Nicolas Poussin. Et in Arcadia est (1637-38) |
Estou no Paraíso, ou morto?
Islândia, Chipre, Grécia, e em dramas mais sofríveis, Irlanda, Espanha e Portugal, a que se foram juntando as aflições de italianos, franceses e britânicos, são peças de um dominó em metamorfose.
Este dominó chama-se ocaso da abundância capitalista.
Abundância, porque houve durante meio século, sobretudo na Europa ocidental, nos Estados Unidos da América e no Canadá, sociedades humanas muito produtivas, com elevados padrões de consumo e onde se desenvolveram e instalaram sistemas de segurança social extremamente baratos, representando uma fração exígua na poupança individual e coletiva gerada por uma produtividade económica que teve a sua origem na emergência de várias indutores historicamente excecionais (ao longo dos séculos 19 e 20), tais como a energia barata proveniente do carvão, e depois do petróleo e do gás natural, ou ainda da fissão nuclear, usada na forma de vapor motriz, eletricidade e explosão de gases sob pressão.
Esta enorme capacidade de produzir barato e em grandes quantidades (quantidades industriais) teve na energia abundante, barata e transportável, a sua condição necessária, mas não suficiente. Para que os excedentes que deram lugar à poupança e ao bem estar social pudessem ter existido foram necessários ainda duas condições essenciais: a tecnologia oriunda das primeiras sociedades de conhecimento organizado e capitalizado, e a disponibilidade colonial de matérias primas e contingentes de quase escravos obtidos pela via de um desenvolvimento económico, social, cultural e político desigual. Não podemos, pois, imaginar a extraordinária dimensão e complexidade das infraestruturas materiais e imateriais, e o bem estar do Ocidente e das suas classes médias, nem a ociosidade cultural de franjas significativas e crescentes das suas populações, e muito menos o aumento espetacular da longevidade das gentes destes paraísos que ainda hoje atraem migrações gigantescas, sem pressupormos a conjugação provavelmente irrepetível das circunstâncias descritas.
À medida que esta conjugação de recursos e interações dinâmicas se expandiu por todos os continentes, ao mesmo tempo que se produzia uma equalização tímida entre o primeiro mundo (Estados Unidos e seus aliados desenvolvidos) e os segundo (União Soviética e seus aliados) e terceiro (os países neutros e não-alinhados—em geral, subdesenvolvidos) cresceu, por um lado, a população mundial e diminuiu, por outro, o ritmo de crescimento da riqueza média individual, ao mesmo tempo que os recursos naturais foram sendo submetidos a uma pressão ecológica cada vez mais destrutiva, e aumentaram os custos totais de cada unidade de PIB produzido no planeta.
Capitalista, porque o modo como toda esta explosão produtiva ocorreu e se desenvolveu é um fruto genuíno das sociedades capitalistas nascidas e desenvolvidas na Europa ao longo dos séculos 15, 16, 17, 18, 19 e 20.
As sociedades capitalistas comerciais e a luta pela criação de instituições laicas e democráticas foram determinantes nos séculos 15, 16, 17 e 18, as sociedades comerciais e industriais empurraram os séculos 19 e 20 para a era do crescimento rápido e da modernidade urbana e internacional, finalmente as sociedades comerciais, industriais e financeiras do século 20 expandiram exponencialmente o novo modelo de sociedade afluente e cosmopolita, através de guerras e revoluções brutais. Por fim, o início do século 21 marca o pico e provável ocaso de uma era de crescimento rápido inflacionista, e o início de uma nova era de crescimento moderado: deflação, queda dos rendimentos médios per capita, e absoluta necessidade de um renascimento científico e cultural suficientemente forte para nos convencer de que a felicidade não está no consumo conspícuo, nem no desperdício, nem muito menos na destruição dos ecossistemas, mas numa nova aventura por vir.
O fim do socialismo como o conhecemos
Os movimentos socialistas, nomeadamente sob influência do marxismo, serviram sobretudo o desejo do proletariado industrial e dos povos mais atrasados e submetidos a formas de exploração e despotismo pré-modernos, de se aproximarem da abundância e da liberdade inerentes ao capitalismo criativo. O maniqueísmo e messianismo judaicos de que vinham impregnados, nomeadamente sob a forma da teleologia hegeliano-marxista, foi e continua a ser para muitos um modo de fé travestido de pseudo cientismo dialético. Daí, aliás, a sua extrema fraqueza pragmática e incapacidade crescente de olhar para a realidade sem o véu da fantasia, da hipocrisia e do oportunismo.
A falência das esquerdas tem pois uma origem que não é apenas conjuntural à crise das democracias do bem-estar, nem sequer apenas um fruto podre do desaparecimento do proletariado industrial entretanto substituído por máquinas inteligentes, ou da emigração do trabalho produtivo para as antigas colónias dos antigos impérios europeus e americano. A falência das burocracias sociais-democratas e socialistas, a falência dos cadáveres adiados do estalinismo e das novas eflorescências geneticamente modificadas da esquerda radical, são uma espécie de resto da História em movimento. Daí o estilo populista e de farsa que as suas encenações cada vez mais exibem.
Os novos revolucionários são, como sempre foram, terroristas. A sua emergência explosiva e suicida no início deste século denota uma realidade, só por distração, inesperada, que precisa de ser estudada e entendida. O desespero que indivíduos, tribos do deserto e urbanas, sociedades inteiras, amanhã países, transportam sob o manto de uma ressurreição religiosa é real e é profundo. Não percamos tempo com os motards do Syriza!
Propagar, pela via da demagogia que reduz e vitupera, anamorfoses ilusionistas da complexidade do momento que vivemos é um erro que poderemos pagar caro. O abrandamento do crescimento mundial é um fenómeno complexo, mas inexorável. Acontece numa fase da humanidade em que as desigualdades económicas entre pessoas, cidades, países e regiões estratégicas continuam muito acentuadas, acontece num momento em que a aproximação dos rendimentos entre os continentes, e sobretudo entre os países mais populosos do planeta e o Ocidente rico, propiciado pelo desenvolvimento rápido dos chamados países emergentes, começa a abrandar. Se não forem a Europa, os Estados Unidos, a Rússia, a China, o Canadá e a Austrália a promoverem novas estratégias partilhadas de equidade económica, social e cultural, quem será?
Houve uma fuga em frente quando nos deparámos nos idos anos 70 do século passado com os limites do crescimento. Essa fuga acabaria por traduzir-se num endividamento astronómico dos governos, das empresas e das pessoas, sobretudo no Ocidente desenvolvido. À queda permanente dos rendimentos do trabalho, mas também do capital, respondeu-se com derivados especulativos sobre o futuro, transformando o imobiliário, as obras públicas injustificadas e insustentáveis, a hipertrofia dos governos e das burocracias, o automóvel, a educação, e a especulação com taxas de juro e moedas, em fichas viciadas dum casino global. As bolhas incharam, são muitas e gigantescas, e estão a rebentar desde 2007.
É por isso que as imagens do sofrimento e da aflição das pessoas, pungentes nos casos das crianças e dos idosos, seja em Nova Iorque, Atenas, no Cairo, Damasco, Lampedusa, ou amanhã em Lisboa, devem servir-nos para pensar e não atiçar os demónios do maniqueísmo partidário e religioso.
Os governos gregos fizeram pouco até hoje para emendar o seu estilo de vida insustentável, uma vez percebido que o mundo mudou. Aos eurocratas e aos burocratas do FMI, por sua vez, faltou melhor comunicação com as populações e com as elites gregas. A senhora Merkel, por fim, talvez tenha razão, mas enquanto não cuidar dos piratas do Deutsche Bank ninguém lhe dará ouvidos!
A bancarrota grega não chega para abalar os mercados de capitais de forma decisiva. Este foi o erro de cálculo de Varoufakis, Tsipras e Putin, e que custou aos pobres pensionistas e desempregados gregos um agravamento brutal do seu dia a dia.
A bancarrota grega vai marcar uma viragem na Europa, e provavelmente no mundo ocidental. Vamos todos perceber até ao fim deste ano que o mundo está mesmo a mudar, e que precisamos de o reinventar.