quinta-feira, dezembro 30, 2010

Europeus, coragem!

Dólar e libra perdem guerra contra o euro
Agora é preciso limpar os cacos, resistir ao assalto fiscal e à destruição de serviços públicos essenciais, bem como controlar os bancos e colocar as burocracias partidárias na ordem



"We propose the creation of a harmonious economic community stretching from Lisbon to Vladivostok." — Vladimir Putin, ao Süddeutsche Zeitung (ler artigo no Spiegel Online de 25-11-2010)

A resposta à ofensiva das moedas falidas do eixo anglo-saxónico (EUA-Inglaterra) contra o euro, na tentativa desesperada de impedir o abandono crescente do dólar como moeda de reserva mundial, parece estar em curso de forma rápida e eficaz, embora os radares da imprensa convencional captem com dificuldade e lamentável atraso esta realidade subtil mas de importância decisiva para os deslocamentos em curso das placas tectónicas do poder mundial.

Por um lado, a SCO (Shanghai Cooperation Organization) tornou-se, de 2001 para cá (lembram-se de 2001?), numa poderosa aliança de estados euro-asiáticos. Por outro, a China começou a usar a sua moeda nas trocas internacionais com países como a Argentina, e acaba de acordar com a Rússia o abandono progressivo da divisa americana nas transacções entre estas duas potências económicas e nucleares mundiais. Esta tendência, cujo anúncio prematuro por Saddam Hussein lhe viria a custar a vida e a segunda grande invasão do Iraque pelos Estados Unidos e Inglaterra, foi retomada em Novembro passado por uma ofensiva diplomática sem precedentes de Vladimir Putin, tendo por alvo directo a Alemanha de Angela Merkel, mas visando obviamente um cenário muito mais amplo e particularmente atractivo para a União Europeia no momento em que esta enfrenta um ataque traiçoeiro e sem precedentes de Wall Street e Londres contra a estabilidade e integridade do euro. Mas mais: os emergentes BRIC, actualmente presididos pela China, acabam de incorporar formalmente no seu seio a África do Sul, transformando-se em BRICS: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (South Africa), na mesma semana em que sete países do Leste Europeu (1) anunciam a sua vontade de entrar na Eurolândia, apesar da crise (ou por causa dela...) Por fim, como que a provar a sabedoria de quem foge da nota verde, os dados mais recentes da economia dos USA, nomeadamente sobre a queda imparável dos preços do imobiliário, são de deixar os cabelos em pé (2).

Mapa da área de influência da nova aliança estratégica promovida pela China

As economias do Ocidente europeu e norte-americano estão sobre endividadas, quer no que se refere às respectivas dívidas externas, quer no que respeita às respectivas dívidas públicas. Mas o mesmo é ainda mais verdade para o Japão —onde a deflação continua a fazer vítimas, nomeadamente entre os pensionistas (3)—, não deixando de ser verdade também para muitos outros países: Austrália, Israel, Sudão, Líbano, etc. Ou seja, teremos que procurar a causa deste endividamento global em algo de mais fundamental do que as divergências —aliás praticamente inexistentes— entre sociais-democratas e neoliberais. Todos têm sido neo-keynesianos à sua maneira desde a crise petrolífera de 1973 —uns empolando mais as burocracias de Estado, partidárias e municipais, outros transformando as economias em gigantescos jogos de Monopólio, onde o dinheiro é grátis e não custa praticamente nada a fabricar (pois aflui aos mercados em formatos puramente virtuais por actos de magia electrónica e administrativa!) Em ambos os casos a receita é, por assim dizer, keynesiana: trata-se de inventar trabalho e consumo onde não existe!

Há dois factos até agora não refutados que poderão fazer alguma luz sobre a magnitude e sincronia da actual crise sistémica do Capitalismo:
  • a produção de petróleo per capita tem vindo a decair consistentemente desde 1970, 
  • e a produção de cereais per capita começou igualmente a decair de forma aparentemente irreversível desde 1980.

Outro ponto a ter em conta é o fim objectivo do colonialismo e do imperialismo ocidentais, que embora tenha começado a desaparecer lentamente no longínquo ano de 1823, por imposição da célebre Doutrina Monroe, que retirou progressivamente o "novo mundo" do domínio colonial europeu, acelerou extraordinariamente com os processos de descolonização na Ásia e em África depois da Segunda Guerra Mundial. A verdade é que este processo de implosão do imperialismo ultramarino iniciado pela Europa em 1415 (com a conquista de Ceuta por portugueses, galegos, biscainhos e ingleses), só agora está a chegar ao fim. Podemos ler estes sinais nas sucessivas derrotas da Europa e da América na Indochina, em África, e mais recentemente no Iraque e no Afeganistão. Podemos entender o alcance destes sinais desde 1960, quando os principais países produtores de petróleo formaram a OPEP, excluindo expressamente do seu seio grandes produtores com eram e ainda são os Estados Unidos e o Canadá. Podemos, enfim, ter a certeza de que algo de fundamental mudou, quando os países emergentes dos BRICS começaram a juntar os trapos, conscientes da sua importância global enquanto detentores de vastos territórios ricos em recursos naturais e humanos.

De um lado, temos a velha Europa, a parte rica da América do Norte (EUA e Canadá), e o Japão, industrializados, urbanizados, e devoradores insaciáveis de recursos. Do outro, uma imensa maioria populacional pobre, pouco industrializada, pouco e mal urbanizada, e com acesso limitado às matérias-primas, fontes de energia e bens de consumo, vivendo paradoxalmente em territórios imensos, onde se encontra boa parte dos recursos vitais para a sobrevivência do modelo de desenvolvimento e crescimento criado e desenvolvido pelas antigas potências imperiais: energia, minérios, recursos alimentares e mão de obra barata.

Era uma questão de tempo até que o mapa da divisão internacional do trabalho e do poder mudasse de geografia e de mãos. E é o que vem acontecendo de forma clara desde 1971, ano em que o presidente americano Richard Nixon descolou a divisa americana do ouro, pondo-a a flutuar num reino de arbitrariedade cambial, cujo fim negro se aproxima agora, perigosamente, do fim. O ataque indecente e traiçoeiro dos piratas de Wall Street e da City londrina contra o euro, mais não tem sido do que um último e lamentável episódio demonstrativo do que pode fazer um sistema fiduciário técnica e moralmente falido, entregue à ganância e ao crime, quando estrebucha.

China, Rússia e boa parte dos países árabes estão fartos do dólar e dos americanos. Decidiram por isso apostar na moeda única europeia. É pois provável que não deixem cair o Euro, apesar de todas as pressões e do preço que tiverem que pagar por tal decisão estratégica. Os leilões de dívida soberana que ocorrerão na Europa ao longo de todo o ano de 2011 vão ser o verdadeiro teste de esforço à nova ordem económica e financeira mundial prestes nascer.

Curiosamente, Putin, líder de facto de um imenso país despovoado e a caminho de uma perigosa depressão demográfica, já terá percebido que a China é um aliado de circunstância. Tornar pois possível a grande Europa de Lisboa a Vladivostoque é agora o grande desígnio "secreto" da Rússia (4), que os portugueses deverão acarinhar com o mesmo entusiasmo que deverão colocar na rápida entrada da Turquia numa Eurolândia que tem tudo a ganhar com a sua abertura a Leste. Uma nova Europa com mil milhões de habitantes e uma longa história cultural poderá fazer a diferença que falta na recomposição planetária dos equilíbrios entre as grandes regiões humanizadas. E no fim, Portugal até poderá deixar de estar na periferia —se souber transformar-se numa pequena mas importante potência diplomática mundial. Bom ano, Portugueses!

REFERÊNCIAS
  • A V.O. de Mark Blyth on Austerity, encontra-se acessível na Videoteca deste blogue, ou no portal Vimeo.

NOTAS
  1.  "Sept pays candidats pour rejoindre le club. Par Fabrice Nodé-Langlois". Le Figaro (27/12/2010)
  2. "Investors Attempting to Dump Bonds Push Bid Index Near Record: Muni Credit", By Brendan A. McGrail, Bloomberg, Dec 27, 2010.
    ROBERT SHILLER: "If House Prices Keep Falling This Fast, The Economy Is Screwed", Business Insider, Dec 29, 2010.
  3. Japan to cut pension benefits amid deflation. Japan Today, Tuesday 21st Dec, 08:18 AM JST
  4. Sobre isto mesmo escrevemos, a pretexto da cimeira Europa-Rússia celebrada durante a presidência portuguesa da UE em Lisboa, em Outubro de 2007, o seguinte:
    A cimeira Europa-Rússia que hoje tem lugar em Portugal, no âmbito da presidência portuguesa da União Europeia, na conjuntura explosiva que o mundo está a atravessar, tem uma importância crucial para o futuro imediato do próprio projecto europeu. Ou a Europa descola diplomaticamente da América e defende os seus interesses regionais de forma inteligente e clara, ou permanece atrelada às manobras inglesas (e agora também do garnisé francês), deixando os proto-fascistas da Casa Branca conduzirem o planeta para uma III Guerra Mundial. Mesmo que limitada, mesmo que não alastre imediatamente a todo o planeta, uma guerra de mini-nukes (contra o Irão, por exemplo) levará necessariamente a um novo Tratado de Tordesilhas, desta vez entre os EUA e a Rússia-China, por cima dos escombros materiais e ideológicos de uma Europa decapitada de qualquer protagonismo nos próximos duzentos anos. O contrário desta possibilidade passa pela existência de uma terceira posição estratégica independente, protagonizada pela Europa, em nome da racionalidade, da distensão e da cooperação mundial. Não é assim tão difícil. — in "Rússia, Vladimir Putin, um novo príncipe" (O António Maria, 25-10-2007.)

    Última actualização: 30-12-2010 12:02

Sem comentários: