O homem não perde nem a lucidez, nem a simpatia. Não perde, antes de mais, uma boa oportunidade para exercer a sua ainda notória, mas nem por isso menos elegante, influência política no país. É um prazer invejável, que Soares desfruta como se de uma iguaria gastronómica se tratasse. Não o é menos para quem gosta de ouvi-lo, como é o meu caso. Mais ainda se a jornalista for Ana Lourenço, cativante e novo estilo de entrevistar, revelador de uma expressão plena de inteligência feminina e beleza irresistíveis.
A oportunidade era de ouro: entrevista a José Sócrates pelo enervado gladiador Ricardo Costa (SIC) e pelo profissional que tenho por competente e íntegro, José Gomes Ferreira. Como ontem escrevi, meia hora depois da entrevista, o PS iniciou uma caminhada dura, mas com probabilidades de êxito, para a renovação da actual maioria absoluta.
O panorama desolador das oposições é muito favorável. E, por outro lado, o desaguar lento da Primeira Crise Mundial de Endividamento sobre Portugal (ler o notável livrinho de Ann Pettifor, escrito em 2006, sobre o tema) favorece objectivamente, mais do que os partidos da esquerda inútil, o regresso do PS à sua matriz socialista (a la française) e social-democrata (à SPD). A gravidade da situação permite, ou melhor exige, uma mudança de paradigma no programa de acção do actual governo, e sobretudo do programa que José Sócrates deverá levar ao próximo congresso do Partido Socialista. É neste ponto sensível que a prestação de Mário Soares foi especialmente oportuna e cirúrgica. Touché!
O que é que Soares disse de importante?
- Que deixou de haver motivo para quezílias entre o Governo e o Presidente da República, remetendo-se a resolução da bacorada parlamentar em volta do Estatuto da Região Autónoma dos Açores para a fiscalização sucessiva pedida pelo PSD, e para os senhores juízes do Tribunal Constitucional;
- Que a perda da actual maioria governamental, nas circunstâncias de crise sistémica do Capitalismo mundial previsíveis para os próximos quatro anos (2009-2012), ainda por cima sem alternativa governamental à sua direita, nem verdadeiros parceiros de coligação à sua esquerda, poderá facilmente precipitar o país num gravíssimo estado de inacção política e conflito social generalizado;
- Que a adaptação de José Sócrates à radical conjuntura emergente não vai ser fácil, vai obrigar a mudanças de paradigma (neo-liberalismo galopante versus programas declaradamente social-democratas), e vai ter que atacar frontalmente as máfias instaladas, as quais, constrangidas pelas lógicas especulativas e clientelares em que cresceram e onde prosperaram, tentarão por todos os meios instrumentalizar a sua mais perfeita criação política (José Sócrates!) para prosseguirem a lógica de betão, especulação financeira e clientelismo, responsável, entre nós, por alguns dos mais graves entorses ao desenvolvimento português nas últimas décadas;
- Que chegou o momento de ouvir as pessoas, os grupos profissionais e os sindicatos, substituindo a lógica de propaganda permanente utilizada até agora, por uma lógica de cooperação exigente e novas estratégias de criatividade democrática;
- Que é preciso atacar frontalmente as actuais e escandalosas assimetrias de rendimentos entre a nomenclatura bem instalada (a nossa upper class) e as classes médias em vias de extinção, e a multidão de pobres que cresce dia a dia;
- Que é fundamental introduzir um programa sério de mudança dos paradigmas de crescimento e desenvolvimento, centrado na emergência efectiva duma nova economia ambiental, ecológica e sustentável, onde as noções de eficiência e produtividade energéticas passem do mundo da especulação financeira e da economia aninhada no Bloco Central do Betão e da Corrupção, para a economia real;
- Que, acrescento eu, as prioridades estratégicas do país recaiam no fortalecimento, precedido embora de reformas profundas, dos sistemas de saúde, educativo e de investigação científico-tecnológica, bem como na reorganização urgente das cidades e respectivas periferias, apostando claramente nas soluções tecnológicas orientadas para as comunidades, e não para o estúpido egoísmo individual.
OAM 509 07-01-2009 00:18