domingo, abril 15, 2007

Corrida nuclear


União Médio Oriental?

"As regras mudaram", disse recentemente o Rei Abdullah II ao jornal israelita Haaretz. "Vamos todos para programas nucleares."

Uma nova corrida nuclear teve início há já algum tempo entre os grandes. A Rússia de Putin, ao mesmo tempo que conseguiu travar a desestabilização provocada nas suas fronteiras e proximidades pelas chamadas revoluções "coloridas", ou "floridas" (Jugoslávia, 2000; Geórgia, 2003; Ucrânia, 2004; Líbano, 2005; Kirgistão, 2005), anunciou em 1998 o seu novo escudo nuclear defensivo intercontinental baseado nos mísseis Topol-M. Em 2003 é tornado público que os Estados Unidos avançaram com planos para a criação de uma nova geração de armas nucleares, incluindo as chamadas "mini nukes", "bunker busters" e bombas de neutrões (especialmente concebidas para operações de guerra assimétrica "contra o terrorismo", e que se prevê venha a ser testada em grande escala num eventual ataque surpresa ao Irão.) Há precisamente um mês atrás, Tony Blair obteve o apoio do Partido Conservador para a modernização dos submarinos nucleares ingleses que transportam os sistemas de mísseis balísticos Trident. No passado dia 12 deste mês de Abril a India testou com sucesso o seu novo míssil de longo alcance Agni-III. Incompreensivelmente, como se nada disto estivesse a ocorrer, a América de Bush escandaliza-se com o programa nuclear iraniano, o qual, como é sabido, está pelo menos a uma década de conseguir combustível nuclear bélico e sistemas de armas nucleares próprios.

O Irão, cercado por bases militares e esquadras aeronavais dos EUA e da NATO, além de ter apontado sobre o seu território armas nucleares israelitas, defende, compreensivelmente, o seu programa nuclear para fins energéticos, o qual obviamente implica, embora a prazo, um inegável potencial militar. Por sua vez, o Conselho de Segurança da ONU, unanimemente, acabou por condenar a atitude do Irão e propõe sanções. Porquê? Por se temer o Irão? Não creio. Por se temer que um ataque nuclear limitado ao Irão, por parte dos EUA, possa desencadear uma disputa global feroz em volta da principal fonte energética do planeta? É bem provável, sobretudo numa fase em que nem a China, nem a Rússia, se encontram ainda em posição confortável para um braço de ferro nuclear com a América, preferindo, por isso, esperar pela saída de Bush da Casa Branca.

Surpreendentemente, o encontro entre Putin e Abullah II acaba de introduzir uma nova dimensão ao problema. Aparentemente, os árabes perceberam que o melhor para a estabilidade regional será entrar no jogo do equilíbrio nuclear (1). Por um lado, porque o regresso em força da energia nuclear para fins pacíficos é uma perspectiva inevitável face ao esgotamento anunciado das principais energias fósseis (petróleo e gás natural), não se vendo como é que os países árabes iriam ficar fora dela, sabendo-se, como eles sabem melhor que ninguém, que o problema também lhes vai bater à porta. Depois, porque dispondo-se de equipamento e tecnologia nuclear pacífica, é praticamente impossível impedir o seu uso derivativo para fins militares. Por fim, se é verdade, e todos sabem que é, que a corrida armamentista nuclear está em pleno curso entre as grandes e médias potências, que argumento de ordem estratégica ou ética pode impedir o Médio Oriente de se apetrechar com tecnologias energéticas alternativas às energias fósseis, ou mesmo, de desenvolver sistemas de dissuasão nuclear?

Os ricos países árabes tem à sua frente uma janela de oportunidade de 10-20 anos, caracterizada por uma excepcional prosperiade económica, devida obviamente à subida contínua dos preços do ouro negro. Seriam burros se, uma vez mais, fossem incapazes de estabelecer entre si uma real comunidade de interesses, a partir da qual garantissem uma efectiva e duradoura paz na região, ao mesmo tempo que seriam capazes de estabelecer uma plataforma comercial equilibrada com o resto do mundo, que deles depende, pelo menos no curto e médio prazo, para a obtenção de recursos energéticos essenciais. Se o fizerem, conseguirão certamente esvaziar tanto o poder anárquico e obscuro das frentes terroristas, bem como as provocações que em nome do fundamentalismo islâmico têm vindo a ser montadas sabe-se lá por quem...

Portugal, país atlântico e com responsabilidades atlânticas inalienáveis, é e sempre foi um país europeu, ao mesmo tempo que conhece bem a África e a China, nutrindo ainda uma longa e desinteressada amizade pelos países do Médio Oriente. Não deve, por isso, pôr-se em bicos dos pés, pendendo para qualquer dos lados do problema. A sua missão histórica, se é que tem alguma a cumprir na perigosíssima charneira civilizacional em que a humanidade se encontra, é a de assumir a sua vocação diplomática, recorrendo a toda a sua experiência de diálogo intercultural, sem outro interesse que o de abrir e manter abertas vias de diálogo e cooperação permanente, mesmo em eventuais cenários de guerra generalizada que venham a ocorrer. Neste sentido, teremos que saber definir desde já uma doutrina diplomática com razoável espaço de manobra relativamente ao que venha a ser no futuro a diplomacia europeia comum.


Notas
1 - A formação de um eixo árabo-sunita com vértice em Rabat, apoiado pelos Estadods Unidos e por Israel, embora sirva o propósito de conter as ambições regionais do Irão, sobretudo no quadro de uma desagregação do Iraque, a mais longo prazo pode bem servir os interesses dos árabes no seu conjunto.


OAM #193 15 ABR 07

4 comentários:

Anónimo disse...

Parece-me haver uma certa confusão no que aqui está escrito sobre produção de energia nuclear e capacidade nuclear bélica.
As bombas nucleares de fissão só podem ser feitas com dois materiais: urânio, com uma elevada percentagem do isótopo U235, e plutónio, pouco contaminado com o isótopo Pu240. As centrais nucleares para produção de energia usam, em geral, urânio com uma pequena percentagem de U235, embora haja combustível misto, com uma certa percentagem de plutónio obtido num ciclo de produção anterior. Com o processo de produção de energia, parte do isótopo U238 transmuta-se em plutónio Pu239. Este pode ser separado quimicamente e utilizado, justamente, para fazer bombas. Enriquecer urânio no isótopo U235 para fins bélicos é muito mais complicado do que para produzir combustível nuclear. O nível de enriquecimento não tem nada a ver. Se alguma comunidade internacional parece estar descansada porque o Irão não parece ter, nos tempos mais próximos, capacidade para produzir urânio altamente enriquecido, está a enganar-se a si própria. É muito mais simples a via da produção de plutónio em centrais nucleares a partir de urânio fracamente enriquecido! Supõe-se ser este o caminho que vários países seguiram (Israel, Índia, Paquistão, Coreia do Norte…).
Ter centrais nucleares para produção de energia não é sinónimo de ter capacidade nuclear bélica. Se a estas centrais se somar a produção de combustível nuclear e a capacidade de extracção do plutónio do combustível irradiado, a situação é outra. Parece ser este o caminho que o Irão quer seguir. Não parece ser este, por exemplo, o caminho que a Finlândia segue. A razão é óbvia: a Finlândia não está interessada em produzir bombas.
A questão ‘se alguns têm, porque não os outros?’ é legítima. Responder que não, com base no Tratado de não Proliferação de Armas Nucleares, também, com as desigualdades que tal implica. Não haja dúvidas de que, quanto mais países tiverem ‘a bomba’, mais provável é o seu uso, e não necessariamente por esses países, directamente. Ter um stock de bombas atómicas e os meios para as lançar permite a chantagem nuclear (veja-se a Coreia do Norte) e a dissuasão, que também se pode entender como um seguro para aventuras pouco recomendáveis. Não teria o Sr. Milosevic completado calmamente a limpeza étnica do Kosovo se tivesse umas bombitas no seu arsenal? Quem se meteria com ele? Não teria o Sr. Hussein mantido a ocupação do Koweit (e sabe-se lá que mais) se estivesse nas mesmas condições?
Não acredito que a estratégia dos EUA seja a proliferação. Não é coerente com a sua política com o Japão, Coreia do Sul e Taiwan, por exemplo. Agora que os franceses ou os russos estejam dispostos a vender a sua tecnologia, acho plausível. Não seria a primeira nem a segunda vez…
Uma última nota, com algum humor – será que a aparente defesa do nuclear civil, a propósito do Irão e contra o Sr. Bush, é extensível a este cantinho à beira-mar plantado?
Ou só faz sentido para os adversários óbvios desse tal Sr. Bush?

Anónimo disse...

Parece-me haver uma certa confusão no que aqui está escrito sobre produção de energia nuclear e capacidade nuclear bélica.
As bombas nucleares de fissão só podem ser feitas com dois materiais: urânio, com uma elevada percentagem do isótopo U235, e plutónio, pouco contaminado com o isótopo Pu240. As centrais nucleares para produção de energia usam, em geral, urânio com uma pequena percentagem de U235, embora haja combustível misto, com uma certa percentagem de plutónio obtido num ciclo de produção anterior. Com o processo de produção de energia, parte do isótopo U238 transmuta-se em plutónio Pu239. Este pode ser separado quimicamente e utilizado, justamente, para fazer bombas. Enriquecer urânio no isótopo U235 para fins bélicos é muito mais complicado do que para produzir combustível nuclear. O nível de enriquecimento não tem nada a ver. Se alguma comunidade internacional parece estar descansada porque o Irão não parece ter, nos tempos mais próximos, capacidade para produzir urânio altamente enriquecido, está a enganar-se a si própria. É muito mais simples a via da produção de plutónio em centrais nucleares a partir de urânio fracamente enriquecido! Supõe-se ser este o caminho que vários países seguiram (Israel, Índia, Paquistão, Coreia do Norte…).
Ter centrais nucleares para produção de energia não é sinónimo de ter capacidade nuclear bélica. Se a estas centrais se somar a produção de combustível nuclear e a capacidade de extracção do plutónio do combustível irradiado, a situação é outra. Parece ser este o caminho que o Irão quer seguir. Não parece ser este, por exemplo, o caminho que a Finlândia segue. A razão é óbvia: a Finlândia não está interessada em produzir bombas.
A questão ‘se alguns têm, porque não os outros?’ é legítima. Responder que não, com base no Tratado de não Proliferação de Armas Nucleares, também, com as desigualdades que tal implica. Não haja dúvidas de que, quanto mais países tiverem ‘a bomba’, mais provável é o seu uso, e não necessariamente por esses países, directamente. Ter um stock de bombas atómicas e os meios para as lançar permite a chantagem nuclear (veja-se a Coreia do Norte) e a dissuasão, que também se pode entender como um seguro para aventuras pouco recomendáveis. Não teria o Sr. Milosevic completado calmamente a limpeza étnica do Kosovo se tivesse umas bombitas no seu arsenal? Quem se meteria com ele? Não teria o Sr. Hussein mantido a ocupação do Koweit (e sabe-se lá que mais) se estivesse nas mesmas condições?
Não acredito que a estratégia dos EUA seja a proliferação. Não é coerente com a sua política com o Japão, Coreia do Sul e Taiwan, por exemplo. Agora que os franceses ou os russos estejam dispostos a vender a sua tecnologia, acho plausível. Não seria a primeira nem a segunda vez…
Uma última nota, com algum humor – será que a aparente defesa do nuclear civil, a propósito do Irão e contra o Sr. Bush, é extensível a este cantinho à beira-mar plantado?
Ou só faz sentido para os adversários óbvios desse tal Sr. Bush?

António Maria disse...

Não creio que haja confusão...

O que eu digo é que, a partir do momento que se implemente um programa de energia nuclear, estão criadas as condições para desenvolver, se houver vontade, programas militares baseados no uso dessa mesma energia (a partir do processamento adequado dos materiais radioactivos disponíveis).

Por outro lado, o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares foi sendo hipocritamente deitado ao lixo pelos países com arsenais nucleares bélicos, com particular destaque para os EUA, Rússia, Israel, Paquistão e India. Neste sentido, talvez seja melhor abandonar a ficção deste tratado e começar a pensar rapidamente noutro tipo de regras, desenhadas por forma a mitigar o risco de um holocausto atómico acidental, seja por erros de avaliação entre grandes potências, seja por efeito de uma escalada imprevisível e incontrolável.

Não estou seguro que se possa evitar o surgimento de novos arsenais nucleares bélicos nos países emergentes (China, Brasil, India,...) e ainda naqueles que centram sobre si as atenções de um mundo cada vez mais desesperado por energia barata, ou seja, o Médio Oriente e alguns países africanos (Irão, Arábia Saudita, Angola, África do Sul, Nigéria...) Se assim for, temos que conseguir desinflaccionar a retórica americana sobre este assunto, e discuti-lo seriamente.

O recurso à energia nuclear de fissão, no decorrer dos próximos 50 anos, e a esperança de virmos a conseguir controlar a fusão nuclear no fim deste século, são cenários que merecem discussão. Tanto quanto me é dado saber, as reservas de urânio também são limitadas, mas continuam a ser abundantes para as necessidades actuais e de médio prazo no que se refere à produção energética. Isto não significa, porém, que o problema tenha muito sentido em Portugal -- seja porque temos outras alternativas (e a melhor de todas elas é passarmos a consumir mais racionalmente), seja porque os riscos inerentes a este tipo de tecnologia num país com a dimensão do nosso, não são compensados pelas vantagens que daí pudessemos tirar.

A gestão da nossa diferença passa, na minha opinão, por fazer deste país um santuário ecológico sustentável. Só que para tal teremos que exportar primeiro para fora das nossas fronteiras a corrupção endémica que ameaça, pura e simplesmente, a viabilidade do país.

Anónimo disse...

Continuo a achar que a proliferação é má e que o tratado que existe, com todos os defeitos que possa ter, é melhor do que tratado nenhum. A situação que vivemos é precária e pode degenerar com facilidade numa corrida ao nuclear militar, mais em número de países do que em número de bombas, que vão vejo quem possa beneficiar. Se a bomba chega aos exportadores de extremismo e expansionismo, o mundo fica pior do que o que está.
Continuo a achar que o nuclear civil não é sinónimo de nuclear militar. A expressão que usa - se houver vontade – é excelente e engloba o essencial. É a manifestação dessa vontade, pelo desenvolvimento das tecnologias complementares necessárias, que me preocupa. E deve preocupar muita gente.
Não estou convencido do seu argumento contra a energia nuclear em Portugal -dimensão do país. Se dividir o tamanho (territorial, PIB, população) de alguns países pelo número de centrais nucleares que possuem, chega frequentemente a valores mais baixos do que os nossos. O interesse em ter energia barata e menos dependente de terceiros é evidente. Não é anulado pela existência de energias alternativas (caríssimas) nem pelo uso mais racional de energia (apenas limita o problema).
Dito isto, acho que se deve continuar a desenvolver a tecnologia de energias alternativas e não estou convencido de que a energia nuclear seja pertinente em Portugal. A discussão, de preferência séria, sim!