A biografia de José Sócrates montada pelo Sol apresenta todos os contornos de uma cortina de fumo e revela o estado andrajoso da imprensa portuguesa actual. |
As misteriosas Fábricas de Canudos
Há alguns anos atrás a estatal Tabaqueira foi privatizada e adquirida pela Philip Morris. Uma das primeiras decisões da nova administração foi emitir uma ordem de serviço proibindo o tratamento por Dr., Eng. Arq., etc., dos licenciados assalariados da nova empresa. Uma boa decisão que, se já adoptada entre nós, evitaria muitas das cenas tristes a que frequentemente assistimos na pastelarias, nas empresas, nas repartições públicas e na cada vez mais insuportável televisão. O Senhor Durão Barroso é o actual presidente da Comissão Europeia. O Senhor Dr. Durão Barroso não existe, a não ser no aparvalhado sítio lusitano.Na realidade, nos países anglo-saxónicos, doutores são tradicionalmente os médicos e também se admite tal tratamento quando dirigido aos licenciados nalgum curso universitário depois de cumprido um doutoramento, sobretudo entre pares. Já nos países latinos, mais atrasados na chegada à moralidade laica da ética capitalista, do que os povos protagonistas das cisões protestantes e puritanas, as habilitações académicas tenderam quase sempre (não é o caso da Espanha, por exemplo) a ser consideradas como um sucedâneo dos títulos da antiga nobreza. No século XIX, os endinheirados compravam títulos nobiliárquicos, tal como mais tarde, no queiroziano século XX português (e italiano, por exemplo) se cobiçaram, forjaram e compraram (com cunhas e com dinheiro) os novos prefixos da pequena burguesia ascendente e da crescente massa de funcionários públicos que foram acudindo às necessidades crescentes de um Estado cada vez mais complexo e oneroso. Ao licenciado queiroziano (o célebre Conde de Abranhos) sucederam os doutores, arquitectos e engenheiros de hoje. Estes prefixos, sem os quais muitos dos nossos conterrâneos se sentem nus, não passam, afinal, de penduricalhos ridículos, espécie de nódoa indelével da nossa alarve ignorância, arreigado conservadorismo e teimosa hipocrisia. Em vez de senhores da sua própria liberdade, os doutores da mula russa preferem exibir a pluma do seu pequeno privilégio pós-rural e, se possível, ascender ao conforto de uma carreira no funcionarismo público. Tal pluma serve, entre outros fins, para sonhar com conselhos de administração de empresas públicas, ou com a pequena carreira política.... Mas aqui a porca, por vezes, torce o rabo!
O escândalo que envolve a Universidade Independente, onde, está dito, José Sócrates obteve uma licenciatura, prende-se com suspeitas sobre a prática de actos ilícitos como sejam o branqueamento de capitais, o tráfico de diamantes (de sangue?), a falsificação de documentos e a forja de canudos universitários. As três primeiras suspeitas fizeram os cabeçalhos dos OCS lusitanos durante algum tempo (ver por ex.: notícia na TVI). A suspeita de irregularidades na atribuição de títulos académicos tem vindo a ser abordada sobretudo nalguns blogues portugueses (ver nomeadamente Do Portugal Profundo).
John Major não completou sequer o ensino secundário. No entanto, tal não o impediu de seguir uma promissora carreira bancária e de se tornar primeiro ministro do Reino Unido. Nada na legislação portuguesa obriga o presidente da república, ou qualquer membro de um governo a possuir uma licenciatura académica. Basta, creio eu, que saiba ler, escrever e contar. E assim deve ser. Ou melhor, deveria obrigar a que, já agora, tivesse alguma experiência de vida e de administração.
As suspeitas que têm vindo a ser levantadas relativamente ao CV do primeiro ministro José Sócrates não incidem pois, pois não poderiam incidir, na questão dos atributos académicos do político, mas na legítima curiosidade de saber se o atributo que ostenta é apropriado ou inapropriado. Se é apropriado, não deve ser confusamente descrito nas biografias oficiais e jornalísticas do protagonista, lançando razoáveis dúvidas entre os mais obsessivos. Se não é apropriado, então a coisa é grave, pois somos levados a perguntar: é ou não verdadeira a biografia oficial do primeiro ministro, distribuida pelo governo, no que se refere ao grau académico de José Sócrates? É ou não correcta a atribuição académica de José Sócrates inscrita na entrada (protegida) da Wikipedia ? Se não é, estamos perante um lapso ou diante de uma mentira?
Antes de escrever este postal, depois de receber insistentes mensagens na minha caixa de correio, pensei que o assunto é demasiado melindroso para ser levianamente abordado. Estive por isso em silêncio durante meses. Mas depois cheguei a esta conclusão: se de facto houver alguma dúvida nesta matéria, alguma incorrecção que não seja prontamente esclarecida pelo próprio José Sócrates, a dúvida vai começar a inchar como uma bolha imparável, até que rebentará. Por outro lado, se forem realmente falsas as atribuições da sua carreira académica, o mais certo é que alguém se aproveite subrepticiamente do facto, fazendo chantagem. Ora isto é o pior que nos poderia acontecer como país civilizado!
Que sucederia se os portugueses viessem a saber (por um diário madrileno) que a biografia académica do primeiro ministro é falsa? Depende de como a coisa fosse deslindada e explicada. O Bill Clinton pediu desculpa por andar a fazer coisas inapropriadas com uma jovem colaboradora e safou-se. No caso de José Sócrates, a ser verdade que houve falsificação das habilitações académicas, não sei se o país seria capaz de perdoar o homem. Só mesmo uma confissão pública sincera e bem feita poderia impedir a sua previsível demissão do cargo.
Entretanto, pode ser que tudo isto passe, mas seria mau que passasse sem esclarecimento. Pois ficaria para sempre a dúvida sobre a independência de acção do principal governante do país.
OAM #178 14 MAR 07
Actualizações:
PSD pede "cabal esclarecimento" sobre licenciatura de Sócrates
22.03.2007 - 17h03 PÚBLICO
O PSD pediu hoje na, Assembleia da República, o "cabal esclarecimento" sobre a investigação, "legítima e baseada em factos", avançada pelo PÚBLICO sobre as falhas no processo de licenciatura do primeiro-ministro, José Sócrates.
Em declarações aos jornalistas, o deputado Pedro Duarte classificou ainda como "inaceitável" a nota do gabinete do primeiro-ministro que acompanha a investigação.
Na nota, Sócrates considera "lamentável que se utilize a situação actual da Universidade Independente para se atingirem os seus antigos alunos" e "lastimável que o jornal PÚBLICO se disponha a dar expressão e publicidade a este tipo de insinuações".
Porém, o deputado adiantou que o PSD vai "serenamente aguardar" pelo "esclarecimento devido".
"Não queremos acreditar que o gabinete do primeiro-ministro não vá emendar a mão", afirmou Pedro Duarte.
Os restantes partidos recusaram fazer quaisquer comentários.
Segundo a investigação do PÚBLICO, o dossier relativo à licenciatura de José Sócrates na Universidade Independente tem várias falhas. Há alguns documentos por assinar, ou sem data, timbre ou carimbo, tal como há elementos contraditórios, nomeadamente os relativos às notas atribuídas a José Sócrates. (fim de citação)
Comentário: o caso chegou, como previa e é bom que tenha acontecido, aos OCS tradicionais. Entretanto, o sítio oficial do governo Sócrates apressou-se a emendar os atributos académicos do primeiro ministro, deixando de lhe chamar "Engenheiro" para atribuir-lhe, agora, uma "licenciatura em engenharia civil", que tendo sido putativamente conferida pela Universidade Independente (sim, essa!) não o autoriza o dito licenciado a dizer-se e dizer aos outros que é engenheiro, pois a respectiva Ordem não confere automaticamente carteira profissional e licença de actividade ao que quer que saia da tal Universidade Independente. O caso, aprofundado pelo Público, na sequência das investigações, nomeadamente Do Portugal Profundo, vem confirmar haver fortes suspeitas de que o actual primeiro ministro mentiu sobre o seu CV universitário. Se for verdade, não sei como poderá continuar no cargo. -- OAM #178 23 MAR 2007