terça-feira, fevereiro 20, 2018

Depois desta crise—I


Evitar a armadilha populista do pessimismo


E se, como defende a economista Carlota Perez, a próxima era de crescimento (que será sustentável, ou não será) estiver mesmo ao virar da esquina? O ponto de vista desta distinta professora venezuelana-inglesa merece seguramente a atenção daqueles que procuram ver para lá do buraco negro criado pela implosão da era petrolífera, e que, no campo cultural, tentam imaginar as alternativas necessárias ao que Brett Bloom chama petro-subjetividade.

 

Una visión de futuro para América Latina: Carlota Pérez at TEDxCiudadDelSaber

sábado, fevereiro 17, 2018

Capitalismo indígena


O Bloco Central é uma espécie de ecologia encontrada para a convivência entre a burocracia e a sociedade civil. Quanto ao capitalismo indígena, percebemos hoje claramente que não passa de uma espécie em vias de extinção.


A alternância entre o PSD e o PS há muito que não depende das criaturas que em cada momento protagonizam estes dois partidos. O rotativismo indígena é a ecologia do regime que temos, e move-se em sintonia com os ciclos económicos, as recessões, e sobretudo os preços do petróleo (1), do dólar e do dinheiro. Ao fim de três pré-bancarrotas, Portugal depende, antes de mais, dos seus credores: BCE, FMI, UE, dos especuladores financeiros, e ainda de quem tem vindo a comprar os mais valiosos ativos do país: China, Angola e Espanha.

O facto de a Fundação Calouste Gulbenkian ter iniciado a venda de 100% da Partex aos chineses da CEFC (que em dezembro passado compraram o controlo da companhia de seguros da Montepio Associação Mutualista), preparando-se assim para alienar a pedra angular sobre a qual assentou a criação da enorme fortuna do fundador e a prosperidade de uma fundação entretanto tomada de assalto pela voragem partidária local, revela até onde os figurões que temos elegido para dirigir o país têm dado tão má conta do recado.

Quando falam de crescimento mentem com todos os dentes que têm.

REN propõe corte de 30% no investimento na rede elétrica 
Na sua proposta, a REN assume que a procura de eletricidade em Portugal ao longo da próxima década terá um crescimento médio anual de 0,25%. No anterior plano, a gestora da rede elétrica projetava um crescimento médio anual de 0,91%—Expresso, 15.02.2018.
Esta é a verdadeira dimensão, objetiva, do crescimento real do país. O resto é propaganda populista e uma caminhada de zombies para sítio nenhum. Consumimos cada vez menos eletricidade, ou seja, mal crescemos, mas os lucros da EDP continuam em alta, nomeadamente à custa das rendas excessivas denunciadas pela Troika, mas que nem o PCP contesta! Não admira, pois, que a chinesa que controla a REN decida cortar 30% no investimento.

A indigência a que chegámos é de tal ordem e gravidade, que é bem possível vermos o PCP e o Bloco transformarem-se numa espécie de PEV bicéfalo do PS. Se tal vier a ocorrer, só uma renovação radical na direita permitirá o regresso à alternância democrática e, portanto, o regresso do centro-direita ao poder. Rui Rio não é a pessoa certa para esta metamorfose. Assunção Cristas é.

NOTAS

  1. Publiquei este gráfico anotado por mim há já alguns meses. Mas vale a pena recordá-lo.

quarta-feira, fevereiro 14, 2018

E se for mesmo uma revolução?

Mina de bitcoins

¡Bitcoin o Muerte!


O pós capitalismo poderá chegar mais cedo do que toda a esquerda crê, e não necessariamente pelas vias apontadas pelo Marx do Manifesto Comunista, nem muito menos como resultado das burocracias intelectuais, sindicais e partidárias, ou dos ditadores populistas que lhe sucederam reclamando a sua herança teórico-política. O pós capitalismo está neste momento a ser testado num tubo de ensaio com uma escala planetária, e que inclui parte da Internet, comunicação, memória e responsabilidade descentralizadas, e criptografia. Num ponto, porém, o Blockchain (de que o BitTorrent e o Bitcoin são precursores) concorda com Karl Marx: para acabar com o capitalismo predador e a especulação desenfreada vai ser necessário acabar com os bancos e com os governos e sistemas de poder corruptos hoje dominantes no planeta. Curiosamente, é aqui que a esquerda e a direita deixam de divergir.



Referências

Bitcoin (Wikipedia)

Bitcoin.org

Bitcoin.com

BitcoinCash

Bit2Me

Einsteinium

Ethereum

Steem

Steemit


O século americano

Destroços do USS Maine, Cuba, 1898.


O século americano, que poderíamos situar entre 1918 e 2018, significou a passagem de uma era industrial baseada no carvão e na máquina a vapor, iniciada entre 1760 e 1780, para uma revolução industrial baseada, não apenas no carvão e na eletricidade, mas cada vez mais no uso do petróleo e do crédito especulativo. O seu início coincide com duas tragédias europeias: a chamada Grande Guerra, e a Revolução Russa. O Tratado de Versalhes, que decidiu as reparações de guerra devidas pela Alemanha aos países que a derrotaram, e que os americanos nunca chegariam a subscrever, criou o veículo diplomático da rápida emergência da nova potência mundial e principal credor comercial e financeiro da Europa: os Estados Unidos da América.

O garrote que Ingleses e franceses apertaram para além do razoável, mesmo contra a opinião do presidente americano Woodrow Wilson, seria o principal responsável por uma nova e terrível carnificina na Europa: a Segunda Guerra Mundial. Depois de 1945, Washington e Nova Iorque tornaram-se as capitais de um grande império. Bombardeiros, nomeadamente nucleares, e uma imensa armada, flocos de milho, a 'dolarização’ do petróleo, e a arte moderna tornaram-se então sinais evidentes de uma nova potência mundial dominante.

Quando os ingleses invadiram o Iraque (otomano) em 1914, na denominada Campanha da Mesopotâmia (1914-1918), já sabiam que o petróleo abriria uma nova era industrial. Acontece, porém, que depois de 1918, e ainda mais depois de 1945, o petróleo viria a estar para a rápida expansão americana, tal como o carvão estivera para a consolidação do império britânico no século XIX até à rendição da guarda que resultaria do pesadíssimo custo material, financeiro e humano da Grande Guerra.

Entretanto, o petróleo barato, depois de um século de uso intensivo, tal como previra M. King Hubbert em 1956, chegaria ao fim. Tornou-se cada vez mais dispendiosa a sua prospecção e extração, descobrindo-se cada vez menos jazidas de grandes dimensões em cada década depois de 1970, ano em que os Estados Unidos chegaram ao pico da sua produção petrolífera: 9, 637 milhões de barris/dia. O gás e o petróleo de xisto são uma alternativa cara e de curta duração, cujos preços estão inexoravelmente dependentes do valor tendencialmente elevado de um bem precioso, cada vez raro à face da Terra, e a que foi dado um esclarecedor epíteto: “ouro negro”. A corrida ao shale oil só começou, sintomaticamente, em 2011, ou seja, três anos depois dos preços do crude terem atingido a sua cotação mais elevada de sempre: 147,27 dólares por barril, em 11 de julho de 2008.

Sem energia abundante e economicamente acessível não há grande crescimento económico, ainda que durante algum tempo seja possível mitigar o problema explorando mais intensamente a divisão internacional do trabalho, diminuindo os rendimentos laborais médios nos países desenvolvidos, incrementando as tecnologias que substituem o trabalho humano ou o tornam mais eficiente, adotando políticas monetárias e fiscais perigosas, aumentando as dívidas públicas e privadas e, finalmente, forjando estatísticas celestiais. No entanto, haverá um momento em que uma crise energética, ou de transição energética, semelhante à que atingiu a Europa na primeira metade do século XX, mas de sinal contrário, recairá não apenas sobre a economia americana, mas também sobre a economia mundial. Esse momento talvez já tenha chegado.

Depois do Brexit os Estados Unidos da América voltariam a ser a maior economia mundial, com um PIB maior do que o da União Europeia, se a China não tivesse já conseguido, em 2017, ou em 2018, ultrapassar as três maiores economias do planeta: União Europeia, Estados Unidos e Japão, ainda que permanecendo muito longe de qualquer destas em rendimento per capita.

O século americano chegou, pois, ao fim, ainda que o declínio de uma mega-potência possa durar décadas, ou até séculos, sem que tal perda de influência e isolamento relativo signifique necessariamente uma implosão. Veja-se, por exemplo, o caso da China, que, seiscentos anos depois (1415-2015) de ter construído uma segunda grande muralha à sua volta, virando as costas ao mar, regressa por fim, depois de um interregno de transição e acumulação forçada (sob a bandeira do comunismo marxista-leninista-estalinista), mas sobretudo depois de ter descoberto em 1959 enormes reservas de petróleo no seu território (Daqing), ao comércio mundial, aceitando praticamente todas as suas regras, virtudes e defeitos, para assim melhorar as suas oportunidades de êxito.

Nós continuamos, e continuaremos por muitos anos a viver sob a influência impressionante da cultura americana. Aquilo que ainda hoje nos parece uma permanente revolução cultural e tecnológica resulta de uma matriz genética dificilmente repetível: uma imensa terra quase virgem e rica penetrada por uma multitudinária ânsia de liberdade, igualdade e utopia, a que não faltaram matérias primas, algumas delas preciosas, nem energia abundante e barata.

O que é verdade para os Estados Unidos da América é parcialmente verdade para o resto do continente americano, do Canadá aos Andes, passando pelo México, Argentina ou Brasil. Em todos estes novos países nascidos da primeira metamorfose pós-colonial da era moderna existem as cicatrizes de uma espécie de desconstrução antropológica e cultural permanente.

O experimentalismo social a que nesta parte do mundo assistimos não é, porém, uma forma de radicalismo contra o conservadorismo e a inércia, nem uma qualquer forma de perversão. É antes uma espécie de evolução humana historicamente acelerada pelo movimento browniano de diferentes tribos humanas muito distanciadas no espaço-temp que subitamente se encontraram. Ao contrário do resto do planeta, onde predominam a inércia endogâmica e uma espécie de história ruminante acometida periodicamente por grandes convulsões sociais, políticas, militares e culturais, nas Índias Ocidentais predominaram ao longo de quinhentos anos o paraíso, o mistério, e por vezes o inferno em carne viva—“the real thing” (Miles Orvell, 1989). Predominaram durante todo este tempo o “conhecimento de experiência feita”, a liberdade de descobrir e o assumido risco da mudança.

A grande diferença entre a colonização americana a norte do México, e deste grande país do “novo” continente para sul, são as instituições religiosas que acompanharam as sucessivas ondas de emigração que abandonaram a Europa e outras partes do mundo (China, Japão, Rússia, etc.) em busca de uma oportunidade. No primeiro caso, a colonização e a escravização não seriam legitimadas em nome de uma  qualquer evangelização politicamente programada, centralizada, e formalmente assumida pelos invasores, enquanto que a ocupação levada a cabo por portugueses e espanhóis fora desde o início uma empreitada política abençoada por Roma e com esta partilhada. Talvez esteja aqui a principal causa da diferença dos modelos de liberdade (ou falta dela), de sociedade, e de economia que viriam a separar a América Latina Apostólica Romana, da América Anglicana, Luterana, Puritana, Ortodoxa, e em última instância politeísta onde viria a nascer e prosperar o célebre Sonho Americano.

Estados Unidos e Canadá foram e todavia são geografias de liberdade e racionalidade como não existem ainda outras à face da Terra, nem sequer na Europa ocidental, atravessada por contradições aparentemente insanáveis que recorrentemente tolhem as suas historicamente recentes aspirações de liberdade e democracia.

O fim da era petrolífera induzirá uma inevitável reorganização do Médio Oriente. Deixará então de haver razões para o ocupação estrangeira violenta desta vasta região. A guerra do gás que desde a Primavera Árabe e a guerra na Síria lançaram uma vez mais os povos da região no inferno está para durar, mas é por enquanto uma guerra pelo fornecimento de gás natural à velha Europa. Ou seja, um conflito regional. Por outro lado, o crescimento demográfico em África já começou a gerar conflitos brutais pelo domínio das grandes reservas de terras raras, petróleo e gás natural que ainda alberga. Não sabemos até que ponto serão os africanos capazes de superar as grandes dificuldades por que passam e passarão nas próximas décadas.

Tudo somado e avaliado, é de crer que muito do que nos espera até ao fim deste século vai ainda depender do que europeus e americanos forem capazes de sonhar, passado o momento de autocrítica que estão neste momento a viver.


[próximo capítulo: a arte americana]

terça-feira, fevereiro 13, 2018

Originalidade zero


Comissão Europeia. Costa propõe taxas que já tinham votação agendada 

Transações financeiras, economia digital e economia verde são as três áreas relativamente às quais o Governo português pretende apresentar novas taxas em Bruxelas. Devem ser parte da solução para compensar o impacto financeiro do Brexit e os novos desafios da União Europeia em matéria de Defesa, Segurança e Migrações. Ora, as propostas que o primeiro-ministro pretende dar a conhecer no final do mês já são familiares às instituições europeias. Constam, aliás, de um projeto de resolução do Parlamento Europeu de janeiro deste ano, e já tinham sido debatidas – pelo menos, em parte – em setembro do ano passado pela Comissão Europeia. Até já têm votação agendada para o próximo mês. 
—in Pedro Raínho, 2018/02/12, Observador.

Originalidade zero. Além do mais, o importante é realçar que a burocracia europeia apresenta a mais previsível e a mais imbecil das respostas ao Brexit: aplicar impostos, taxas e taxinhas a tudo o que mexe. Chegará o dia em que os cidadãos dirão basta. Os impérios começam por perder a hegemonia, depois entram em decadência, seguem-se a desvalorização da moeda e a contrafação da mesma pelos próprios governos, e finalmente o fascismo fiscal, até que um belo dia, os povos resolvem libertar-se da tirania.

terça-feira, fevereiro 06, 2018

A corja



O PCP estupora a Autoeuropa, enquanto o Bloco estupora a RTP


Uma conjunção inesperada de pessoas, interesses, corrupção e avidez partidária deu cabo de um projeto genuinamente inovador na RTP. Uma visão, um projeto e uma direção que até foram capazes de organizar uma candidatura ao Festival da Eurovisão diferente, com os resultados que se conhecem, tornaram-se uma ameaça intolerável para os que não sabem fazer outra coisa que não seja especular com a pobreza de espírito das famosas audiências, mantendo, por outro lado, bem viva a chama da corrupção embrulhada em populismo justiceiro.

Essa comunhão corporativa e pirata que tirou o tapete a um projeto corajoso, criativo, independente e ganhador é o retrato descarado do regime que apodrece à nossa volta. Um ex-administrador, Luís Marinho, que saiu da RTP com a mais elevada indemnização paga naquela casa, mas sem uma declaração de não agressão aos seus sucessores, trava desde 2016 uma campanha insidiosa contra Nuno Artur Silva e Daniel Deusdado. O tablóide do gajo que anda a poluir o rio Tejo, e deveria ir preso por isso (irá?), serviu sucessivas peças de lixo jornalístico sobre os putativos conflitos de interesses entre Artur Silva e Deusdado, por um lado, e a RTP por outro. Não foram, quando tinham que ser, avaliadas as possíveis situações de incompatibilidade, pelos juristas da RTP ou por aqueles a quem a RTP paga generosas avenças? Cunha Vaz (um dos personal trainers de António Costa) prometeu acabar com esta gerência (e cumpriu). Entrou uma arara de Coimbra no chamado Conselho Geral Independente, botou sentença perante uma turma de ingénuos, cobardes e hipócritas, e estes idiotas renderam-se à lábia do advogado. Por fim, os jovens extremistas do Bloco de Esquerda ganharam a Comissão de Trabalhadores ao PCP, e decidiram dar largas às diretivas vermelhas do Bloco: Ana Drago, fora! Rui Tavares, fora! Ainda não foram, mas não vai demorar muito. A RTP, agora, é nossa, quer dizer deles!

É por estas e por outras que a linha que demarca a esquerda da direita não passa duma linha imaginária.

A corja partidária dum país falido, onde as principais empresas económicas e financeiras acabaram nas unhas de espanhóis, angolanos, chineses e alguns americanos e franceses, só já tem um fim em vista: tomar o Estado de assalto, meter prego a fundo no populismo, e servir-se. Isto é, servir-se de todos nós.

Se pensam que a Geringonça é coisa esporádica e passageira, desenganem-se. Veio para ficar, como predisse e expliquei atempadamente num programa da RTP que um acólito qualquer da situação se apressou a destruir o mais depressa possível.

A ronha, a mediocridade e a subserviência sempre conviveram bem com a corrupção.


Se gostou de ler este artigo e deseja apoiar um blogue independente com mais de uma década, faça uma pequena doação. Obrigado.

Pode entrar em contato direto comigo neste email: antonio.cerveirapinto {arroba} gmail {ponto} com

sábado, janeiro 06, 2018

Catalunha e Bruxelas

Retrat oficial del President de la Generalitat de Catalunya, Carles Puigdemont i Casamajó.

Macron não pode dizer uma coisa a Erdogan e outra a Felipe VI


Carles Puigdemont considerou que os independentistas catalães presos em Espanha já não são “presos políticos” mas sim “reféns”. O ex-presidente catalão continua em Bruxelas. Observador

A maioria eleitoral catalã quer a independência da Catalunha. Provou-o em quatro sufrágios sucessivos. Madrid, que vai fazer? Pelo mesmo argumento que invocou para manter preso, um preso político, portanto, o vice-presidente do governo catalão destituído, deveria então prender mais de metade dos eleitores catalães, certo? Se o que houve e há na Catalunha não é um processo democrático que reclama a independência daquele país, mas uma rebelião das massas, e a resposta do reino de Madrid é prender os seus 'cabecilhas', que separa Felipe VI, Mariano Rajoy, e o PSOE, do senhor Recep Tayyip Erdoğan, ontem recebido e saudado, embora criticamente, por Emmanuel Macron?

A unidade constitucional da Espanha invocada por Madrid é uma invenção napoleónica, e portanto um facto histório recente e importado. A realidade histórica é muito mais antiga, difusa e próxima da ideia de uma união de estados, ou de um estado federal, onde a união política entre os antigos reinos de Castela e Aragão deram origem a um centro de poder monárquico cujo objetivo estratégico foi desde então atrair e reunir à sua volta todos os outros reinos, principados e condados, incluindo diversas tentativas de conquistar Portugal pela força. Até Franco gizou um plano para invadir Portugal caso Hitler ganhasse a guerra!

Ou seja, é pefeitamente razoável pensar numa federação, ou mesmo numa confederação espanhola em que as atuais regiões autonómicas adquiram independência e constituições próprias, além das bandeiras que já têm. Nesta configuração, que poderia ser objeto de um referendo constitucional (em que a Catalunha acederia participar), criar-se-ia então, se essa fosse a vontade maioritária de todos os súbditos da monarquia espanhola, a possibilidade de uma coexistência pacífica entre, por exemplo, a República Catalã e a monarquia existente, na qual permaneceriam, ou não, as demais regiões, embora seja crível que o País Basco optasse também por uma independência republicana.

O ensaio das chamadas autonomías chegou ao fim com o fim da prosperidade mundial e europeia.

O endividamento público e a falência bancária estrangulam os orçamentos políticos. E no caso de Espanha estrangulam cada vez mais uma arquitetura autonómica assente em transferências fiscais comandadas exclusivamemte a partir de Madrid. Quem não tem dinheiro, não tem vícios. Ou seja, é preciso encontrar outro e mais sustentável modelo de solidariedade ibérica, com base na verdade orçamental e económica dos seus países, regiões e povos. É fundamental redistribuir justamente o trabalho, a riqueza e o poder político, mas esta descentralização do crescimento potencial não pode continuar a ser uma coutada dos senhorios de Madrid e Lisboa. Precisamos mesmo de uma nova arquitetura política, económica, social e financeira descentralizada à escala global, que terá que começar por algum lado. Porque não reformando desde já os cada vez mais corruptos regimes ibéricos e suas nomenclaturas — incluindo a catalã?

O mito de uma grande Espanha não passa disso mesmo. O tempo dos impérios europeus passou à História. A União Europeia que precisamos de construir pode e deve respeitar a identidade e a diversidade dos seus países, das suas regiões e dos seus povos. Deve dirimir em paz diferendos antigos. Deve, desde logo, substituir a democracia retórica dominante por uma democracia real, mais deliberativa, com mais referendos locais, regionais, nacionais e europeus, em suma, menos burocrática e mais diretamente partilhada por todos. Deve, por isso, restaurar as liberdades individuais plenas da cidadania democrática, sem prejuízo de uma acrescida responsabilidade social e cultural esclarecida e partilhada.

O que não podemos aceitar na União Europeia é a atual disparidade de critérios sobre o Kosovo, a Turquia e Espanha. Nem o deixa andar perigoso para onde o problema catalão está a resvalar.

A tensão psicológica provocada pela incompetência dos políticos espanhois e europeus na gestão desta crise é muito grande. Sei-o por vários amigos e familiares que tenho em Espanha. Paira em muitos deles o espectro de uma guerra civil de sombras e pesadelos antigos. Sofrem e têm por vezes vergonha desta espécie de sonho desfeito por uma austeridade que lhes desferiu o golpe mais duro e inesperado. Desta vivência próxima resulta também a minha dificuldade em escrever sobre isto, mantendo uma desejável sobriedade analítica. Aos meus amigos e à minha família espanhola desejo sinceramente que o ano que agora começa possa trazer claridade e paz à sua magnífica criatividade, coragem e eterna diversidade.




Post scriptum

Seja qual for a leitura que se faça dos sucessivos resultados eleitorais verificados na Catalunha entre 2014 e 2017, é clara e manifesta a vontade da maioria dos catalães pela independência. Os resultados são expressivos, não apenas porque porque foram obtidos apesar da forte pressão política e mediática da visão centralista de Madrid, mas também porque apenas 64% da população residente é nascida na Catalunha.
  1. Consulta popular de 9 de novembro de 2014. Sim pela independência: 80,91%
  2. Eleições regionais de 27 de setembro de 2015. Sim pela independência: 64,9%
  3. Referendo de 1 de outubro de 2017. Sim pela independência: 92,01%
  4. Eleições legislativas antecipadas de 21 de dezembro de 2017. Deputados soberanistas eleitos: 78; não soberanistas: 57.

Atualização: 7/1/2018, 00.57 WET