sábado, outubro 14, 2006

Aeroportos 8


Easy Jet, exemplo de uma revolução inesperada...

Da tríade da Ota à nova Portela e ao NAL 21a


De acordo com o Instituto de Estudos Turísticos, as companhias de baixo custo levaram à Espanha 1,85 milhão de turistas nos primeiros meses do ano, ou 11,5% a mais do que no mesmo período em 2005. Trata-se de um avanço muito superior ao registrado pelas companhias tradicionais, cujo percentual de aumento foi de 1,4%.
(...)
As companhias de baixo custo conseguiram, em poucos anos, abocanhar uma fatia importante do mercado de vôos entre a Espanha e outros países da Europa. A EasyJet e a Ryanair responderam, no ano passado, por 23% dos passageiros, ante 6,6% em 2000.
in Universia Knowledge Wharton

Assisti no passada noite 12 de Outubro, em Alenquer, vila a 6 Km da Ota, onde o actual governo pretende construir o chamado Novo Aeroporto de Lisboa (NAL), a um debate instrutivo sobre o que poderá vir a ser a principal causa da ruína política do PS por muitos anos e um gravíssimo golpe nas finanças e no prestígio de um país pobre mas honrado chamado Portugal.

Aquilo que devo explicar aos cidadãos deste país é que a decisão subscrita por José Sócrates não tem absolutamente nenhum fundamento técnico, nem por outro lado, qualquer justificação económica articulada e séria. Podemos imaginar a pressa mesquinha dos construtores civis, a toleima dos municípios locais, as manobras sibilinas da Maçonaria (e não sei se também dos famosos socialistas do Grupo de Macau), ou a larga influência do Sr. Stanley Ho e do seu projecto para a chamada Alta de Lisboa nas manobras em curso. O que não podemos aceitar é a obscuridade deste processo.

Tudo não passa, do ponto de vista da decisão de José Sócrates, de um equívoco derivado de um relatório preliminar declaradamente inconclusivo sobre impactes ambientais, sucessivamente assinado por Elisa Ferreira e João Cravinho, em razão, creio eu, de convicções estratégicas que já deduzia, mas percebi agora claramente, depois de escutar as explicações do conhecido empresário socialista Henrique Neto sobre a putativa ameaça castelhana à nossa mais querida e fundacional reserva estratégica: a costa e o oceano atlânticos.

Não vou entrar nesta questão já abordada noutro artigo neste mesmo blog, mas uma coisa é certa: a embrulhada da Ota só poderá ser esclarecida desmontando simultaneamente os argumentos do lóbi galeguista e a falta de estudos efectivos que fundamentem a putativa decisão governamental.

O Sr. Xosé Manuel Beiras, chefe do Bloco Nacionalista Galego, pelos vistos tem grande influência no nosso país! Como se a fronteira luso-espanhola não passasse também por Salamanca, Badajoz e Vila Real de Santo António. Como se a União Europeia fosse uma quimera passageira. Como se dificultando e atrasando o acesso de Madrid aos estuários do Tejo e de Setúbal servisse para algo mais do que prolongar a indigência política e empresarial dominantes e ganhar algum “tempo histórico”... até que um dia, finalmente fora da União Europeia, pelo nosso próprio pé, ou expulsos, voltassemos à condição de súbditos envergonhados do verdadeiro poder atlântico de turno. Como se, mantendo a rede ferroviária portuguesa em bitola ibérica, quando a Espanha decidiu mudar toda a sua rede para bitola europeia, ficassemos mais perto dos principais destinos das nossas exportações e dos principais mercados de onde importamos bens e serviços. Como se o atrofiamento inevitável do país, caso um novo isolacionismo pós-salazarista se viesse a sobrepor à razão e vontade natural dos portugueses, fosse defensável, e não fosse tão só a reincidência pura e simples da velhíssima ilusão galega que Afonso de Henriques teve que combater para fundar Portugal: a ilusão de que o então novíssimo poder atlântico poderia manter-se em Salamanca, Lugo, Braga, Santiago ou Porto, e não baixar, como baixou, até Lisboa. Será mesmo este cenário pueril com que sonham algumas das nossas mentes mais brilhantes? A opção absurda de construir o novo aeroporto internacional de Lisboa na Ota (quando serão as low costs e os novos foguetes ferroviários que ligarão, de meia em meia hora, o Norte e o Sul da costa atlântica ibérica) tem, para mim, o seu fraco mas primacial fundamento nesta estratégia suicida. É no rasto da sua implantação que os interesses imediatistas dos empreiteiros, dos autarcas ignorantes e dos especuladores financeiros se juntam formando uma procissão de oportunistas devotos. Se tudo correr mal, pensam, o governo que aumente os impostos para pagar as dívidas e os seus futuros créditos!

Se a questão política precisa de ser urgentemente dirimida no terreno que é o seu, quer dizer, o dos interesses geo-estratégicos de Portugal, não menos importante será promover uma verdadeira discussão sobre as questões económicas, sociais e técnicas associadas à necessidade, ou não, de construir um novo aeroporto na região de Lisboa.

Como outros têm sugerido, seria bom publicar um verdadeiro livro negro, branco ou verde, sobre o futuro dos aeroportos da região de Lisboa, no quadro de uma visão lúcida e actualizada das estratégias de transportes mais adequadas ao século XXI. A crise energética, a crise climática, as novas opções europeias e espanholas em matéria de sistemas de transportes, a emergência das companhias de "low cost", o dinamismo dos chamados "corporate jets", a concentração previsível dos transportes aéreos de bandeira e o simples facto de a população portuguesa, actualmente de 10 milhões e 495 mil habitantes, não dever esperar um acréscimo superior a 228 mil habitantes até 2050 [1], são factos novos que não fizeram parte das preocupações de quem redigiu os documentos superficiais que serviram as irreflectidas decisões governamentais. Neste caso, antes de pensarmos nas vontades corrompidas, seria bom começarmos por falar de estratégia.

Os técnicos e especialistas devem assumir as suas responsabilidades e contribuir com o seu conhecimento para este debate. O mais importante, como sempre, é a formulação de perguntas pertinentes. Eis algumas delas:

I. Faz sentido, em geral, programar novos aeroportos de raíz em Portugal?

— dados a ter em conta:

1. A evolução previsível do sector espanhol, europeu e mundial dos transportes face ao pico petrolífero (oil peak), que ou já chegou ou, na melhor das hipóteses — segundo a Halliburton — chegará em 2020...;
2. A nova prioridade espanhola, já assumida, de privilegiar o binómio ferrovia-transportes marítimos em detrimento do binómio rodovia-transportes aéreos;
3. a grave crise estrutural de Portugal: endividamento excessivo do Estado, das empresas e das famílias, peso descontrolado da máquina administrativa do Estado, escassa produção e falta de produtividade;
4. As previsões demográficas realizadas em 2005 pela ONU prevêem um acréscimo populacional de apenas 228 mil hab em 2050 (menos do que a população que se transferiu de Lisboa para os subúrbios da AML nos últimos 20 anos!);
5. O quadro económico recessivo na Europa e no resto do mundo;
6. A instabilidade geo-estratégica e militar mundial;
7. Os efeitos dramáticos das alterações climáticas em toda a Península Ibérica, conhecidos e em fase de incorporação no pensamento operacional do actual governo.

II. Os actuais aeroportos continentais não chegam?

1. Na grande Área Metropolitana de Lisboa: Portela+Figo Maduro (companhias de bandeira e low cost) e Tires (corporate-jets);
2. No Grande Porto: Francisco Sá Carneiro remodelado (voos de bandeira, low-cost e corporate-jets)
3. No Algarve: Faro (bandeira e low cost e corporate jets)

Quantificar a perda de mercado na quota de voos domésticos e europeus nos aeroportos de Lisboa (Portela e Tires) por efeito da transferência de passageiros para as linhas ferroviárias de velocidade elevada Lisboa-Madrid-resto de Espanha, Porto-Aveiro-Salamanca-resto de Espanha e Lisboa-Porto-Vigo.
Quantificar a perda de mercado na quota de voos europeus nos aeroportos de Lisboa (Portela e Tires) por efeito do crescimento dos operadores de low cost no Porto e Faro.
Quantificar a perda de mercado na quota dos voos intercontinentais no aeroporto de Lisboa por efeito do novo hub aeroportuário de Madrid.

III. E se fosse preciso um Novo Aeroporto de Lisboa, a Ota seria uma boa escolha?

1. Já em 1999 a Comissão de Avaliação do Estudo de Impacte Ambiental (CA IA) chumbou por falta de fundamentação técnica o Estudo Preliminar de Impacte Ambiental (EPIA) realizado sobre a Ota e em Rio Frio pela empresa pública NAER, Novo Aeroporto SA. No entanto, Elisa Ferreia e João Cravinho forçaram a opção Ota. Porquê?
2. Em 2000 Jorge Coelho e Pina Moura despacharam conjuntamente mais estudos sobre a Ota com base na suposta necessidade de fechar a Portela, por razões de poluição e ruído (!) — como se não houvesse mais ruído e poluição na 2ª circular; ou como se os ouvidos e os pulmões das gentes que vivem à volta da Ota fossem mais resistentes que os dos alfacinhas. Porque seria?
3. Os estudos até agora realizados consideram que nas imediações da Ota vive uma população de 3000 pessoas. Acontece que são 30 mil! Se o novo aeroporto da Ota fosse ali construído, a actual população duplicaria mesmo antes de ser inaugurado. Os argumentos sobre ruído, poluição e catástrofes aéreas caiem assim pela base...;
4. Construir uma grande plataforma aeroportuária em cima de dois rios e três ribeiras confluindo para o Tejo e formando um leito de cheia potencialmente incontrolável, sobretudo tendo em conta o consenso actual em volta dos previsíveis impactos das alterações climáticas sobre a subida do nível dos mares e os aumentos pontuais súbitos e imprevisíveis da pluviosidade, não será pura e simplesmente uma loucura de milionários? Alguma vez Bruxelas viabilizará tamanha estupidez, se for convenientemente instruída?
5. A zona prevista para o novo aeroporto sobrepõe-se, nas suas instalações e corredores aéreos, à Rede Ecológica Metropolitana do PROT-AML;
6. As remoções de terras necessárias para viabilizar qualquer projecto aeroportuário com as características pretendidas na Ota, tornarão este investimento muitíssimo mais caro que qualquer outra alternativa, por exemplo, a Sul do Tejo. Especialistas estimam mesmo um acréscimo de custos na ordem dos mil milhões de euros (200 milhões de contos!)
7. O novo aeroporto projectado não tem nenhuma possibilidade de expansão futura; e além disso, das duas pistas projectadas e possíveis, apenas uma delas servirá para descolagens e aterragens. Ou seja, o potencial de navegação aérea encontra-se à partida limitado em 25%!
8. Quando o governo fala no investimento privado na Ota não contabiliza os custos das acessibilidades, os quais poderão andar na ordem dos 500 milhões de euros (100 milhões de contos) e serão suportados pela inevitável subida dos custo de utilização da nova infra-estrutura e por mais impostos para a generalidade dos portugueses;
9. Se o aeroporto da Portela (ampliado e remodelado) continuar, por decisão dos lisboetas e manifesta viabilidade económica, quem quererá ir para a Ota?
10. As companhias de low cost estão para o transporte aéreo como os porta-contentores estão para o tráfego marítimo, i.e. chegaram à Europa em 1995, viram e venceram! O panorama do transporte aéreo local (veja-se o impacto este ano no aeroporto Sá Carneiro) e internacional vai mudar radicalmente nos próximos anos e é muito provável que a TAP desapareça ou seja pura e simplesmente aborvida pela aliança de que já faz parte...
11. E se aviões mais leves, maiores e movidos a hidrogéneo, permitirem a viabilidade do transporte aéreo de massas, sobretudo intercontinental, para lá do pico petrolífero? Neste caso, não seria prudente, como aconselham especialistas atentos, reservar, em todo o caso, uma generosa aérea a sul do Tejo para uma futura plataforma intermodal de transportes (aéreos, ferroviários, fluviais e rodoviários)? Não o fazendo, a suburbanização descontrolada e em mancha de óleo a que temos vindo a assistir nos últimos 20 anos poderá obstruir qualquer hipótese de construção de futuras infra-estruturas de transporte que permitam a Lisboa contiuar a ser uma das cidades estratégicas da Europa.

IV. Alternativas de mobilidade ao panorama caótico actual

— ferrovia, transporte marítimo, ciclovia e mobilidade pedestre
— marcha atrás imediata no plano rodoviário nacional
— reconcentração das cidades de Lisboa e Porto
— programas de sustentabilidade local dirigidos a todos os aglomerados populacionais com populações acima dos 10 mil habitantes



Notas
1 — As previsões demográficas da ONU para Portugal dizem-nos que teremos um crescimento insignificante até 2050, ano que em que a população residente no nosso país andará pelos 10 milhões 495 mil pessoas. O acréscimo populacional será assim inferior ao número de residentes que abandonaram a cidade de Lisboa, nomeadamente para as desqualificadas periferias suburbanas, entre 1981 e 2004 — nada mais nada menos do que 278.452 pessoas! Por outro lado, a Grande Lisboa tem neste momento um parque de habitações por vender na ordem das 112 mil unidades! Para quem precisa o Senhor Stanley Ho da Alta de Lisboa?! E a miragem da Ota é para quem? Parece que anda tudo doido!
Referências
Maquinistas, Transportes em debate, Rui Rodrigues — um excelente repositório de documentos sobre a problemática dos transportes em Portugal.
Alambi

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OAM #146 14 OUT 2006

Clima no Parlamento


Sistema Europeu de Informação s/ Fogos Florestais. Dia: 2006-10-14 (previsão p/ 3 dias)

Assembleia da República convida a sociedade civil a debater alterações climáticas e estratégias de mitigação


Passei a manhã e parte da tarde de 10 de Outubro de 2006 enfiado no novo auditório do parlamento português. As leis que ali se discutem são cada vez mais subsidiárias da produção seminal do Parlamento Europeu. Da transposição "in extremis" para o nosso edifício legislativo das leis de Estrasburgo tem dependido a melhoria de um país indisciplinado, onde o maior obstáculo à contemporaneidade continua a ser o elevado grau de analfabetismo funcional (fraca escolaridade básica e secundária), o péssimo hábito de depender de miraculosas mesadas externas (coisa que vem pelo menos desde o século XV e ainda não terminou...) e a persistência de um sistema de poder endogâmico irresponsável, muito dado às mordomias e à falta de ética. A ausência generalizada de civismo e o flagelo burocrático são alguns dos corolários inevitáveis destes males. Já não escarramos tanto na via pública como dantes, mas continuamos a estacionar em cima dos passeios, a obstruir as garagens e a estacionar alegremente em todas as esquinas que nos aparecem pela frente.

A promoção de uma discussão pública sobre as alterações climáticas no auditório da Assembleia da República é pois uma boa notícia. Fará parte da nova estratégia de transparência e abertura dos órgãos do poder à sociedade? Se sim, não poderei deixar de saudá-la. O tema inagural ? que fazer perante as alterações climáticas em curso? ? não poderia ser mais oportuno. O auditório encheu...

Das seis intervenções da manhã, destacaria apenas duas, pela sua concisão e relevância: a de Arturo Gonzalo Aizpiri, Secretário-Geral para a Prevenção da Contaminação e das Alterações Climáticas do ministério espanhol do ambiente, e a de Isabel Guerra, auditora de ambiente do Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.

O primeiro fez uma exposição muito clara sobre a estratégia espanhola para o ambiente. Retive duas ideias: que não comprometerão as suas metas económicas essenciais aos limites de emissões de CO2 decorrentes do Protoclo de Quioto (tendo já constituído uma reserva financeira para aquisição de direitos de emissão a países terceiros), mas que nem por isso deixarão de diminuir rápida e drasticamente a sua extrema dependência energética dos combustíveis fósseis importados (85%). Para tal, a Espanha levará a cabo uma profunda revolução no sistema de transportes, tendo em vista diminuir a importância dos transportes rodoviários e aéreos relativamente à ferrovia e aos transportes marítimos, promovendo, por outro lado, um conjunto de medidas destinadas a mitigar decididamente a dependência do consumo energético de origem carbónica por parte dos chamados "sectores difusos" (transportes, edifícios e sector terciário). Paineis solares térmicos e fotovoltaicos serão generalizados de forma apoiada, mas imperativa, ao longo desta e da próxima década em todas as cidades espanholas.

Maria Isabel Guerra deu conta do Programa Nacional para as Alterações Climáticas (PNAC, 2006), destacando não apenas alguns aspectos essenciais do diagnóstico e das medidas a implementar, mas ainda, o que não deixa de ser particularmente relevante, a sua característica inter-ministerial e ainda o facto de ter sido implementada uma metodologia de controlo e verificação de resultados.

Finalmente no plano das visões mais acutilantes, críticas e propositivas deste encontro destacaria a notabilíssima intervenção do Prof. Eduardo Oliveira Fernandes (Responsável da Unidade de Estudos Avançados de Energia no Ambiente Construído, da Universidade do Porto), e a militância quase colérica de Carlos Pimenta. O primeiro, não apenas mostrou até que ponto a nossa extrema dependência energética do exterior e das energias de origem fóssil é um factor de grande insegurança nacional, como sublinhou ainda o muito que há fazer no campo da eficiência energética (os chamados negawatts), antes de nos deixarmos levar pelo canto das sereias nucleares e das OPAs. 60% da energia transportada perde-se no labirinto da ineficiência energética, da falta de visão económica e da incompetência política (as palavras são minhas)... O segundo, foi sobretudo corajoso na defesa da necessidade de construir a barragem do Sabor como medida de precaução extrema absolutamente defensável na perspectiva da defesa estratégica da bacia do Douro (objectivamente ameaçada pelas medidas de salvaguarda hidrológica implementadas e em fase de implementação pelos espanhóis na parte que lhes pertence do rio comum).

Não ouvi as primeiras intervenções da tarde. Mas ouvi as que encerraram o encontro. Nota triste: a lenga-lenga dos deputados que ali aterraram para exibirem os respectivos leques partidários, sem que nada de substancial saísse daquelas mentes de eleição (talvez na próxima vez tragam a lição estudada e nos dêem a conhecer quais são efectivamente as posições dos partidos sobre questões tão importantes como as que neste primeiro encontro foram discutidas). Nota feliz: não esperava de Jaime Gama, o presidente da Assembleia da República, uma intervenção tão lúcida sobre o mérito da conferência, e em particular a sua plena consciência dos efeitos devastadores que as alterações climáticas, se não forem mitigadas, poderão ter sobre a nossa própria sobrevivência como país, nação e estado. Subestimei-o.

Resumindo: há uma boa percepção técnica dos problemas; sabe-se que os interesses cegos, egoístas e irresponsáveis do sector estão em pleno movimento browniano, mas desconhece-se se há pensamento económico sobre o assunto; ou se os políticos (nomeadamente este governo) terão a coragem de agir atempadamente e defendendo em primeiro lugar o interesse nacional. O sucesso da União Europeia depende e muito de três tipos de dialécticas: a que vai de cima para baixo (do geral para o particular); a que vai de baixo para cima (do particular, i.e. do estado-nação, da cidade, da freguesia, para o geral) e a que se desenvolve segundo a topologia das redes rizomáticas. Muito em breve a lógica "top down" actualmente hegemónica (e estúpida) do sector energético dará lugar a uma rebelião sem precedentes das novas matrizes de produção e partilha energética à semelhança do que ocorreu na tecnosfera da redes informáticas. Em 1994 tentei avisar um dos patrões lusitanos da comunicação social sobre o tremendo abalo que a sua indústria iria sofrer. Disse-lhe que a webcast iria comer literalmente o broadcast. Ele não me ligou nenhuma. Os resultados estão à vista e ainda vão piorar, para ele, claro! Basta meditar nos 1300 milhões de euros desembolsados anteontem pela Google para adquirir a You Tube , uma empresa web criada em 2005 para partilhar vídeos à escala global. Pois bem, o aviso aos distraídos do sector energético é este: esqueçam a ideia de controlo e comecem rapidamente a pensar em rizomas energéticos livres e cooperantes. Se não o fizerem, acreditem, serão comidos, literalmente, pelos rizomas mini, micro e nanotecnológicos em gestação... em menos de década e meia!

OAM #145 11 OUT 2006 [originalmelmente publicado no blog de O Grande Estuário

sexta-feira, outubro 06, 2006

Plano B

img from Al Gore's Unconvenient Truth

Verdades inconvenientes. Posturas de avestruz


Quando ouvimos as notícias sobre a performance económica europeia de 2006 (a melhor dos últimos cinco anos) e as imparáveis subidas na bolsa espanhola, ou sobre o frenezim especulativo em torno das OPAs lusitanas que anima a maioria dos canais televisivos, ficamos na dúvida se há ou não uma crise económica de magnitude global a caminho, se as alterações climáticas ameaçam de facto boa parte das regiões do planeta, e se, por conseguinte, o que nos espera, num intervalo de expectativa que não irá além de uma década ou duas, é mesmo uma tragédia de proporções bíblicas, ou outra coisa qualquer, com a qual talvez não valha a pena preocuparmo-nos...

Se tudo vai bem no reino da Dinamarca, isso significa que estamos a passar um atestado de incompetência a centenas ou mesmo milhares de cientistas que nos dizem o contrário. Se o que aí vem é, afinal, mais crescimento ilimitado, mais empolamento especulativo dos mercados financeiros, mais corrupção, cada vez menos redistribuição de riqueza, mais desemprego mundial, a impossibilidade de produzir e criar fora dos campos da concentração capitalista global, mais e mais precoce depressão juvenil, mais fluxos migratórios desesperados, milhões de velhos entregues à solidão e à demência, mais terrorismo e mais terrorismo de estado, maiores paranóias securitárias, e o crescimento subreptício mas imparável do sedutor fascismo mediático, então sim, de nada valeu a racionalidade dos avisos, porque deixámos a inércia atarantada do nosso comportamento colectivo sobrepor-se ao instinto de sobrevivência da espécie.

Fui recentemente ver Uma Verdade Inconveniente, de Al Gore e Davis Guggenheim. Sobre quem não está familiarizado com estes temas, provocará certamente um impacto muito forte. O que ali se evidencia não é nenhuma ficção científica de fim-de-semana! Em breve sairá a tradução portuguesa do livro com o mesmo título, no qual se plasma uma série de conclusões muito sérias sobre o que nos poderá acontecer a todos, ou à geração dos nossos filhos, se nada fizermos nos próximos dez anos. Dez anos?! Será que ainda iremos a tempo? Não sei. Mas sei que quem não estiver bêbado, nem for uma couve, deve ir ver este filme quanto antes, e já agora ler o Plano B de Lester R. Brown (2006), que acaba de ser traduzido para o nosso idioma e será publicamente apresentado em Trancoso no dia 27 de Outubro, no decurso do Encontro Internacional do Tribunal Europeu do Ambiente 2006, subordinado ao tema As Origens do Futuro. Uma comunicação via Skype trará Lester R. Brown até Trancoso.

Se algo me animou no filme de Al Gore foi ter visto ali definido um novo perfil de político. Ao invés de um ventríloco atrelado às sondagens, de um pagador de promessas e dívidas eleitorais, de um mentiroso compulsivo, de um amoral profissional, em suma de um soldado da vã glória de mandar, propenso à corrupção, deparamo-nos com um lutador incessante: mais de mil comícios pelo país e no mundo explicando os problemas sérios que temos pela frente a uma escala até há pouco inimaginável. Uma razão clara para o combate político, uma alternativa credível no seu próprio partido (o Partido Democrata), uma resposta sublime à imundície e ao descalabro da seita dos Bush, uma voz necessária num mundo à beira do precipício ecológico e nuclear.

No prefácio que escrevi para edição portuguesa de Plan B 2.0, a qual terá em breve uma versão electrónica disponível na Net, fiz alguns alertas que aqui antecipo à laia de convite à leitura integral deste livro absolutamente obrigatório.

Futuro anterior

Foi depois de ler, em 2002, "Beyond the Limits" (1992), de Donella H. Meadows, Dennis L. Meadows e Jørgen Randers, os mesmos que em 1972 publicaram "Limits to Growth" sob o patrocínio do Clube de Roma, cuja edição actualizada viria a ler em 2004, que o meu espírito entrou em alerta laranja relativamente aos horizontes do nosso futuro colectivo. As leituras sobre este tema sucederam-se e não pararam mais: o célebre e premonitório relatório de M. King Hubbert — "Nuclear Energy and Fossil Fuels" (1956), "The Long Emergency", de James Howard Kunstler (2005), "Peaking of World Oil Production: Impacts, Mitigation and Risk Management", de Robert L. Hirsch (2005), "Collapse", de Jared Diamond (2005) e "Plan B 2.0", de Lester R. Brown (2006)...

Calcula-se que a população mundial crescerá em 200 anos (1850-2050), período que corresponde grosso modo à duração da era industrial, de 1,26 para cerca de 9,1 mil milhões de habitantes. Esta explosão demográfica, que acabará inevitavelmente por regredir, entrou a partir da década de 70 do século 20 num quadro ecológico ameaçado pela escassez de vários factores essenciais à sua própria curva de crescimento: água potável, água para regar os cultivos destinados à alimentação (mas também à produção de bio-combustíveis!), terra arável, combustíveis fósseis baratos (carvão, petróleo, gás natural) e boa parte dos metais que alimentaram até hoje o nosso hiper-desenvolvimento: ferro, cobre, alumínio, níquel, estanho, zinco, prata, platina e ouro. Por outro lado, o crescimento actual gera uma poluição letal, sobretudo nos países emergentes e em vias de desenvolvimento, de que a tonelagem de resíduos tóxicos dificilmente recicláveis e as emissões de carbono para a atmosfera são dois alarmantes indicadores. Do ponto de vista do paradigma actual do desenvolvimento (crescimento contínuo do PIB, concentração financeira e globalização), estamos mergulhados numa crise energética e num dilema sem precedentes.

As energias renováveis de que se tem falado muito ultimamente (eólica e solar) são caras, tendo um EROEI ("Energy Return On Energy Invested") relativamente baixo, ou mesmo negativo, razão pela qual têm dependido de subsídios estatais em todo o mundo. O mais provável é que estes custos venham a ser suportados pelo consumidor através de adicionais às facturas que lhe são apresentadas. Por outro lado, o aumento da procura e a diminuição/encarecimento das reservas de combustíveis fósseis (sobretudo líquidos), não só elevará os respectivos custos, como continuará a repercutir este encarecimento nos custos de produção das próprias energias e combustíveis alternativos, deitando por terra a possibilidade de encontrarmos uma alternativa efectiva (em termos de quantidade, qualidade, potencial, versatilidade e preço) ao uso do petróleo, do gás natural e das centrais hídricas e nucleares na produção de energia. Não nos esqueçamos que 50-60% do petróleo consumido no mundo vai direitinho para o sector dos transportes. Seja como for, pela via da expansão das energias renováveis, complementando, mas nunca substituindo, pelo menos para já, as não-renováveis, assistiremos a um aumento acentuado e contínuo do preço dos combustíveis, sejam eles quais forem. A consequência deste aumento progressivo do preço da energia será a inflação e o aumento das taxas de juro em todo o mundo. A que se seguirá inevitavelmente a destruição de muitas economias nacionais e privadas, decréscimos dramáticos do consumo e do emprego e, finalmente, uma diminuição acentuada da procura de energia. Só não sabemos quanto é que tudo isto vai custar em vidas humanas.

No outro extremo do dilema temos a criação e desenvolvimento de novas modalidades de energia nuclear: reactores de quarta geração (Gen IV), cujas primeiras versões comerciais poderão funcionar a partir de 2030, e centrais de fusão nuclear, cujo primeiro reactor experimental deverá prestar provas em 2016. Tudo somado, pode dizer-se que uma nova alternativa nuclear, mais segura e de altíssimo rendimento, poderia começar a substituir as actuais centrais nucleares a partir de 2050, perfilando-se assim esta forma de energia hiper-tecnológica como o elo de continuidade entre a civilização carbónica e a civilização nuclear. Sucede, porém, que esta alternativa, em vez de empurrar a humanidade para uma espécie de idade média tecnológica, corre o risco de acelerar ainda mais o processo de exaustão dos recursos disponíveis, a não ser que até lá consigamos resolver o problema demográfico (sobretudo em África e na Ásia), o problema da fome e o problema da poluição, revertendo de vez o paradigma económico actual. Por fim, no que à alternativa nuclear (GEN IV e de fusão) se refere, apenas produzirá electricidade, não resolvendo o problema da infinidade de produtos derivados do petróleo e do gás natural absolutamente essenciais ao actual estilo de vida dos países: combustíveis líquidos, plásticos, pesticidas e fertilizantes, tintas, vernizes, decapantes e remédios, entre outros.

Para além da emergência energética que acabamos de descrever sumariamente, num tom mais dramático que o de Plano B 2.0 (que é antes de mais um desafio à criatividade e uma aposta na sobrevivência da nossa civilização), as alterações climáticas que têm vindo a ser detectadas pela esmagadora maioria dos observadores científicos de todo o mundo ameaçam lançar a Terra num período de aquecimento global/arrefecimento local catastrófico. A possibilidade de um colapso da civilização, precedido de crises energéticas e alimentares agudas, de crises sociais gravíssimas, de crises militares brutais, de uma recessão económica mundial de longa duração, da queda em dominó dos sistemas financeiros e da paralisia de boa parte das cidades e redes urbanas existentes deixou de ser um cenário de ficção cinematográfica. Todos os ingredientes da tragédia estão já no terreno. Haverá um Plano B?

O livro de Lester R. Brown é uma excelente e urgente resposta a esta pergunta. Por isso recomendei a sua tradução para português ao Emanuel Dimas de Melo Pimenta, assim que aceitei colaborar com ele na organização do Tribunal Europeu do Ambiente, que terá lugar em Trancoso no mês de Outubro de 2006.



Download gratuito do livro PLANO B 2.0, de Lester Brown (em Português):
— no sítio web d'o Grande Estuário (PDF/ficheiro ZIP: 1,5Mb)
— secção de downloads do Portal de Trancoso, em www.portaldetrancoso.net

OAM #144 06 OUT 2006

domingo, setembro 17, 2006

Benedictum XVI

Bento XVI: Um aviso sério ao Cristianismo

A polémica dissertação do Papa Bento XVI, na universidade de Regensburg foi de algum modo sequestrada pelos clérigos muçulmanos radicais e pela imprensa mundial repetitiva. O mais provável é que a maioria dos comentadores mediáticos um pouco por toda a parte se dediquem a comentar aquilo que não leram. Para já, uma primeira reflexão sobre o discurso do Papa seguida da sua tradução para português que deixo aos meus leitores.

Eu, como a maioria dos portugueses com mais de 40 anos, tem o catolicismo nos genes. O meu actual monismo filosófico, um monismo fundamentalmente neutro ou bifocal, custou-me três anos de profunda crise teológica e prolongadas discussões fundadas na argumentação racional, iniciada no período que decorreu entre os meus 15 e os meus 17 anos. Os padres-professores e pelo menos uma professora de filosofia (espero que estejam vivos!) talvez ainda se recordem do desafio insistente, da intensidade e da pormenorização dos meus argumentos. Foi seguramente o mais importante momento formativo da minha vida. A minha mãe, que já só existe no coração de quem a amou, ainda alimentou ilusões de me ver um dia de batina. Teria sido seguramente um padre incendiário. Em vez do esquerdista impenitente em que me tornei.

Serve esta confissão para sugerir uma reflexão sobre os limites do nosso ocidental ateísmo, hedonista, consumista, ecologicamente inconsciente e culturalmente irresponsável. Até onde iremos no recalcamento do que não é susceptível de ser demonstrado, nem racionalmente dirimido? O discurso do cardeal Ratzinger, hoje chefe supremo da igreja católica, não é uma peça de oratória irreflectida, nem uma provocação. Pelo contrário, trata-se de um apelo racional e religioso desesperado ao diálogo entre os seres humanos, naquela que é uma das mais perigosas curvas da sua já longa existência. Hoje, mais ainda do que quando Bertrand Russel e Albert Einstein, em 1955, lançaram o seu manifesto sobre o perigo da extinção da humanidade tal como a conhecemos por efeito de uma guerra nuclear, estamos à beira de inimagináveis processos de destruição humana individual e massiva.

A principal causa desta emergência civilizacional é o esgotamento do actual modelo de crescimento económico globalizado, quer por nos aproximarmos rapidamente das curvas descendentes dos principais recursos energéticos e alimentares disponíveis, quer por efeitos de fenómenos naturais virtualmente incontroláveis -- de que as alterações climáticas em curso são o mais dramático exemplo. Para já, assistimos atónitos e sem capacidade de reacção consequente e produtiva à proliferação de conflitos locais, regionais e globais entre pessoas, famílias, estados, nações e modelos ideológicos, cujas motivações aparentes, embora se refugiem cada vez mais nas diferenças culturais e religiosas entre os povos, as suas raízes, todos sabemos, devem ser procuradas nas escandalosas injustiças sociais existentes, nas diferenças económicas abissais entre pessoas, países e regiões inteiras e sobretudo no colapso iminente de dezenas de sociedades em todo o mundo, com especial destaque para África, Ásia e América central e do sul.

É neste preciso ponto que a dissertação do Papa aparece como uma proposta de reflexão fundamental e plena de consequências. No essencial, a sua reflexão vem dizer que a superioridade cultural do Cristianismo sobre outras religiões, longamente discutida ao longo dos séculos, não decorre de uma especial protecção divina aos seguidores de Cristo, mas antes da feliz coincidência de os textos sagrados terem usado a língua grega para a sua disseminação. Quer dizer, um dos argumentos fundamentais desta dissertação, é, por assim dizer, a natureza lógica da fé cristã. O outro argumento, não menos importante, mas mais discutível, convida a razão que permite os admiráveis avanços técnicos e sociais da civilização ocidental moderna a reconhecer as suas próprias limitações e aporias como impulso vital para uma reconciliação intelectual com as indagações filosóficas e teológicas fundamentais.

O Papa diz claramente, e nisso dou-lhe inteira razão, que a fé não pode ser propagada na ponta de um X-acto. E di-lo, não tanto por causa dos argumentos morais, e da actual conjuntura mundial, mas sobretudo pela menoridade desta concepção da fé quando comparada com uma mundovisão religiosa estruturada na lógica, i.e. no verbo e na racionalidade. É assim por razões de eficácia que o Cristianismo não pode subsumir-se perante a avalanche exaltada e radical dos actuais revivalismos teológicos e religiosos (estamos sempre a falar dos islamitas, mas não nos devemos esquecer dos fundamentalistas judeus, nem dos end-timers evangélicos a que o iluminado Bush, ao que parece, se converteu). A sua fraqueza contemporânea é grande, em grande medida devido ao amplo laicismo iluminista que dele se apoderou, ou melhor dito, que se apoderou do pensamento das gentes, sobretudo as mais educadas, sobre cujos genes espirituais o Cristianismo, porém, impera de uma forma ou doutra.

Do ponto de vista político, esta intervenção crucial do Papa Bento XVI, vem colocar a Europa perante as suas responsabilidades históricas e de razão. Lançando ele uma ponte de diálogo a todas as demais religiões e sistemas ideológicos, não devemos subestimar a firmeza de ideias que subtendem toda a sua comunicação: A superioridade técnica, científica, económica e política do Ocidente tem o seu epicentro na velha Europa e é sobretudo uma superioridade nascida da conjunção histórica entre fé religiosa e razão. Uma responsabilidade, portanto, que não podemos subestimar.

O desafio de Bento XVI é global, mas tem nos europeus o seu principal destinatário.





Viagem Apostólica de sua Santidade Bento XVI a Munique, Altötting e Regensburg (Setembro 9-14, 2006)
Encontro com os representantes da ciência
Palestra do Santo Padre
Aula Magna da Universidade de Regensburg
Terça Feira, 12 de Setembro de 2006



A Fé, a Razão e a Universidade
Memórias e Reflexões


Eminências, Magnificências, Excelências,
Distintas Senhoras e Cavalheiros,

É para mim uma experiência comovente voltar a este púlpito universitário para dar mais uma palestra. Recordo-me dos anos quando, depois de uma agradável estadia no Freisinger Hochschule, comecei a leccionar na Universidade de Bona. Isto foi em 1959, nos tempos da velha universidade constituída por professores ordinários. As várias cadeiras não tinham nem assistentes nem secretários, mas em compensação havia muitos contactos com os estudantes e em particular entre os próprios professores. Encontrávamo-nos antes e depois das aulas nas salas de professores. Havia um intercâmbio vivo de ideias com historiadores, filósofos, filólogos e, naturalmente, entre as duas faculdades de teologia.

Uma vez por semestre havia o "dia da academia", onde os professores de todas as faculdades compareciam diante dos estudantes de toda a universidade, tornando possível uma genuína experiência de "universitas": Apesar da nossa especialização tornar por vezes difícil a comunicação, formávamos então um totalidade, capaz de trabalhar sobre qualquer assunto na base de uma única racionalidade, com as suas variantes, mas partilhando responsabilidades pelo bom uso da razão e fazendo destes eventos uma experiência viva.

A universidade tinha muito orgulho nas suas duas faculdades de teologia. Era claro que, inquirindo sobre a razoabilidade da fé, ambas tinham que levar a cabo um trabalho que era necessariamente parte do "todo" da "universitas scientiarum", mesmo que nem todos pudessem partilhar a fé que os teólogos procuram correlacionar com a razão como um todo. Este profundo sentido de coerência no interior do universo da razão não era perturbado, nem mesmo quando um dia se ficou a saber que um colega dissera haver algo de estranho na nossa universidade: Tinha duas faculdades dedicadas a algo que não existe: Deus. Que mesmo face a tão radical cepticismo não deixe de ser necessário e razoável colocar a questão de Deus através do uso da razão, e fazê-lo no contexto da tradição da fé cristã: Isto, no seio da universidade como um todo, era aceite sem contestação.

Lembrei-me de tudo isto recentemente, quando li a edição do professor Theodore Khoury (Muenster) de parte do diálogo levado a cabo -- talvez em 1391 nas tendas de inverno de Ankara -- entre o erudito bizantino e imperador Manuel II Paleologus e um letrado persa sobre o tema da Cristandade, o Islão, e as verdades de ambos.

Foi provavelmente o imperador que fixou este diálogo, durante o cerco de Constantinopla entre 1394 e 1402; o que explicaria a preponderância e detalhe dos seus argumentos relativamente às respostas do letrado persa. O diálogo estende-se largamente sobre as estruturas da fé contidas na Bíblia e no Corão, e lida especialmente com as imagens de Deus e do homem, ao mesmo tempo que retorna repetidamente ao relacionamento entre as "três Leis": o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Corão.

Nesta palestra gostaria de discutir apenas um ponto -- em si mesmo bastante marginal ao diálogo propriamente dito -- que, no contexto do tema "fé e razão", achei interessante e que pode servir como ponto de partida para as minhas reflexões sobre este tema.

Na conversa sétima ("diálesis" -- controvérsia) editada pelo professor Khoury, o imperador aborda o tema da jihad (guerra santa). O imperador deveria saber que na sura 2:256 se lê: "Não há compulsão na religião." Trata-se de uma das suras do período inicial, quando Maomé ainda não tinha poder e se encontrava ameaçado. Mas naturalmente o imperador conhecia também as instruções, desenvolvidas mais tarde e fixadas no Corão, a propósito da guerra santa."

Sem descer a pormenores, tais como as diferenças de tratamento dispensados àqueles que leram o "Livro" e aos "infiéis", ele vira-se bruscamente para o seu interlocutor, com uma brusquidão que nos deixa atónitos, colocando-lhe esta questão central das relações entre religião e violência em geral, dizendo: "Mostra-me o que é que Maomé trouxe de novo, e aí encontrarás coisas más e inumanas, tais como o seu mandamento de espalhar pela espada a fé por ele pregada."

O imperador, depois de se exprimir de forma tão enérgica, continua a explicar detalhadamente porque motivos espalhar a fé através da violência é uma coisa irrazoável. A violência é incompatível com a natureza de Deus e a natureza da alma. "Deus não é satisfeito com sangue, e não agir com razoabilidade ("syn logo") é contrário à natureza de Deus. A fé nasce da alma, não do corpo. Quem quer que leve uma pessoa a ter fé precisa da saber falar bem e de raciocinar correctamente, sem violência nem ameaças... Para convencer uma alma razoável, não é preciso uma braço forte, ou armas de nenhum tipo, ou quaisquer outros meios de ameaçar uma pessoa com a morte...."

A declaração decisiva neste argumento contra a violência é esta: Não agir de acordo com a razão é contrário à natureza de Deus. O editor, Theodore Khoury, observa: Para o imperador, como bizantino formado pela filosofia grega, esta declaração é auto-evidente. Mas para o ensino islâmico, Deus é absolutamente transcendente. A sua vontade não se prende a qualquer das nossas categorias, nem mesmo a da racionalidade. Aqui Khoury cita uma obra do conhecido islamista francês R. Arnaldez, que refere que Ibn Hazn foi ao ponto de afirmar que Deus não se prende sequer às suas próprias palavras, e que nada o obrigaria a revelar-nos a verdade. Se essa fosse a vontade de Deus, teríamos até que o idolatrar.

No que se refere ao entendimento de Deus e à prática concreta da religião, encontramo-nos face a um dilema que hoje nos interpela directamente. A convicção de que agir irracionalmente contradiz a natureza de Deus será apenas uma ideia grega, ou é sempre e intrinsecamente verdadeira?

Creio que aqui podemos ver a profunda harmonia entre o que é grego na melhor acepção da palavra e o entendimento bíblico da fé em Deus. Modificando o primeiro verso do Livro do Génesis, João iniciou o prólogo do seu Evangelho com estas palavras: "No princípio era o 'Logos'"

Este é o termo exacto usado pelo imperador: Deus age com logos. Logos significa ao mesmo tempo razão e palavra -- uma razão que é criativa e capaz de auto-comunicação, precisamente enquanto razão. João pronunciou assim a palavra final sobre o conceito bíblico de Deus, e nesta palavra todos os caminhos por vezes duros e tortuosos da fé bíblica encontram a sua culminação e síntese. No princípio era o logos, e o logos é Deus, diz o Evangelista. O encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento grego não aconteceu por acaso.

A visão de São Paulo, que viu os caminhos para a Ásia barrados e num sonho viu um homem da Macedónia suplicar-lhe: "Vem para a Macedónia e salva-nos!" (cf. Acts 16:6-10) -- esta visão pode ser interpretada como uma "destilação" da necessidade intrínseca da aproximação entre a fé bíblica e a indagação grega.

Na realidade, esta aproximação foi prosseguindo durante algum tempo. O misterioso nome de Deus, revelado pela sarça ardente, um nome que separa este Deus de todas as outras divindades com os seu inúmeros nomes e declara que ele simplesmente é, representa já um desafio à noção de mito, relativamente ao qual a tentativa de dominar e transcender o mito realizada por Sócrates mostra grandes analogias. No interior do Antigo Testamento, o processo iniciado com a sarça ardente chegou a um novo patamar de maturidade no tempo do Êxodo, quando o Deus de Israel, um Israel agora privado da sua terra e lugar de oração, foi proclamado como o Deus do céu e da terra e descrito numa fórmula simples que ecoa as palavras pronunciadas na sarça ardente: "Eu sou."

Este novo entendimento de Deus é acompanhado por uma espécie de iluminismo, que encontra expressão clara na ridicularização dos deuses que são apenas o produto de mãos humanas (cf. Salmo 115). Assim, apesar do conflito amargo com as autoridades helenistas que procuravam forçar a sua acomodação aos costumes e cultos idólatras dos gregos, a fé bíblica, no período helenista, encontrou o melhor do pensamento grego a níveis profundos, daí resultando um enriquecimento mútuo particularmente evidente na Literatura de Sabedoria tardia.

Hoje sabemos que a tradução grega do Velho Testamento realizada em Alexandria -- o Septuagint -- é mais do que uma simples (e neste sentido talvez menos que satisfatória) tradução do texto hebreu: É uma testemunha textual independente e um distinto e importante passo na história da Revelação, o qual trouxe até nós este encontro de um modo que foi decisivo para o nascimento e expansão do Cristianismo. Um encontro profundo entre razão e fé começou a tomar forma neste lugar, um encontro entre o iluminismo genuíno e a religião. Do coração profundo da fé cristã e, ao mesmo tempo, do coração do pensamento grego agora junto à fé, Manuel II foi capaz de dizer: Não agir "com Logos" é contrário à natureza de Deus.

Com toda a honestidade, devemos observar que na Idade Média encontramos tendências teológicas capazes de separar esta síntese entre o espírito grego e o espírito cristão. Em contraste com o chamado intelectualismo de Agostinho e Tomás de Aquino, emergiu com Duns Escoto um voluntarismo que em última análise conduziu à pretensão de que nós podemos apenas conhecer a "voluntas ordinata" de Deus. Para além disto está o reino da liberdade divina, em virtude da qual Deus poderá ter feito o oposto de tudo aquilo que realmente fez.

Isto dá lugar a posições que claramente se aproximam das posições de Ibn Hazn e podem até conduzir à imagem de um Deus caprichoso, o qual nem sequer está ligado à verdade e ao bem. A transcendência e alteridade de Deus são de tal modo exaltados que a nossa razão, os nossos sentimentos de verdade e de bem, deixam de ser um autêntico espelho de Deus, cujas possibilidades profundas permanecem eternamente inatingíveis e escondidas atrás das suas próprias decisões.

Em oposição a isto, a fé da Igreja insistiu sempre que entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito Criador e a nossa razão criada existe uma analogia real, na qual o inverosimilhança permanece infinitamente maior que a verosimilhança, mas não ao ponto de abolir a analogia e a respectiva linguagem (cf. Latrão IV).

Deus não se torna mais divino quando o afastamos de nós com um voluntarismo diáfano e impenetrável; pelo contrário, o Deus verdadeiramente divino é o Deus que se revelou a si mesmo como logos e, enquanto logos, agiu e continua a agir com amor para nosso bem. Com certeza que o amor, como diz São Paulo, "transcende" o conhecimento e é por isso capaz de alcançar mais do que o pensamento isolado (cf. Efiseus 3:19); no entanto continua a ser o amor do Deus que é logos. Consequentemente, a adoração cristã é, citando de novo Paulo, "latreia lógica" -- adoração em harmonia com a Palavra eterna e com a nossa razão (cf. Romanos 12:1).

Esta aproximação interna entre a fé bíblica e a indagação filosófica grega foi um acontecimento de importância decisiva não apenas do ponto de vista da história das religiões, mas também do da história mundial -- é um evento que ainda hoje nos diz respeito. Dada esta convergência, não é surpreendente que o Cristianismo, apesar das suas origens e alguns significativos desenvolvimentos a Leste, finalmente tenha adquirido o seu carácter histórico na Europa. Podemos também expressar isto de outro modo: Esta convergência, com a subsequente adição da herança romana, criou a Europa e continua a ser o fundamento do que pode ser propriamente chamado Europa.

A tese de que a herança grega criticamente purificada forma parte integral da fé cristã foi contraditada pela convocatória para uma des-Helenização do Cristianismo -- uma convocatória que tem dominado cada vez mais as discussões teológicas desde o início da idade moderna. Visto mais de perto, três estádios podem ser observados no programa de des-Helenização: Embora interrelacionados, são claramente distintos uns dos outros nas suas motivações e objectivos.

A des-Helenização aparece primeiro em correlação com os postulados fundamentais da Reforma no século XVI. Olhando para a tradição da teologia escolástica, os Reformistas pensaram que estavam confrontados com um sistema de fé totalmente condicionado pela filosofia, quer dizer uma articulação da fé baseada num sistema exógeno de pensamento. Como resultado, a fé não mais apareceu como uma Palavra histórica viva mas como elemento de um sistema filosófico abrangente.

O princípio da "sola scriptura", por outro lado, procurou a fé na sua pura forma primordial, como originalmente encontrada na Palavra bíblica. A Metafísica surgiu como uma premissa derivada de outra origem, da qual a fé teve que ser libertada por forma a tornar-se uma vez mais inteiramente ela mesma. Quando Kant afirmou que precisava de pôr o pensamento de lado para conseguir arranjar lugar para a fé, ele levou este programa adiante com um radicalismo que os Reformistas jamais poderiam ter previsto. Ele ancorou assim a fé exclusivamente na razão prática, negando-lhe o acesso à realidade como um todo.

A teologia liberal dos séculos 19 e 20 conduziu um segundo estádio no processo de des-Helenização, com Adolf von Harnack como seu destacado representante. Quando eu era estudante, e nos primeiros anos da minha docência, este programa exercia também uma grande influência na teologia católica. O seu ponto de partida era a distinção de Pascal entre o Deus dos filósofos e o Deus de Abraão, Isaac e Jacob.

Na minha dissertação inaugural em Bona em 1959, tentei abordar este tema. Não repetirei aqui o que então disse, mas gostaria pelo menos de descrever brevemente o que era novo a propósito deste novo estádio de des-Helenização. A ideia central de Harnack era regressar simplesmente ao homem Jesus e à sua mensagem simples, debaixo dos depósitos de teologia e na verdade de Helenização: Esta simples mensagem foi vista como o culminar do desenvolvimento religioso da humanidade. De Jesus se disse que pusera fim à adoração em favor da moralidade. Por fim ele foi apresentado como pai de uma mensagem moral humanitária.

O objectivo fundamental era trazer o Cristianismo de volta à harmonia com a razão moderna, libertando-o, por assim dizer, de elementos filosóficos e teológicos ostensivos, tais como a fé na divindade de Cristo e o mistério da trindade. Neste sentido, a exegese histórico-crítica do Novo Testamento devolveu à teologia o seu lugar no interior da universidade: a Teologia, para Harnack, é essencialmente histórica e por isso estritamente científica. O que pode dizer criticamente sobre Jesus é, por assim dizer, uma expressão da razão prática e consequentemente pode ocupar o seu lugar próprio dentro da universidade.

Para além deste pensamento permanece a auto-limitação moderna da razão, classicamente expressa nas "Críticas" de Kant, e entretanto radicalizada pelo impacto das ciências naturais. Este conceito moderno de razão é baseado, para abreviar, numa síntese entre Platonismo (Cartesianismo) e empiricismo, uma síntese confirmada pelo êxito da tecnologia.

De um lado pressupõe a estrutura matemática da matéria, a sua intrínseca racionalidade, o que torna possível entender como funciona a matéria e usá-la eficientemente: Esta premissa básica é, digamos assim, o elemento Platónico no entendimento da natureza. Do outro lado, há a capacidade de a natureza ser explorada para os nossos propósitos, e aqui apenas a possibilidade de verificação ou falsificação através da experimentação pode garantir a certeza final. O peso entre os dois polos pode, dependendo das circunstâncias, desviar-se de um lado para outro. Um pensador tão positivista como J. Monod declarou-se como um Platonista/Cartesiano convencido.

Isto dá lugar a dois princípios cruciais para o ponto que levantámos. Primeiro, apenas o tipo de certeza resultante do jogo entre elementos matemáticos e empíricos pode ser considerado científico. Tudo o que reclamasse ser ciência tem que ser medido contra este critério. Assim as ciências humanas, tais como a história, psicologia, sociologia e filosofia, procuram conformar-se a este canône de cientificidade.

Um segundo ponto, que é importante para as nossas reflexões, é que pela sua própria natureza este método exclui a questão de Deus, fazendo-o parecer como uma questão a-científica ou pré-científica. Consequentemente, estamos confrontados com uma redução do raio da ciência e da razão, a qual precisa de ser questionada.

Regressaremos a este problema mais adiante. Entretanto, deve ser observado que deste ponto de vista qualquer tentativa de manter a pretensão teológica de ser "científica" acabaria por reduzir o Cristianismo a um mero fragmento da sua primeira identidade. Mas temos que dizer mais: É o próprio homem que acaba por ser reduzido, pois as questões especificamente humanas sobre a sua origem e destino, as questões levantadas pela religião e pela ética, ficariam então sem lugar no interior do campo da razão colectiva definida pela "ciência" tendo por isso que ser relegadas para o reino da subjectividade.

O sujeito então decide, na base das suas experiências, o que ele considera defensável em matéria de religião, e a "consciência" subjectiva torna-se o único árbitro do que é ético. Desta maneira, no entanto, a ética e a religião perdem os seus poderes de criar uma comunidade e tornam-se num assunto completamente pessoal. Esta é uma perigosa situação para a humanidade, como nos apercebemos das perturbantes patologias da religião e da razão que necessariamente irrompem quando a razão é tão reduzida que as questões de religião e de ética deixam de lhe dizer respeito. Tentativas de construir uma ética a partir das regras da evolução ou da psicologia e da sociologia, acabam por ser simplesmente inadequadas.

Antes de tirar as conclusões a que tudo isto tem vindo a conduzir, devo abordar rapidamente o terceiro estádio da des-Helenização, o qual se encontra neste momento em desenvolvimento. À luz da nossa experiência do pluralismo cultural, é frequentemente dito actualmente que a síntese com o Helenismo conseguido nos primeiros tempos da Igreja foi uma inculturação preliminar que não deverá aplicar-se a outras culturas.

Destas últimas se tem dito que têm o direito de regressar à mensagem simples do Novo Testamento anterior a essa inculturação, por forma a serem de novo inculturadas no seu próprio ambiente particular. Esta tese não é apenas falsa; é grosseira e falha de precisão. O Novo Testamento foi escrito em grego e ostenta a marca do espírito grego, que já tinha chegado à maturidade quando o Velho Testamento apareceu.

É verdade que existem elementos na evolução da Igreja primitiva que não têm que ser integrados em todas as culturas. Apesar disso, as decisões fundamentais tomadas a respeito da relação entre fé e o uso da razão humana são parte da própria fé; são desenvolvimentos consonantes com a natureza da própria fé.

E assim chego à minha conclusão. Esta tentativa, a traços largos, de realizar uma crítica da razão moderna a partir do seu interior nada tem que ver com atrasar o relógio para o tempo anterior ao Iluminismo e rejeitar as visões da era moderna. Os aspectos positivos da modernidade devem ser reconhecidos sem reservas: Estamos todos gratos pelas possibilidades maravilhosas que abriu à espécie humana e pelo progresso na humanidade que nos foi facultado. O ethos científico, além do mais, é a vontade de obedecer à verdade, e, assim, dá corpo a uma atitude que reflecte um dos princípios básicos do Cristianismo.

A intenção aqui não é de redução ou de criticismo negativo, mas de alargamento do nosso conceito de razão e da sua aplicação. Ao mesmo tempo que nos regozijamos com as novas possibilidades abertas à humanidade, vemos igualmente os perigos emergentes destas possibilidades e devemos perguntar a nós mesmos como poderemos ultrapassá-los.

Apenas teremos êxito neste propósito se a razão e a fé caminharem juntas numa nova direcção, se ultrapassarmos a auto-imposta limitação da razão sobre o empiricamente verificável, e se uma vez mais descobrirmos os seus vastos horizontes. Neste sentido a teologia pertence de direito à universidade e ao âmago do amplo diálogo das ciências, não apenas como uma disciplina histórica e das ciências humanas, mas precisamente como teologia, como inquirição da racionalidade e da fé.

Só assim seremos capazes desse diálogo genuíno de culturas e religiões hoje tão urgentemente necessário. No mundo ocidental é amplamente aceite que apenas a razão positivista e as formas de filosofia nele baseadas são universalmente válidas. E no entanto as culturas profundamente religiosas do mundo vêem esta exclusão do divino da universalidade da razão como um ataque às suas mais profundas convicções.

Uma razão surda ao divino e que relega a religião para o reino das sub-culturas é incapaz de entrar no diálogo de culturas. Ao mesmo tempo, como tentei mostrar, a moderna razão científica com o seu elemento intrinsecamente platónico suporta dentro de si uma questão que aponta para fora de si e para lá das possibilidades da sua metodologia. A moderna razão científica tem simplesmente que aceitar a estrutura racional da matéria e a correspondência entre o nosso espírito e as prevalecentes estruturas racionais da natureza como um dado, sobre o qual a sua metodologia tem que ser baseada.

No entanto a questão do porque é que tem que ser assim é uma questão real, e tem que ser devolvida pelas ciências naturais a outros modos e planos de pensamento -- à filosofia e à teologia. Porque para a filosofia e, ainda que de modo diferente, para a teologia, prestar atenção às grandes experiências e discernimento das tradições religiosas da humanidade, e em particular da fé cristã, é uma fonte de conhecimento, e ignorá-lo seria uma inaceitável restrição da nossa capacidade de ouvir e responder.

Aqui recordo-me de algo que Sócrates disse a Fedro. Nas suas primeiras conversas, foram levantadas muitas opiniões filosóficas falsas, e assim Sócrates diz: "Seria facilmente compreensível que alguém ficasse tão aborrecido com todas estas falsas noções que para o resto da sua vida desprezasse e fizesse pouco de todas as conversas sobre o ser -- mas deste modo ele seria privado da verdade da existência e sofreria uma grande perda."

O Ocidente há muito que vem sendo ameaçado por esta aversão às questões que subtendem a sua racionalidade, e só poderá sofrer grandemente com isso. A coragem para envolver-se no amplo espectro da razão, em vez de negar sua grandeza -- é este o programa com o qual a teologia fundada na fé bíblica entra nos debates do nosso tempo.

"Não agir racionalmente (com logos) é contrário à natureza de Deus," diz Manuel II, de acordo com o seu entendimento cristão de Deus, em resposta ao seu interlocutor persa. É a este grandioso logos, a este sopro da razão, que nós convidamos os nossos parceiros no diálogo de culturas. Redescobri-lo constantemente é a grande tarefa da universidade.

NOTA:
O Santo Padre tenciona facultar uma versão subsequente a este texto, completada com notas de rodapé. O texto presente deve pois ser considerado provisório.




Tradução não oficial para português (versão sujeita a correcções), Carcavelos, 17 Set 2006 - AC-P

OAM #143 17 SET 2006

sexta-feira, setembro 15, 2006

Justiça

Lucas Cranach, TêmisAs adoradoras de Têmis, enquanto devotas da "pudenda muliebria" (a vulva), dedicavam-se a rituais orgiásticos, onde as descargas da libido serviam não só para aumentar a cumplicidade entre a Deusa e as suas adoradoras, mas também para uni~las ao mundo. Esta Deusa do prazer e da virtude opunha-se à dominação do um sobre muitos, preferindo a unidade à multiplicidade, a totalidade à fragmentação, e a integração à repressão. Nessa actividade de contenção e vinculação, Têmis revelava o princípio operado pela consciência feminina, i.e. a lei do amor. Deusa da consciência colectiva e da ordem social, da lei espiritual divina, da paz, do ajuste de divergências e da justiça, Têmis, a voz profunda da Terra, foi também a inventora das artes e da magia.
adaptado de um artigo na Wikipedia
Lucas Cranach, O Velho. Alegoria da Justiça, 1537

A voz da Terra não é a voz dos homens


Um dos problemas mais sérios que actualmente afecta a humanidade é o da natureza da justiça. Ouvimos o termo sair da boca infecta de muitos políticos como se de uma trivialidade instrumental se tratasse. Reparamos que o seu nome tem vindo a ser aviltado da maneira mais insidiosa pelos chamados operadores judiciários, cuja venda que deveria proteger os seus olhos do poder e da sedução, há muito se deixou corromper pelo brilho ofuscante dos pequenos paraísos do dia a dia. Chegámos a um tempo em que a evidência material e confessa dos crimes perde sistematicamente contra a engenharia do direito e o poder da forma. Os lobos da guerra e da corrupção definem quando querem e como querem já não apenas o uso das normas sociais, mas também a sua omissão ou rejeição discricionária. O povo vê e arrepia-se. Entre outras causas, por adivinhar uma espécie de unanimidade sinistra no horizonte do poder.

OAM #142 15 SET 2006

sábado, setembro 09, 2006

9/11

crateras num campo de testes de bombas nucleares B61
Nevada (EUA) - campos de testes com crateras de bombas nucleares tácticas B61, incluídas no plano de guerra nuclear preventiva aprovado por Georges W. Bush, e tendo o Irão - um país sem armamento nuclear - na mira da sua próxima agressão em larga escala.

11 de Setembro: que aconteceu realmente?


Power tends to corrupt; absolute power corrupts absolutely” — Lord Acton (historiador inglês)


No início dos anos 60, altos comandos militares dos Estados Unidos elaboraram planos para matar pessoas inocentes e cometer actos de terrorismo em cidades dos EU com a finalidade de levar o público a apoiar uma guerra contra Cuba. Este plano, aprovado pelo Comando Chefe do Pentágono, teve o nome de código Operation Northwoods, e chegou a propor a sabotagem de um navio estado-unidense e o desvio de aviões comerciais como pretextos falsos para uma guerra. O presidente de então, John F. Kennedy, reprovou o plano e demitiu o seu autor. Acima dos interesses estratégicos imediatos da América estavam a superioridade moral da sua democracia e os valores constitucionais. Colocar este património em risco seria assassinar a imagem de farol da liberdade exibido pela nova potência imperial nascida do rescaldo da barbárie civilizacional de 39-45.

Foi esta imagem ética que desapareceu em 11 de Setembro de 2001. Aquilo que naquela data, ainda tão perto de todos nós, ocorreu, temo-nos vindo a aperceber desde então, foi muito menos uma operação brilhante do terrorismo islâmico do que uma provocação sadicamente montada e gerida pelos novos senhores da guerra imperial e respectivos assessores, Dick Cheney, Donald Rumsfeld, Paul Wolfovitz, John Ashcroft, o presidente George W. Bush, claro está, o irmão deste, Jeb Bush, o pai deste, George H. W. Bush e, por fim, mas não menos destacável, Condoleeza Rice. Se a humanidade se salvar desta canalha, creio que a mesma não escapará nem ao juízo implacável da história, nem à mão pesada da justiça humana.

As provas evidentes de que quase nada bate certo na versão oficial dos factos são inúmeras, aconselhando vivamente a leitura e visionamento dos documentos referidos no fim deste artigo (que efectivamente permitem uma nova claridade informativa sobre o que terá realmente acontecido na manhã de 11 de Setembro de 2001). O mais extraordinário de tudo é a cumplicidade dos grandes meios corporativos de comunicação social com a versão oficial (titubeante e contraditória) da Adminstração Bush. O mais incrível e triste é ver como esta cumplicidade criminosa dos média estado-unidenses se propaga pela generalidade dos seus subservientes colegas ocidentais (1). Não faltará porém muito tempo para que quase tudo se saiba, nomeadamente sobre o enigmático Bin Laden (2), objectivamente um agente duplo dos Estados Unidos e do extremismo islâmico.

O FBI estava a par dos planos dos ataques aéreos seis meses antes de ocorrerem (mas mandaram-no calar). O sistema de defesa do espaço aéreo americano, pronto para interceptar quaisquer intrusos num intervalo de 10 a 20 minutos, nada fez ao longo de hora e meia, mesmo tratando-se da capital económica (Nova Iorque) e da capital política (Washington) dos Estados Unidos. As torres gémeas e o edifício 7 do World Trade Center não ruiram por efeito dos impactos dos dois Boeing 757, mas sim por efeito de implosões meticulosamente programadas e accionadas no momento certo. O Pentágono não foi atingido por nenhum Boeing, mas sim por um avião militar ou por um míssil. Perante o que parecia então ser um ataque em larga escala contra os Estados Unidos, não se sabendo portanto se os seus autores estariam ou não em condições de atacar a escola primária onde se encontrava o Presidente Bush, este dá-se ao luxo de ali ficar 47 minutos e mesmo falar à imprensa sobre os acontecimentos à hora anteriormente prevista para a sua comunicação sobre a visita escolar, sem que os serviços secretos o tivessem arrastado imediatamente para o carro presidencial, a única estrutura blindada nas imediações e com a melhor conectividade possível com a Casa Branca, o Pentágono e os vários serviços secretos e policiais do país (can you believe it?!). Dos dezanove terroristas anunciados como fazendo parte dos comandos que realizaram as operações de 11 de Setembro, nove estão vivos e recomendam-se. Ao fim de cinco anos não foi acusada uma única pessoa nos Estados Unidos por conspiração directa ou associação aos comandos que realizaram a acção terrorista (como se fosse possível uma acção daquela envergadura e complexidade ter sido planeada, preparada e executada sem uma vasta rede de contactos e participantes no terreno para além dos dez supostos terroristas que se enfiaram nos aviões). Depois desta encenação viria o resto do plano: declarar que os EUA estavam em guerra contra o terrorismo mundial (o dito Eixo do Mal) e que esta seria levada aonde a Adminstração Bush julgasse haver perigo para os interesses americanos; cortar a direito nos direitos da cidadania americana (Patriotic Act); criar o pânico sistemático entre a população dos Estados Unidos; atacar, invadir e ocupar o Afeganistão, a pretexto de perseguir a Al Qaeda e Bin Laden; atacar, invadir e ocupar o Iraque a pretexto de umas inexistentes Armas de Destruição Maciça (WMD); conspirar com Israel a mais recente guerra contra o Líbano, e preparar uma guerra alargada contra a Síria e o Irão, antes do grande teste chinês. Entretanto, no meio de uma crise económica e política indisfarçável, sem tropas de infantaria e cavalaria que cheguem para os sucessivos teatros de guerra em que se vem envolvendo na prossecução do seu desígnio imperial, o Pinóquio Bush e a pandilha que o comanda preparam-se para reintroduzir o serviço militar obrigatório nos Estados Unidos.

Os países aliados dos EUA, como Portugal, que se cuidem. Se não souberem gerir sabiamente a força de interposição que a ONU destacou para a fronteira entre o Líbano e Israel, nomeadamente no quadro das previsíveis provocações e jogos de guerra que ocorrerão nos próximos meses e anos, o espectro do serviço militar obrigatório poderá regressar à Europa. Para os especuladores e os financeiros envolvidos nos sectores energéticos e nas indústrias militares e afins estas são seguramente boas notícias (não é Sr. Amorim? não é Sr GALP? não é Sr OGMA?). Resta saber como vai reagir a cidadania a tanta pulhice.

O Muro de Berlim caíu em cima de todos nós. Mas a propagação das ondas assassinas do 11 de Setembro estão longe de ter chegado verdadeiramente às nossas costas. Irão chegar? Ou será que John Carry conseguirá, finalmente, arrancar a presidência dos EUA ao gang dos Bush?

Oil remains fundamentally a government business. While many regions of the world offer great oil opportunities, the Middle East with two thirds of the world's oil and the lowest cost, is still where the prize ultimately lies, even though companies are anxious for greater access there, progress continues to be slow. — Declaração proferida por Dick Cheney num discurso durante o almoço de Outono promovido pelo London Institute of Petroleum em 1999, quando o actual vice-presidente dos EUA era o chairman da empresa petrolífera Halliburton.

The attitude of the American public toward the external projection of American power has been much more ambivalent. The public supported America's engagement in World War II largely because of the shock effect of the Japanese attack on Pearl Harbor.
(...) Moreover, as America becomes an increasingly multi-cultural society, it may find it more difficult to fashion a consensus on foreign policy issues, except in the circumstance of a truly massive and widely perceived direct external threat
” — Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard, 1997.


Post Scriptum [11 Set 2006] — a elevação generalizada dos patamares de prevenção policial e o aumento de coordenação entre os serviços de inteligência de todo o mundo tem a enorme vantagem de tornar muito mais difícil os jogos sujos da Casa Branca e do Pentágono. Ora aí está um efeito benigno, e certamente inesperado pelos próprios, da “guerra contra o terrorismo”.





Notas
1 — Os média corporativos europeus, sob a pressão crescente da Web, têm vindo a abrir excepções ao bloqueio informativo sobre a conspiração do 11 de Setembro, entrevistando personalidades com visões radicalmente distintas das versões oficiais do 9/11 e exibindo mesmo videos de desconstrução dessas mesmas verdades mediáticas (como sucedeu no canal 2 da televisão pública portuguesa nos últimos dias). No entanto, estas excepções são pontuais, não afectando minimamente o discurso mediático dominante, que continua a referir-se ao 11 de Setembro como a grande obra de Bin Laden e do terrorismo mundial. Ou seja, os média corporativos, objecto de uma concentração accionista planetária sem precedentes, veiculam sobre esta matéria (como sobre muitas outras) um discurso típico da contra-informação, ao qual os desgraçados jornalistas não conseguem escapar, se não episodicamente, e sempre sabendo que tais atrevimentos lhes custarão seguramente o emprego e mesmo a carreira profissional.

PS [11 Set 2006] — Foi delicioso ouvir o antigo presidente português Mário Soares no programa televisivo Prós e Contras de 11/09/2006. Uma criança de oitenta anos completamente envolvida na discussão política em curso sobre o 11 de Setembro e as suas sequelas. Apesar das naturais falhas na sua memória de curto prazo, tomara a maioria dos políticos lusitanos terem metade do seu entendimento estratégico do mundo. O seu interlocutor, José Pacheco Pereira, ex-maoista típico e como tal, hoje, um homem de direita (ex- dirigente de um partido de centro-direita chamado PSD), falou como um converso do bushismo mais radical: há um “problema cultural” (e por isso não vê como seja possível deixar de esmagar o Islão), a ONU é um verbo de encher, a Convenção de Geneva não serve e quem puser um ‘mas’ à frente da palavra ‘terrorismo’ ou é um traidor, ou um papalvo ou, mais provavelmente, um potencial e perigoso fundamentalista islâmico. Para ele, os 2900 mortos dos atentados do 11 de Setembro são as vítimas de um terrorismo hediondo. Mas os 250 mil mortos causados pela invasão e ocupação do Iraque pelas tropas americanas e inglesas, não existem, porque no fundo, para ele, são apenas o pequeno preço a pagar pelos beneficiários da missão civilizadora dos Estados Unidos. Já quando delirava com Mao pensava o mesmo dos milhões de sacrificados da gloriosa revolução chinesa! Quando um dia parar para pensar um bocadinho dá-lhe uma coisa, coitado. Não fora a voz de Mário Soares e só teríamos ouvido a Voz da América na televisão portuguesa que hoje abriu todos os seus noticiários com o espectáculo do 11 de Setembro e a pantomima de George W. Bush.

2 — Quem é e onde está Osama Bin Laden? Vale a pena ler esta conclusão de um dos mais atentos observadores do grande jogo de estratégia global, Michel Chossudovsky: “Since the Cold War era, Washington has consciously supported Osama bin Laden, while at same time placing him on the FBI's "most wanted list" as the World's foremost terrorist.
While the Mujahideen are busy fighting America's war in the Balkans and the former Soviet Union, the FBI --operating as a US based Police Force- is waging a domestic war against terrorism, operating in some respects independently of the CIA which has --since the Soviet-Afghan war-- supported international terrorism through its covert operations.
In a cruel irony, while the Islamic jihad --featured by the Bush Adminstration as "a threat to America"-- is blamed for the terrorist assaults on the World Trade Centre and the Pentagon, these same Islamic organisations constitute a key instrument of US military-intelligence operations in the Balkans and the former Soviet Union.
Link1, Link2

Referências
9/11 Time Line
Bush's Behavior on 9/11
Project for the New American Century (website).
Rebuilding America's Defenses — Strategy, Forces and Resources For a New Century, September 2000.
Michel Chossudovsky, America's "War on Terrorism".
David Ray Griffin, The New Pearl Harbor: Disturbing Questions About the Bush Administration and 9/11 + The 9/11 Commission Report: Omissions And Distortions.
Michael C. Ruppert, Crossing the Rubicon.
Sander Hicks, The Big Wedding.
Paul Thompson, The Terror Timeline.
Nafeez Ahmed, The War on Freedom e The War on Truth.
Webster Griffin Tarpley, 9/11 Synthetic Terror: Made in USA.
Loose Change 2n edition (vídeo).
Loose Change in Wikipedia
Loose Change, discussão com os autores no canal Democracy Now
David Ray Griffin, The 9/11 Commission Report: Omissions and Distortions (vídeo/ a melhor introdução a uma análise crítica do 11S)
9/11 Information Center — uma referência obrigatória.
9/11 blogger
9/11 for Truth Movement esgota sessão no Conway de Londres, 09 Set 2006. Nesta sessão David Ray Griffin, professor emérito de filosofia da religião da universidade de Claremont, e autor de “The New Pearl Harbor: Disturbing Questions About the Bush Administration and 9/11 ” e “The 9/11 Commission Report: Omissions And Distortions”, perguntará à audiência: "Foi o 11 de Setembro uma conspiração interna?" ("Was 9/11 an inside job?")

OAM #141 09 SET 2006

domingo, setembro 03, 2006

Israel-Libano 5

Azores
Açores, Canárias e Cabo Verde serão peças essenciais da futura estratégia europeia no Atlântico

A derrota americana no Líbano e a posição europeia


So what happens now? There are two places to look: inside the United States, and in the rest of the world. In the rest of the world, governments of all stripes are paying less and less attention to anything the United States says and wants. Madeleine Albright, when she was Secretary of State, said that the United States was "the indispensable nation." This may have been true once, but it is certainly not true now. Now, it's a tiger at bay.”
The Tiger at Bay: Scary Times Ahead by Immanuel Wallerstein, Sept 1, 2006

Não ouvi Durão Barroso, presidente invisível da União Europeia, nem o novo ministro português dos negócios estrangeiros, Luis Amado, assumirem posições claras sobre a ilegitimidade e desproporcionalidade bélica da intervenção israelita no Líbano. Ouvi, no entanto, o mesmo Amado admitir a possibilidade de Portugal participar no esforço de estabilização da região após o conflito. Ouvi também, mas só agora, o Sr. Durão Barroso reclamar por uma Europa mais pronta e apetrechada para reagir a futuras emergências deste género (lembram-se de Mário Soares pugnar por um braço militar e por uma política europeia de defesa?). Em ambos os casos, tratou-se, por um lado, de recuperar tempo perdido na reacção aos acontecimentos, e por outro, de ganhar algum espaço de manobra na prossecução incompreensível de uma postura de vassalagem ao amigo americano. O caso do vanguardismo pró-sanções contra o Irão (o maior fornecedor de petróleo à Europa) do ministério Amado é um bom exemplo da falta de visão e coragem no actual transe da geo-estratégia global.

Do Sr. Barroso não podemos esperar nada para o futuro da Europa, nem sequer para o futuro de Portugal. O homem revelou ser apenas um pequeno atlantista sem história nem futuro. Já no que se refere ao MNE lusitano, interessa perceber o que lhe vai eventualmente na alma. Até porque o essencial do Novo Grande Jogo estratégico deste pretendido Novo Século Americano passa por saber como desmamar os EUA do seu conforto imperial, economicamente falido.
In the space of 12 months Russia and China have managed to move the pieces on the geopolitical ‘chess board’ of Eurasia away from what had been an overwhelming US strategic advantage, to the opposite, where the US is increasingly isolated. It's potentially the greatest strategic defeat for the US power projection of the post World War II period. This is also the strategic background to the re-emergence of the so-called realist faction in US policy.”
America's Geopolitical Nightmare and Eurasian Strategic Energy Arrangements by F. William Engdahl, May 7, 2006


A Espanha disponibilizou 800 a 1000 militares para a força de interposição entre o Sul do Líbano e Israel, e mais de 26 milhões de euros para o bolo da reconstrução das infra-estruturas daquele país. Esta decisão, na sequência do determinismo e sentido de oportunidade de Romano Prodi, que arrastou uma França titubeante para a cabeça da força internacional da UNIFIL, colocou a União Europeia num novo e fundamental patamar de acção estratégica, alternativo aos interesses dos Estados Unidos e da anacrónica NATO (que já só existe como vigário da super-potência americana). Apesar dos riscos evidentes, parece óbvio que todos — Europa, Líbano, Hezbollah, Síria, Irão e sobretudo Israel (depois do isolamento em que actualmente se encontra a Administração Bush e o próprio governo Israelita) — têm razões para desejar que a operação corra bem. Trata-se, no essencial, de travar a natureza particularmente agressiva e perigosa da actual deriva estratégica dos Estados Unidos, e de multipolarizar de novo os equilíbrios estratégicos globais. Ora para isto, ao que parece, todos os santos e demónios estão dispostos a ajudar! (1) Neste sentido, devemos apoiar a colaboração portuguesa no esforço militar, logístico e financeiro de reconstrução e segurança do Líbano.

Mas este apoio deverá ser crítico e exigente. O governo tem, assim, que ser mais europeu em matéria de política externa, e mais consequente quando toma decisões. Enviar um destacamento de engenharia militar para a Força é uma decisão provavelmente acertada. Mas não dar um tostão para a reconstrução do Líbano, ou ficar calado sobre o assunto, é um intolerável sinal de miserabilismo político! No mínimo, Portugal deveria disponibilizar 25% da contribuição espanhola, o que viria a dar em 4,5 milhões de euros. Só depois faria sentido tanta preocupação com a possibilidade de os militares portugueses virem a estar subordinados a um sub-comando espanhol (2).

Portugal pode e deve jogar, com o Reino Unido, e com a Espanha, um papel decisivo na reformulação do posicionamento da Europa no Atlântico e nas relações de fundo com os países americanos. Desde logo, pondo em marcha uma renegociação séria dos acordos militares com os Estados Unidos (nomeadamente no que se refere aos usos e contrapartidas da base militar da Lages). E depois, promovendo activamente a associação, ou mesmo a integração, de Cabo Verde na União Europeia. Mas para aqui chegar terá que começar por se tornar mais previsivelmente europeu na sua política externa, e mais determinado e credível nas acções.

A impotência militar revelada pelos Estados Unidos e seus fieis aliados na prossecução das agressões dirigidas contra o Afeganistão, o Iraque e agora o Líbano pode ter aberto uma verdadeira Caixa de Pandora na política mundial. Começou inexoravelmente um movimento de ajustamento tectónico dos equilíbrios de forças à escala planetária. Trata-se, por isto mesmo, de uma crise perigosa e que pode a qualquer momento tornar-se explosiva e incontrolável. A Europa, neste contexto, poderá ser a carta decisiva no necessário reajustamento da justiça entre as nações.
The United States is today the greatest military power in the world. Israel is today the greatest military power located in the Middle East. One of the most obvious temptations of military superiority is to use military force when one wants to accomplish something which is resisted politically. The United States decided to use force against Iraq in 2003. Israel decided to use force against Lebanon in 2006. In both cases, the governments made these decisions, calculating that they could surely win the military conflict, and win it quickly.

Normally, the greatest military power in the world or in a given region can indeed win such military engagements, and win them quickly. That is what we mean when we say they are the greatest military power. But winning depends on a situation in which the military gap between the two states is truly overwhelming. If it is less than overwhelming, the decision to resort to military force can backfire, and backfire badly.

Five Reasons Why Great Military Powers Lose Wars by Immanuel Wallerstein, Aug 15, 2006


Actualização [12 Set 2006] — O uso de bases aéreas militares e civis portuguesas para o trânsito de aeronaves ao serviço da CIA, da NSA e do Pentágono, transportando prisioneiros clandestinos de e para o campo de concentração de Guantanamo, de e para prisões clandestinas em solo europeu (onde alegadamente se praticaram actos de tortura), é um abuso grosseiro da aliança transatlantica entre a Europa e os Estados Unidos, de que Portugal é parte constitutiva. O governo português tem a obrigação estrita de informar diligentemente a comissão de inquérito constituída na União Europeia para apurar a verdade, dimensão e gravidade dos factos imputados à descarada Administração Bush. Perante a gravidade destes factos, a União Europeia deve, sem hesitação, redefinir os graus de liberdade dos vários serviços e forças estado-unidenses acantonados e em trânsito na Europa. Imagine-se o que teria sucedido se a história se tivesse passado na direcção contrária, i.e. se aviões europeus transportassem prisioneiros clandestinos para serem interrogados nos EUA. A América vai ter que perceber que o direito de pernada imperial acabou! Em Portugal, onde este escândalo acaba de rebentar depois de ouvirmos um agente da CIA afirmar num video-documentário canadiano que havia aterrado nos Açores em missão relacionada com prisioneiros de Guantanamo, e de se saber que tais missões passaram pelos aeroportos açorianos de Santa Maria e das Lages, e ainda pelos aeroportos do Porto e de Tires (situado na área metropolitana de Lisboa) assiste-se a um silêncio comprometedor por parte das principais araras do comentário político institucional. Estou em crer que o pacto sobre a Justiça subitamente assinado pelos dois principais partidos lusitanos (PS e PSD) foi antes de mais uma cortina de fumo lançada sobre as evidentes provas de subserviência do estado português à arrogância imperial dos Estados Unidos. Espero que os patriotas de ambos os partidos com vocação governamental e das oposições de esquerda e de direita se unam contra este capitulacionismo vergonhoso. Já chegou a Conferência de Berlim de 1884-85!




NOTAS
1 — A visita do Sr. Annan a Teerão, além de legitimar a emergência de uma nova potência regional, revelou um Ahmadinejad menos anti-semita e disposto a rever calmamente a questão nuclear à mesa de negociações, enquanto dava a entender que a segurança das fronteiras libanesas deixou de ser uma tarefa do Hezbollah, porque a Europa, vários países árabes e sobretudo o Irão estão determinados a desempenhar esta tarefa crucial daqui para a frente. Ver noticia na BBC (03 Set 2006)
2 — Nesta matéria, eu preocupo-me mais com o facto de a Pesca Nova desembarcar em Mira para produzir 10 mil toneladas de peixe em regime de aquicultura, superando a produção atomizada das restantes 1472 empresas do sector [Expresso, 2 Set 2006], do que com a subordinação dos nossos engenheiros militares a um comando castelhano. Não por temer a ‘invasão espanhola’. Mas simplesmente por verificar que segmentos decisivos da economia portuguesa (bens primários, energia, serviços, circuitos de distribuição e telecomunicações) têm vindo a sucumbir à lógica da concentração financeira especulativa e à globalização, enquanto os nossos financeiros e empresáros se entretêm com o lucro rápido da especulação bolsista, a venda apressada das suas empresas e a pressão constante sobre o Estado para que aliene as suas empresas de ouro, a fim de que a pandilha do Compromisso Portugal e quejandos possam posteriormente colocar tais empresas no mercado internacional. Estes senhores não devem porém esquecer que o regresso à nacionalização parcial das economias nacionais pode ocorrer mais cedo do que esperam, assim como a responsabilização de quem levianamente pôs os paises em saldo. Olhem para o que sucedeu aos novos oligarcas russos...

A não perder: George Galloway sobre o Líbano, Israel e as lavagens ao cérebro da Skynews

OAM #140 01 SET 2006

quinta-feira, agosto 31, 2006

Indianos contra a Coca-Cola

No Coke, Thanks
Coca Cola? Não. Obrigado. Prefiro chá verde!

Da privatização (roubo) das águas ao imperialismo dos refrigerantes


O Fascismo deveria ser chamado, com mais propriedade, Corporativismo, uma vez que é uma fusão do Estado com o poder das corporações”. — Benito Mussolini

A Coca-Cola e Pepsi são culpadas de causar severas faltas de água em comunidades por toda a Índia; poluir a água subterrânea e o solo nos arredores das suas unidades de enchimento; espalhar o lixo tóxico resultante dos processos de lavagem de vasilhame por vastas zonas agrícolas indianas pobres; vender refrigerantes misturados com elevados níveis de pesticidas — em alguns casos, superando 30 vezes os padrões aceites na União Europeia.
Pode argumentar-se, para dourar a pílula (como o fez o World Watch Institute), que o problema da água, seja o da sua falta dramática, seja o da sua má qualidade, ou seja o da contaminação induzida pelas enormes quantidades de adubos, fungicidas e pesticidas artificiais usados na produção de alimentos, é muito mais vasto e grave que o dos níveis de contaminantes contidos na Coca Cola e na Pepsi produzidas na India. Mas a verdade, porém, é que foram detectados (já em 2003) elevados níveis de chumbo, cadmiun e crómio nestes refrigerantes, sabendo-se ainda que as práticas abusivas destas empresas na apropriação dos recursos aquíferos nos países em desenvolvimento começa a tornar-se mais um problema mundial directamente ligado ao expansionismo americano. Bush interveio junto das autoridades indianas para impedir o alastramento do que ameaça ser um movimento nacional contra a presença daquelas multinacionais na India. Se falhar, podemos imaginar as tremendas ondas de choque que uma tal eventualidade poderá gerar no resto do mundo, a começar por alguns países muçulmanos, ou pela Colômbia, onde 8 sindicalistas foram assassinados por milícias privadas a soldo da Panamco, principal distribuidora da Coca Cola na América Latina. Motivo destes crimes: a denúncia das condições de exploração praticados nas unidades de enchimento do refrigerante.
Não é difícil prever as dificuldades que os oligopólios dos refrigerantes irão ter num futuro cada vez mais ameaçado pela descida constante das tabelas de água em todo o mundo.
Por mim, dispenso a Coca Cola e a Pepsi. Prefiro o chá verde dos Açores (o da Gorreana), o guaraná e as infusões geladas de hibisco. Além do mais, fique sabendo que o excesso de consumo de Coca-Cola foi a causa comprovada do aparecimento de osteoporose precoce em pré-adolescentes alemães! [Água versus Coca-Cola]




Referências
Suspected Soft Drink Contamination Raises Broader Questions About Food Safety in India. By Biko Nagara - August 30, 2006 — in World Watch Institute.
The Opposition to Coca Cola and Water Privatization. Activists in Medhiganj, India Rise Up. By Gina Drew e Mike Levien — in Z Net.
Coca Cola: Destruindo Vidas, Meios de Sobrevivência e Comunidades. Impossível Pensar. Impossível Beber! — in India Resource Center. Building Global Links for Justice.
Communities Reject Coca-Cola in India. by Amit Srivastava, India Resource Center. July 10th, 2003 — in Corp Watch.
Killer Coke
The Zero Coke Movement

OAM #139 31 AGO 2006

segunda-feira, agosto 21, 2006

Carrilho 3

Capa de Sob o Signo da Verdade. Ed. Dom Quixote

A arena da verdade

Acabo de ler, em segunda edição, o livro de Manuel Maria Carrilho, onde o próprio explica as causas da sua derrota na corrida eleitoral para a presidência da Câmara Municipal de Lisboa, cuja vitória viria a caber ao discreto político do PSD, Carmona Rodrigues. O modo directo como denuncia o “polvo” e a “matilha” de Gresham que se atiraram à sua candidatura autárquica, sem regras nem tréguas, é convincente. Percebe-se ao longo do livro como, de facto, a corrupta imprensa que temos se prestou ao linchamento mediático do candidato do Partido Socialista. A demonstração é meridianamente clara e vale a pena ler o livro só por isto.

Como escrevi noutra ocasião, os nossos média convencionais são empresas falidas, que empregam mão-de-obra precária e se subsidiam intermitentemente nos projectos de fabricação de consensos mais idiotas, ou mais próximos do poder económico e político. Eu zapeio um máximo de duas horas de televisão por dia, detendo-me algum tempo no Jornal das Nove, apesar dos salamaleques cómicos do Mário Crespo, e passando invariavelmente pelas notícias da Sky, BBC e Bloomberg. Vi irregularmente Sete Palmos de Terra e Os Sopranos, aprecio a comédia britânica (The Office, etc.) e abomino cada vez mais a TV Cabo e os seus pseudo-canais repetitivos. Vejo e ouço com alguma regularidade o Marcelo Rebelo de Sousa, e mais nenhum outro comentarista, na medida que este me parece o mais arguto e venal clown da nossa praça televisiva. Não vejo futebol, nem concursos, nem televonelas, nem touradas! Deixei há muito de comprar jornais portugueses, na medida em que continuam a sujar as mãos, raramente informam, continuam a dedicar-se soturnamente à manipulação incestuosa ou encomendada da informação e opinam miseravelmente. Tendo a Internet à mão, para que preciso do Expresso, do Público ou do Diário de Notícias? Para nada, de facto. Ora bem, é neste contexto que as mensagens de Manuel Maria Carrilho, quase sempre cheias de ruído, se não mesmo na forma pura e simples do boato, têm viajado até mim.

O seu programa eleitoral não me chegou às mãos, nem me chegou aos olhos, nem me chegou aos ouvidos. Passou-se exactamente o mesmo com os programas dos outros candidatos. O problema é que se nada havia a esperar do PSD, que acabava de provar a sua completa incapacidade para governar Lisboa e o País inteiro, e se nada de relevante poderíamos esperar dos dois partidos da esquerda minoritária — a não ser que cumprissem o seu dever de vigilantes democráticos no interior de uma instituição consabidamente macrocéfala, imbecil e corrupta —, pelo contrário, do candidato que corria pelo partido que poucos meses antes havia conquistado uma notável maioria absoluta, havia a maior das expectativas.

Por conseguinte, se o que sobressaíu da candidatura de Carrilho foram os faits divers, e não as suas ideias, algo terá falhado no quartel-general da sua campanha, para além da voragem canina dos paparazzi das agências noticiosas e dos venais jornalistas, editores e directores da provinciana e terceiro-mundista imprensa escrita e audiovisual que temos. Estou de acordo com a autocrítica que Carrilho faz no seu livro, num esforço de ultrapassar um episódio certamente dramático e triste da sua inesperada, intempestiva e meteórica carreira política.

Esta autocrítica está explicada através de seis factores que propiciaram o desastre e seis erros que contribuiram fatalmente para o mesmo.

São estes os factores: a imagem polémica do candidato; o regresso do publicitário Edson Athaíde a Portugal com a missão de orientar a sua campanha; o cansaço político dos eleitores depois de todas as peripécias que se sucederam ao abandono de António Guterres (que para todos os efeitos detinha uma maioria relativa para governar); a manipulação dos média por intermédio da agência noticiosa de Cunha Vaz (que entretanto assumira o encargo de promover Carmona Rodrigues); a vitória tíbia de Marques Mendes no Congresso do PSD, para quem uma derrota autárquica em Lisboa e no Porto poderia ser uma machadada antecipada no seu inglório consulado à frente do destroçado PSD pós-Barroso e sobretudo pós-Santana; e finalmente, o impacto negativo da nova austeridade governamental sobre a sua candidatura, que levaria seguramente alguns eleitores a castigar o PS, ou abstendo-se ou votando, por exemplo, no Bloco de Esquerda, ou mesmo no PCP.

E os erros foram, segundo Carrilho, os seguintes: não ter insistido na coligação de esquerda com o PCP; ter começado a sua campanha cedo de mais; não ter recorrido a uma agência de comunicação, quanto mais não fosse para compensar defensivamente a acção da Cunha Vaz; o voluntarismo e o vanguardismo conceptuais da sua campanha; o desafio que dirigiu ao lóbi da construção civil e da especulação imobiliária, traduzido no anúncio de uma aposta mais firme na reabilitação, contra o predomínio escandaloso das novas construções; e ainda, uma aposta errada no modelo dialéctico da campanha, a qual, escreve, deveria ter sido mais adversarial e menos propositiva.

Estou, em geral, de acordo com este balanço. Há, porém, mais algumas causas fundamentais para o insucesso de Manuel Maria Carrilho, que o mesmo parece ignorar, ou às quais não confere peso suficiente. A primeira, diz respeito à óbvia falta de habilidade como abordou e geriu o dossiê Bárbara Guimarães (além de sua mulher, Bárbara é uma estrela da televisão e da moda, o que exigiria sempre uma estratégia muito clara e transparente no uso da sua imagem, além de especiais cuidados na conjuntura hostil que se montou). A segunda, decorre dos efeitos nefastos que os coelhos do aparelho socialista (Miguel Coelho e Jorge Coelho) tiveram na marcha dos acontecimentos (o primeiro, manifestamente sabotando o apoio da Distrital do PS, e o segundo, desviando as atenções para Bárbara Guimarães no jantar da FIL de 13 de Julho). A terceira, deriva da pobreza dos materiais de comunicação utilizados (em vez de jornadas apressadas e inconsequentes e de excesso de vedetas interessadas na sua vitória, teria sido bem mais produtivo usar convenientemente a Internet e acções de rua criativas, como canais alternativos ao carnaval mediático que se montara contra si e contra a campanha do PS). A quarta, prende-se com a falta de ligação aos actores aparentemente secundários e invisíveis da cidade (refiro-me às associações e organizações sociais e culturais de Lisboa, que poderiam, se abordadas no decurso da própria formação das ideias programáticas, ter tido uma significativa influência no resultado final da eleição). A quinta, decorre da confusão entre a necessidade de transmissão de uma visão para Lisboa (“Mudar Lisboa” soou pretencioso, teria sido preferível propor-se, realisticamente, Melhorar Lisboa) e as medidas concretas de um programa de acção (onde anunciar a travagem do lóbi da construção, ou a redução para metade do contingente automóvel que todos os dias invade a capital foram duas ingenuidades de palmatória!) Finalmente, a forma dos argumentos do candidato foi frequentemente agressiva (esquecendo-se que os portugueses, em geral, não gostam de excessos de frontalidade e preferem, quase sempre, a ironia e as estratégias indirectas da oratória), e assim, Manuel Maria Carrilho não desfez, antes reforçou, uma certa imagem negativa que os média (mas também ele próprio) foram construindo de si ao longo do tempo. Neste contexto, o não aperto de mão a Carmona Rodrigues foi, todos o perceberam, fatal ao candidato do PS.

E no entanto, Manuel Maria Carrilho, que precisa urgentemente de rever os seus protocolos de comunicação e a sua retórica, continua a ser uma referência importante para a nossa democracia e uma possibilidade real para melhorar Lisboa. Teve a coragem de expôr a pobreza confrangedora do aparelho partidário do PS (que não é pior que os outros, entenda-se). Teve a coragem, a par de João Cravinho, de denunciar a corrupção instalada em Portugal. Teve a coragem de atacar sem medo os mastins da informação e os mercenários da opinião. Tem uma visão, no essencial, ajustada e justa para o nosso país. Não será nunca o seu fraquinho pela meritocracia, ou o bom gosto, que toldarão o seu desejo manifesto de lutar por uma sociedade menos estúpida, menos corrupta e mais inteligentemente solidária. Falta-lhe apenas aceitar que o lugar da verdade é uma arena, e não uma revelação.

OAM #138 21 AGO 2006