na tradição hebraica é o mensageiro de Deus, e significa literalmente "Deus cura". Esta ambiguidade permite uma multiplicidade de derivas e interpretações de uma obra que é sobretudo uma crítica da Política, na sua dupla face, pragmática e populista. "Deus fala por linhas tortas" é uma maneira de afirmar que a Razão, para tê-la, necessita de contraditório, de risco e de uma ponta de imaginação e loucura! Em especial quando as metamorfoses se aproximam, é preciso mostrar o que pode existir para lá da realidade gasta dos dias. Um passo no desconhecido? Sim.
A evocação da Utopia de Tomás Moro tem aqui uma dupla intenção: recordar a nossa velha condição de emigrantes e aventureiros —que a crise profunda actual voltará a incentivar—, e retomar, ainda que de passagem, dois pontos especialmente interessantes e actuais na perspectiva da gestão da crise social que se aproxima como verdadeira tempestade, mas também da necessidade de fundar e promover uma aproximação criativa a mais uma metamorfose cultural da espécie humana, que já começou, mas que ainda não encontrou um novo paradigma de futuro.
As duas citações da edição de Harvard da Utopia, que a seguir transcrevo, correspondem sucessivamente à descrição do personagem Raphael e da sua breve aventura, e a uma parte do discurso deste contra a pena de morte por delitos menores (no caso o roubo a que os pobres e miseráveis se dedicam quando lhes falta o pão.)
Sir Thomas More (1478–1535). Utopia.
The Harvard Classics. 1909–14.
The First Book
The First Book of the Communication of Raphael Hythloday, Concerning the Best State of a Commonwealth
Upon a certain day when I had heard the divine service in our Lady’s church, which is the fairest, the most gorgeous and curious church of building in all the city and also most frequented of people, and, the service being done, was ready to go home to my lodging, I chanced to espy this foresaid Peter talking with a certain stranger, a man well stricken in age, with a black sunburned face, a long beard, and a cloak cast homely about his shoulders, whom by his favour and apparel forthwith I judged to be a mariner. But when this Peter saw me, he cometh to me and saluteth me.
He should have been very welcome to me, said I, for your sake.
Nay (quoth he) for his own sake, if you knew him: for there is no man this day living, that can tell you of so many strange and unknown peoples, and countries, as this man can. And I know well that you be very desirous to hear of such news.
Then I conjectured not far amiss (quoth I) for even at the first sight I judged him to be a mariner.
Nay (quoth he) there ye were greatly deceived: he hath sailed indeed, not as the mariner Palinure, but as the expert and prudent prince Ulysses: yea, rather as the ancient and sage philosopher Plato. For this same Raphael Hythloday (for this is his name) is very well learned in the Latin tongue: but profound and excellent in the Greek tongue. Wherein he ever bestowed more study than in the Latin, because he had given himself wholly to the study of philosophy. Whereof he knew that there is nothing extant in the Latin tongue that is to any purpose, saving a few of Seneca’s, and Cicero’s doings. His patrimony that he was born unto, he left to his brethren (for he is a Portugal born) and for the desire that he had to see, and know the far countries of the world, he joined himself in company with Amerigo Vespucci, and in the three last voyages of those four that be now in print and abroad in every man’s hands, he continued still in his company, saving that in the last voyage he came not home again with him. For he made such means and shift, what by entreatance, and what by importune suit, that he got licence of master Amerigo (though it were sore against his will) to be one of the twenty-four which in the end of the last voyage were left in the country of Gulike. He was therefore left behind for his mind sake, as one that took more thought and care for travelling than dying: having customably in his mouth these sayings: he that hath no grave, is covered with the sky: and, the way to heaven out of all places is of like length and distance. Which fantasy of his (if God had not been his better friend) he had surely bought full dear. But after the departing of master Vespucci, when he had travelled through and about many countries with five of his companions Gulikians, at the last by marvellous chance he arrived in Taprobane, from whence he went to Caliquit, where he chanced to find certain of his country ships, wherein he returned again into his country, nothing less than looked for.
...
It chanced on a certain day, when I sat at his table, there was also a certain layman cunning in the laws of your realm. Which, I cannot tell whereof taking occasion, began diligently and busily to praise that strait and rigorous justice, which at that time was there executed upon felons, who, as he said, were for the most part twenty hanged together upon one gallows. And, seeing so few escaped punishment, he said he could not choose, but greatly wonder and marvel, how and by what evil luck it should so come to pass, that thieves nevertheless were in every place so rife and rank. Nay, sir, quoth I (for I durst boldly speak my mind before the Cardinal), marvel nothing hereat: for this punishment of thieves passeth the limits [of] justice, and is also very hurtful to the weal public. For it is too extreme and cruel a punishment for theft, and yet not sufficient to refrain men from theft. For simple theft is not so great an offence, that it ought to be punished with death. Neither there is any punishment so horrible, that it can keep them from stealing, which have no other craft, whereby to get their living. Therefore in this point, not you only, but also the most part of the world, be like evil schoolmasters, which be readier to beat, than to teach their scholars. For great and horrible punishments be appointed for thieves, whereas much rather provision should have been made, that there were some means, whereby they might get their living, so that no man should be driven to this extreme necessity, first to steal, and then to die.
Edição de 1909-14 - The Harvard classics, edited by Charles W. Eliot. Published by New York: P.F. Collier & Son, 1909–14. (Link) Edição em Latim aqui.
Reler este clássico, cruzando as suas ideias impensáveis com, por exemplo, as propostas e estudos recentes em volta da criação e generalização de um Rendimento Básico Universal (Basic Income), bem mais avançadas do que as versões tímidas e sem visão dos nossos Rendimento Mínimo Garantido e Rendimento de Reinserção Social, será certamente um bom exercício de preparação para uma abordagem visionária e estruturante dos inúmeros bloqueios que agora mesmo afligem todos os decisores políticos responsáveis, e uma boa parte dos intelectuais mais atentos.
Termino pelo ponto de partida deste artigo, que só agora exponho, e que foi este: imaginar o que sucederia se todas os 10 627 250 pessoas que constituem a população portuguesa (INE 2008) recebessem um Rendimento Básico Universal, independentemente da sua idade, sexo, situação laboral e nível de riqueza, na ordem dos 150 euros/mês — ou seja, 5 euros/dia. A despesa orçamental seria de 15.940.875.000 euros, ou seja, qualquer coisa como 1/5 da despesa total prevista para este ano (81.216.000.000/ OE2010), quase 3 mil milhões de euros menos do que a despesa prevista com o pessoal das Administrações Públicas (18.680.000.000), e menos de metade do dinheiro que o Estado português tenciona pedir emprestado este ano ao estrangeiro (sob a forma de emissões de títulos de dívida altamente onerados) para financiar o descontrolado endividamento do país (3). Que sucederia?
É certo que um cenário como este iria colocar inúmeros problemas. Mas será que tais problemas seriam menos virtuosos e estrategicamente menos interessantes do que os movimentos browniano das baratas tontas que actualmente deveriam dar respostas credíveis aos problemas —e não dão
Post scriptum — A brilhante palestra de Ken Robinson vem na linha do pensamento lateral que temos que por em marcha se quisermos atacar frontalmente e com alguma probabilidade de êxito o impasse sistémico a que chegámos. Por maior que seja a blasfémia, a verdade é que o edifício educativo ocidental está a ruir por dentro e vai ser preciso reformar profundamente o conceito de educação, começando por um novo entendimento da sua natureza e aplicação nas sociedades tecnologicamente avançadas. Ao contrário do que afirma Medina Carreira, o problema da Educação não é de disciplina, mas de excesso de despesa e estatização bolchevique.
NOTAS
Recorri a esta transcrição de C.A. Patrides para melhor situar as características da personagem central da Utopia, cuja traduções apressadas por vezes simplificam em demasia:
"Raphael Hytlhloday" is among the most elaborate scholarly jokes of the Renaissance. The Hebraic "Raphael" represents the messenger of God and literally means "God heals", while "Hythloday" transliterates the Greek [Υθλοδαιος] or "speaker of nonsense". In effect, then, the full name could be said to suggest one who is meant to heal but, incapable of doing so, dispenses nonsense instead. But an even more remarkable pun, this time trilingual, would reverse the judgment in Hythloday's favor: "God heals [Hebr., Raphael] through the nonsense [Gr., hythlos] of God [Lat., dei]". Whether actual or presumed, etymological expertise of this order underlines that we are to credit the existence of No-place as related by a man essentially called No-sense. But it underlines More's achievement too, in that w are soon embroiled in the nonexistent political and social structure of No-place, and allow more sense to No-sense than even common sense aloows we should. in"The ills of the body politic", Figures in a Renaissance context, By C.A. Patrides.
Ou vendedor de sonhos, contador de rábulas, vendedor ambulante, mexeriqueiro, bufarinheiro, mascate.
Uma contração instantânea da despesa pública nos sectores das Finanças e Administração Pública (OE2010/ 1.282.800.000), Educação (OE2010/ 7.344.000.000) e Saúde (OE2010/ 9.183.000.000) na ordem dos 30% permitiria libertar 8.806.500.000 de euros para o Rendimento Básico Universal (RBU). Levar a cabo um verdadeiro e urgente programa de eficiência energética à escala nacional, não só criaria emprego durante uma década e meia, como permitiria uma poupança de 30% da nossa factura energética, que foi em 2008 (DGEG) de 6.484.000.000 de euros, parte substancial da qual poderia ser aplicada no RBU. E assim por diante. Será sempre um exercício orçamental, e sobretudo político, complexo, mas não impossível. Como propõe Lester R. Brown, o ponto de partida é aplicar à actual emergência económica. financeira e social, regras semelhantes às de uma economia de guerra.
Cultura e Terceiro Sector nas sociedades pós-contemporâneas
Sobre o muito badalado arrependimento cultural de José Sócrates, confessado pelo próprio no âmbito da humilde vestimenta que decidiu envergar após a recente e humilhante derrota eleitoral, republico o artigo que enviei à revista L+Arte de maio último. Sublinho entretanto que uma autocrítica sem consequências práticas não passa de um exercício de fingimento. Que eu saiba, o senhor Alexandre Melo, além de assessor cultural do PM foi um dos compradores exuberantes de João Rendeiro e da sua Ellipse Foundation, aliás tal como o ainda director do Museu do Chiado, Pedro Lapa. Dois casos flagrantes de incompatibilidades funcionais, conflito de interesses e comprovada incompetência. Um eclipse de ideias, de estilos e de carácter a que urge pôr termo.
Cultura e Terceiro Sector nas sociedades pós-contemporâneas [Texto enviado à revista L+Arte em 17-05-2009 e actualizado em 30-05-2009]
Li recentemente uma notícia sobre a vontade do antigo ministro da cultura, Manuel Maria Carrilho (MMC), de voltar às lides. O ar de Paris fez-lhe bem! Ao contrário dos detractores da sua passagem pela política, eu alinho com muitos funcionários públicos modestos que por esse país fora o saúdam como o único responsável governamental que em muitas décadas assumiu sem receio a vontade de envolver o Estado na protecção e estímulo da actividade cultural. Ao que parece está com vontade de regressar, começando desde já por erguer de novo a bandeira do 1% do orçamento de Estado para o sector cultural. Seja bem-vindo. Mas eu vou mais longe: são precisos 3%!
Para este ano, o ministério da cultura contempla uma despesa de 212,6 milhões de euros (M€), para uma despesa global da administração central de 54.381,6 M€ — ou seja, menos de metade dos famigerados 1% recomendados por MMC (0,39%). Pois bem, eu proponho que sejam retirados ao conjunto dos demais ministérios, de forma proporcional, os 1.418,848 M€ que faltariam para o orçamento do ministério da cultura atingir em 2009 os 3% do orçamento da administração central que proponho para as artes em geral.
Porquê e para quê, perguntar-se-à. Respondo assim: para colocar a cultura onde ela terá que passar a estar nas sociedades pós-contemporâneas, fazendo o que nenhuma outra instância governamental está vocacionada e muito menos preparada para fazer, ou seja, responder de forma criativa às sociedades tecnológicas em formação, nas quais o "fim do trabalho" (Jeremy Rifkin) e a emergência do chamado "terceiro sector" são evidências, que a não serem convenientemente tratadas provocarão uma sucessão de colapsos sociais precedidos por crises financeiras e económicas de dimensões idênticas ou ainda mais dramáticas e prolongadas do que a que desde Fevereiro de 2007 começou por afligir o sistema financeiro, a economia e a sociedade dos Estados Unidos, estendendo-se depois ao resto do planeta.
Os programas de "novas oportunidades" e suposta formação profissional não passam de medidas paliativas ilusórias que em nada modificarão a tendência para a destruição estrutural do emprego assalariado induzida pela lógica intrínseca da produção tecnologicamente assistida em todos os seus segmentos: desde a extracção das matérias primas, à respectiva transformação, distribuição, promoção e venda.
O mesmo sucede nas políticas de subsídio à crescente e irrecuperável massa de desempregados atirados para o desespero pelas tendências cada vez mais acentuadas para a automação e desmaterialização dos processos produtivos, de gestão e da própria interacção social.
Ao contrário do que muitos crêem, a deslocação do capital e do trabalho para os países emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China, etc.), em busca, num primeiro momento, da proximidade aos recursos naturais e aos baixos salários, tem um impacto meramente conjuntural na mudança dos termos de troca à escala global. Na China, a crise financeira e económica mundial irá provocar em 2009 o despedimento e migrações, no interior do seu vasto território, de mais de 20 milhões de pessoas (2). A ONU, por sua vez, prevê que o desemprego mundial possa chegar aos 230 milhões de pessoas em 2010!
Ora os governos continuam a responder a esta emergência como se a mesma fosse episódica e passageira, em vez de sistémica e porventura irreversível. Os instrumentos postos à disposição, por exemplo, do nosso ministério do trabalho e da solidariedade social, são completamente inadequados à natureza da crise em curso. Gerir pensões e tomar algumas medidas avulsas são caminhos para responder a problemas de uma época que já não existe.
A resposta à crise sistémica em curso terá forçosamente que ser uma resposta cultural. Quer dizer, uma resposta que convoque o melhor das energias criativas da comunidade para, em primeiro lugar, perceber a verdadeira causa das coisas, e depois, colocar em marcha uma verdadeira coligação de vontades, conhecimentos e energias criativas capaz de atalhar estruturalmente os múltiplos colapsos do sistema, avançando simultaneamente com modelos experimentais de interacção e cooperação social que possam ajudar a encontrar o paradigma social de que as sociedades cognitivas e tecnológicas em formação precisam para continuarem a permanecer humanas e civilizadas. Uma sociedade de velhos e alguns jovens estéreis guiada por "robots" e nano-tecnologias ao serviço de uma qualquer decrépita e corrupta aristocracia atulhada de dívidas — ainda que tais dívidas pareçam riqueza acumulada — não é o que todos queremos, certamente.
Embora os sistemas educativos sejam um desastre na esmagadora maioria dos países, e estejam aliás enredados numa cornucópia perversa de reformas cuja principal finalidade é reproduzir com os menores custos possíveis um descomunal exército de gente desempregada ou que jamais encontrará emprego estável, boa parte das mudanças que no futuro permitirão adaptar as sociedades humanas à radicalização da era tecnológica, muitíssimo mais distributiva do que a actual, passará por uma verdadeira revolução educativa. Só que esta revolução precisa de um campo experimental prévio, onde seja possível montar um acelerador de criatividade social. É aqui que eu vejo a nova importância das práticas culturais entendidas em sentido lato, i.e. abrangendo as ciências, as filosofias e as artes, naquilo que seria a re-fundação da veterana "techne". Ora, por incrível que pareça, são as vanguardas artísticas, da reflexão filosófica e da investigação científica quem melhor pode confluir para esta tempestade mental, de onde sairão, esperemos que a tempo, visões inovadoras e possíveis para esse mundo por vir a que chamo pós-contemporâneo.
Mas para que tudo isto ganhe momento seria da máxima importância fazer perceber aos políticos a necessidade de aceitarem reduzir o seu grau de omnipotência decisória, cujos resultados têm sido manifestamente medíocres. Pedimos-lhes um pouco de humildade neste transe difícil da civilização!
Que faria eu, enfim, aos 3% do orçamento da administração central atribuídos à Cultura numa próxima legislatura? Pois bem, faria isto: o primeiro 1% iria para a manutenção e divulgação do património cultural, abrangendo o longo período que vai desde os testemunhos originários da espécie humana até ao fim do século 20; o segundo 1% iria para a criação de um grande acelerador de partículas criativas multi-disciplinar, poli-nuclear, desburocratizado, autónomo e responsável, tendo por finalidade estudar e propor à sociedade modelos experimentais de convivência e simbiose criativa pós-laboral (considerando que o trabalho assalariado tenderá a desaparecer); e o terceiro 1%, finalmente, iria para o desenvolvimento de programas de responsabilidade social activa, orientados para o estabelecimento de parcerias entre os sectores público, privado e comunitário.
Por menos, não iremos lá.
NOTAS
"Terceiro setor é uma terminologia sociológica que dá significado a todas as iniciativas privadas de utilidade pública com origem na sociedade civil. A palavra é uma tradução de Third Sector, um vocábulo muito utilizado nos Estados Unidos para definir as diversas organizações sem vínculos diretos com o Primeiro setor (Público, o Estado) e o Segundo setor (Privado, o Mercado).
Apesar de várias definições encontradas sobre o Terceiro Setor, existe uma definição que é amplamente utilizada como referência, inclusive por organizações multilaterais e governos. Proposta em 1992, por Salamon & Anheier, trata-se de uma definição “estrutural/operacional”, composta por cinco atributos estruturais ou operacionais que distinguem as organizações do Terceiro Setor de outros tipos de instituições sociais. São eles:
— Formalmente constituídas: alguma forma de institucionalização, legal ou não, com um nível de formalização de regras e procedimentos, para assegurar a sua permanência por um período mínimo de tempo. — Estrutura básica não governamental são privadas, ou seja, não são ligadas institucionalmente a governos. — Gestão própria: realiza sua própria gestão, não sendo controladas externamente. — Sem fins lucrativos: a geração de lucros ou excedentes financeiros deve ser reinvestida integralmente na organização. Estas entidades não podem distribuir dividendos de lucros aos seus dirigentes. — Trabalho voluntário: possui algum grau de mão-de-obra voluntária, ou seja, não remunerada ou o uso voluntário de equipamentos, como a computação voluntária." — in Wikipedia/ Terceiro Sector.
20 Million Laid-off Migrant Workers May Send China's Unemployment Rate to 10%. February 06, 2009 — China Stakes.com.
“Até agora e até abrirmos o Art Center, apesar de a Colecção Ellipse já estar disponível no site da Fundação há muito tempo, não houve nenhum comentador que se tivesse dado ao cuidado de clicar na internet e ver a importância da Colecção”. — João Rendeiro (Ellipse Foundation/ Contemporary Art Collection)
Li a entrevista dada por João Rendeiro a Sandra Vieira Jürgens sobre aquilo que parece ter sido o óbvio fracasso do fundo de investimento em ‘arte contemporânea’ lançado sob os auspícios do Banco Privado Português e com o entusiasmo do seu presidente, João Rendeiro, e dos seus dois consultores especializados, Alexandre Melo e Pedro Lapa.
Pedro Lapa, por acaso, já era director do Museu do Chiado, quando a iniciativa de João Rendeiro teve lugar (em 2002), tendo ao mesmo tempo seleccionado para ambos os teatros de operações — o Museu do Chiado e o então fundo de investimento do Banco Privado (agora rebaptizado Fundação Ellipse, com sede em Amesterdão) — os seguintes artistas: Gillian Wearing, James Coleman, Jimmie Durham, João Onofre, Rosângela Rennó, William Kentridge. Donde que a sua tentativa de desvalorizar um óbvio caso de conflito de interesses e de abuso dos mecanismos de legitimação inerentes à actividade museológica desinteressada do Estado, não colhe. Quando falo desta situação a amigos estrangeiros olham-me com grande incredulidade como se estivesse a falar de um caso na Nigéria, no Chade ou na República Centro Africana.
As explicações dadas agora pelo financeiro parecem confusas. Afinal de que trata a sua colecção?
De um fundo de investimento privado com garantias dadas pelo seu banco, cujo fim último é especular com a compra e venda de obras de arte?
De uma colecção privada do Sr. João Rendeiro, do Banco Privado e de mais alguns amigos seus, que não aspira a outro fim que o deleite estético e a benemérita intenção de prestar um serviço à comunidade?
Ou de uma Fundação? E se for este o caso, com que fins? Apenas coleccionar? Ou também especular com investimentos em arte? O recente caso Afinsa pesa seguramente sobre este confuso projecto, inicialmente vendido em Portugal, em Espanha e no Brasil, como aposta certa para chegar a rentabilidades da ordem dos 12,4% ao ano, e agora reduzido a tímido sonho cultural.
Recomendo, pois, a leitura da entrevista dada pelo banqueiro a Sandra Vieira Jürgens no sítio da ARTECAPITAL, e depois, a comparação do respectivo conteúdo com duas outras leituras:
— a de uma notícia do sítio brasileiro ISTO É DINHEIRO, de 17/03/2004 sobre as intenções do Presidente do Banco Privado Português numa sua visita a São Paulo, de que cito esta passagem esclarecedora:
“O produto financeiro anunciado é semelhante a um fundo de investimento internacional. Os investidores serão cotistas da empresa Elipse Foundation. A entidade ficará responsável pela organização e promoção da nova coleção. A aplicação mínima é de US$ 300 mil. Será preciso ainda esquecer do dinheiro durante um período que pode variar entre sete e nove anos. ‘No longo prazo, os ganhos são atraentes’, diz Rendeiro. Entre 1986 e 2002, o Contemporary Art, índice do mercado internacional de arte contemporânea, rendeu, em média, 12,4% ao ano.
A Elipse Foundation terá um patrimônio total de US$ 25 milhões para garimpar obras com potencial de valorização pelo mundo afora. A meta posterior é vender a coleção para um museu. Não se assuste com o fantasma da falta de clientes que ronda esse mercado — o Banco Privado Português garante a compra das peças. Mas não assegura, contudo, o preço. Como em qualquer aplicação financeira, portanto, existe risco. O investimento tem o aval do próprio banqueiro, um bem-sucedido colecionador de arte. Para atrair a confiança dos clientes, Rendeiro promete: aplicará US$ 2,5 milhões do próprio bolso.”
“João Rendeiro revelou ainda que a Ellipse Foundation, uma fundação criada pelo BPP para investir em arte, já terminou a sua colocação de capital, junto de 40 investidores portugueses, espanhóis e brasileiros. O investimento total de 20 milhões de euros irá ser colocado ao longo de 4 anos.”
Sabemos agora que ‘a lógica inicial está ultrapassada’. E que ‘A fundação não reuniu, como se propôs, 40 investidores portugueses, espanhóis e brasileiros. Nem exige já a participação mínima de 250 mil euros’, como se pode ler na notícia dada pelo Diário de Notícias online de 22/05/2006.
O banqueiro queixa-se de que ninguém viu o sítio onde publicita a novel colecção, e que os jornalistas se perdem em assuntos de menor importância. Pois fique o banqueiro sabendo que me dei ao trabalho de visitar o dito sítio. Não me admira, depois de passar os olhos pelas aquisições, que os investidores não tenham chegado aos quarenta ambicionados, e que boa parte dos que entraram tenham entretanto saído. A colecção é, de facto, irrelevante e desactualizada, não obedecendo a nenhuma estratégia inteligente, nem no plano financeiro, nem no plano da avaliação crítica. Tratando-se de uma aposta na chamada ‘arte contemporânea’, i.e. num período pretérito e bem delimitado da arte do século 20, denota óbvia falta de recursos para se abalançar em objectivo tão ambicioso. Será que ninguém explicou ao banqueiro quanto custam hoje obras significativas de autores vivos como Gehrard Richter, Cy Twombly, Andrew Wieth, Charles Ray, Brice Marden, Jeff Koons, Sigmar Polke, Elsworth Kelly, Robert Rauschenberg, Damien Hirst, Jasper Johns, David Hockney, Agnes Martin, Bruce Nauman, Robert Ryman, Georg Baselitz, Frank Stella, Andreas Gursky, Jannis Kounellis, Julian Schnabel, Christopher Wool, Nan Goldin, David Salle, Mathew Barney, Thomas Ruff, Ross Bleckner, Vanessa Beecroft, Malcom Morley, Sol LeWitt ou Mariko Mori? Estou apenas a citar alguns dos 200 autores ‘contemporâneos’ com maiores volumes de negócios e com os quais, por sinal, se poderia de facto fazer um excelente investimento em ‘arte contemporânea’...
Se, ao invés, a intenção fora a de investir em futuros, i.e. se a estratégia adquirida pelo banqueiro pretendia antecipar os novos valores da arte do século 21, então o erro foi ainda mais desastroso. Não há na lista de autores/obras disponíveis no sítio da Ellipse Foundation, um único autor representativo da centena e meia de artistas pós-contemporâneos que agora mesmo poderia ditar para este postal electrónico. A arte do século 21 é antes de mais uma arte post-contemporânea. O seu processo generativo fundador começou no início da década de 90 do século passado e deve a sua originalidade a um processo de ruptura multi-dimensional com as práticas teoricamente esgotadas e corrompidas da ‘arte contemporânea’. Trata-se de uma arte nascida de linguagens inteiramente novas, essencialmente cognitivas antes de se tornarem intuitivas, expressivas e performativas. Para um pequeno coleccionador, como parece ser o caso de João Rendeiro, olhar para o complex media em que se move a arte mais sintomática do início deste século ainda poderá ajudar a salvar o seu mal encaminhado empreendimento.
Para provar que passei os olhos pela mal-formada colecção Ellipse, deixo à apreciação do leitor uma lista com todos os autores representados na dita colecção. Os números entre parêntesis curvos correspondem ao número de obras por autor. Os números entre parêntesis rectos, correspondem à minha avaliação pessoal das obras adquiridas numa escala de 1 a 10...
Aballí, Ignasi (6) [1]
Ackermann, Franz (1) [1]
Ahtila, Eija-Liisa (1) [5]
Arrechea, Alexandre (1) [3]
Atay, Fikret (1) [7]
Baldessari, John (1) [5]
Balka , Miroslaw (1) [5]
Balkenhol, Stephan (1) [5]
Barney, Matthew (1) [5]
Becher, Bernd and Hilla (1) [7]
Bickerton, Ashley (2) [6]
Bradley, Slater (3) [6]
Breuning, Olaf (15) [6]
Cabrita Reis, Pedro (2) [1]
Coleman, James (1) [7]
Cragg, Tony (1) [6]
Croft, José Pedro (1) [2]
Da Cunha, Alexandre (2) [3]
Dijkstra, Rineke (7) [2]
Dittborn, Eugenio (2) [4]
Dunham, Carroll (1) [5]
Durham, Jimmie (7) [7]
Einarsson, Gardar Eide (3) [4]
Eliasson, Olafur (2) [4]
Fulton, Hamish (1) [6]
Gober, Robert (2) [7]
Gonzales-Torres, Felix (1) [5]
Gordon, Douglas (1) [6]
Graham, Dan (4) [7]
Graham, Rodney (1) [6]
Hammons, David (1) [5]
Hatoum, Mona (1) [2]
Havekost, Eberhard (1) [1]
Herrera, Arturo (2) [1]
Hirschhorn, Thomas (2) [3]
Höfer, Candida (3) [4]
Huyghe, Pierre (2) [5]
Iglesias, Cristina (2) [3]
Michael Elmgreen & Ingar Dragset (2) [2]
Islam, Runa (1) [4]
Jamie, Cameron (3) [3]
Jankowski, Christian (1) [5]
Julien, Isaac (1) [5]
Kabacov, Ilya & Emilia [6]
Kelley, Mike (1) [6]
Kentridge, William (3) [6]
Klauke, Jurgen (1) [4]
Kuitca, Guillermo (1) [3]
Lawler, Louise (4) [5]
Lockhart, Sharon (1) [4]
Lucas, Sarah (1) [3]
Marepe (2) [1]
McBride, Rita (2) [1]
McCollum, Allan (1) [4]
McDermott & McGough (1) [1]
McQueen, Steve (1) [2]
Meireles, Cildo (1) [3]
Mir, Alexandra (4) [1]
Moffatt, Tracey (1) [?]
MP & MP Rosado (4) [1]
Neshat, Shirin (1) [3]
Neto, Ernesto (1) [3]
Neuenschwander & Guimarães, Rivane & Cao (1) [?]
Onofre, João (1) [2]
Opie, Catherine (3) [?]
Orozco, Gabriel (2) [5]
Ortega, Dámian (1) [1]
Oursler, Tony (1) [6]
Pardo, Jorge (2) [1]
Pettibon, Raymond (18) [5]
Pfeiffer, Paul (1) [2]
Pierson, Jack (2) [1]
Prince, Richard (4) [5]
Puch, Gonzalo (2] [1]
Rennó, Rosângela (4) [1]
Rosefeldt, Julien (2) [2]
Rosenblum, Adi + Muntean, Markus (3) [2]
Sachs, Tom (1) [1]
Sala, Anri (1) [1]
Sarmento, Julião (1) [1]
Scheibitz, Thomas (1) [1]
Schorr, Collier (4) [5]
Schütte, Thomas (2) [5]
Sekula, Allan (2) [4]
Shearer, Steven (2) [1]
Sherman, Cindy (6) [7]
Simmons, Laurie (3) [3]
Simpson, Lorna (2) [3]
Slominski, Andreas (1) [1]
Solakov, Nedko (1) [1]
Starkey, Hannah (1) [1]
Struth, Thomas (1) [3]
Tillmans, Wolfgang (1) [1]
Tiravanija, Rirkrit (1) [1]
Trockel, Rosemarie (1) [?]
Uslé, Juan (1) [1]
Vale, João Pedro (1) [1]
Varejão, Adriana (1) [4]
Walker, Kara (1) [4]
Wall, Jeff (1) [5]
Wearing, Gillian (4) [6]
Weiner, Lawrence (3) [3]
Fischli & Weiss (2) [3]
Williams, Sue (3) [5]
Wilson, Robert (1) [5]