"Mugabe, people power", in Zimbabwe Democracy Now - Lisbon Press Kit. |
Diplomacia, ciência da hipocrisia
Sejamos claros: a cimeira Europa-África levada a cabo em Lisboa este fim-de-semana teria que ter lugar agora ou muito proximamente. Na realidade, para além das questões comerciais imediatas entre os dois continentes, como o acordo de parceria económica, APE, que falhou dramaticamente (ver notícia no Público de 9-12-2007), estamos perante o último voo de rapina em direcção a um dos mais ricos, menos explorados, desgovernados e corruptos continentes do planeta. O bando é formado, por um lado, pelas principais potências emergentes e re-emergentes (China, India, Rússia, Brasil e produtores de petróleo do Médio Oriente), e por outro, pelas envelhecidas e desfalcadas potências imperiais que dominaram o mundo nos últimos 500 anos: a Europa Ocidental e os Estados Unidos da América. A frase enigmática de José Sócrates --"O importante é que nos encontramos de igual para igual. Foi uma cúpula sem tabus."-- quis por isso dizer que embora se possa falar dos podres de cada continente, o essencial não é atirarmos pedras para os telhados uns dos outros, mas chegarmos ao grão do problema, isto é, aos novos termos de troca entre os dois lados do Mediterrâneo, no momento em que tantos e tão ricos candidatos se mostram ávidos de "cooperar" com África.
A Europa já perdeu tempo demais com tiques coloniais que teima em conservar e com discursos piedosos sobre a moral das nomenclaturas pós-coloniais. Ou muda de atitude e corre depressa, ou está condenada a perorar inutilmente sobre direitos humanos, na última posição da bicha de investidores na nova economia africana. Neste ponto, um país pequeno como Portugal, mas que foi o primeiro grande explorador e colonizador de um continente ainda largamente tribal, esteve bem no seu papel de mediador diplomático entre a União Europeia e a União Africana. A sintonia estratégica entre Durão Barroso, Cavaco Silva e José Sócrates, por uma vez, faz pleno sentido e pode ser muitíssimo útil ao país. Só mesmo os pessimistas congénitos, os vigários da Esquerda e um ou outro jornalista parvo não perceberam o alcance da cimeira de Lisboa independentemente do que foi concretamente alcançado.
Os direitos humanos são uma questão de princípio no plano moral, mas não passam de pormenor circunstancial na diplomacia internacional. Pensemos, por exemplo, no controlo exercido pela De Beers sobre a produção mundial de diamantes, ou no que apenas suspeitamos passar-se na China, ou ainda nalgumas estatísticas relativamente recentes: Guerra do Vietnam, 3 milhões de mortos; Invasão do Iraque (2003-2006), 655 mil mortos; Darfur, 200 mil mortos nos últimos dois anos e meio; Zimbabwe, 20 mil mortos entre 1983-85. Os protestos contra o assassino Mugabe são legítimos. Mas que dizer das acções promovidas por Bush e Blair no Iraque? A Cimeira Europa-África não visava este género de questões...
Até ao fim da década de 1970 as grandes preocupações do Ocidente andavam à volta dos acessos à energia barata (petróleo e gás natural) e às matérias primas. Durante as duas décadas que se seguiram, a tais prioridades estratégicas somou-se mais uma: a mão de obra barata, que foi desaparecendo no Ocidente à medida que foram emergindo as chamadas sociedades de consumo e do bem estar social. A extinção do trabalho barato nos países ricos acabaria rapidamente por levá-los à exportação literal das indústrias e dos conhecimentos para o chamado Terceiro Mundo, conduzindo paulatinamente, entre meados da década de 1970 e o fim do século 20, a uma drenagem sem precedentes de recursos industriais, tecnológicos e financeiros da Europa, e sobretudo dos Estados Unidos, para países como o México, o Brasil, a Formosa, a Coreia do Sul, a India e a China. A situação de enorme desequilíbrio das balanças comerciais e de pagamentos a favor dos novos países emergentes viria a traduzir-se, assim, numa ameaça potencialmente fatal para os Estados Unidos e a Europa. Nestas partes do mundo predominam sociedades hedonistas de consumidores envelhecidos e pouco reprodutivos, enquanto nos continentes que agora despertam para o crescimento económico, assiste-se a uma explosiva demografia do trabalho. Enquanto as sociedades ocidentais consomem cada vez mais bens de toda a espécie e produzem cada vez menos bens materiais, as economias emergentes consomem cada vez mais bens essenciais, para assim poderem produzir cada vez mais mais bens de toda a espécie, a começar pelos materiais. Resultado: o consumo mundial de energia e a exaustão de recursos não renováveis dispararam e crescem a um ritmo exponencial.
Neste jogo ocorreu um imprevisto: o dinheiro fugiu do Ocidente para o Oriente!
A causa é simples e chama-se, desde o início da década de 1980, outsourcing, ou seja, sub-contratação. Dada a abundância de energia barata e de forças humanas produtivas virtualmente inesgotáveis e a preço irrisório em todos os cantos da Terra excepto nos EUA, Canada e Europa Ocidental, o Capitalismo resolveu criar um sistema global de reprodução do valor, no qual os centros crescem com base na sua capacidade de consumo e as periferias, com base na sua capacidade de produção a baixo custo. Como é fácil perceber, este mecanismo iria levar à progressiva descapitalização das sociedades de consumo em benefício das sociedades de produção. Todos conhecem no Ocidente, pelo menos desde finais da década de 1960, este fenómeno: sai mais barato comprar, do que fazer, deitar fora e comprar novo, do que reparar, importar, do que produzir localmente, pedir dinheiro emprestado do que poupar. A gigantesca crise financeira que actualmente afecta tão seriamente os EUA e a Europa, chamada impropriamente subprime, não é mais do que a conclusão lógica de uma tendência para o endividamento cumulativo das antigas metrópoles do Capitalismo face às economias colonizadas. Enquanto as balanças comerciais e de pagamentos se desequilibram cada vez mais a favor destas últimas, cresce de forma imparável o endividamento do Ocidente. Este, que produz cada vez menos bens materiais, especializa-se na produção especulativa de dívidas, que empacota com bonitos nomes e embrulhos, e que reproduz numa escala sem precedentes, transformando a sua economia num verdadeiro casino de doidos. Em vez de dinheiro efectivo, fabrica fichas de plástico (o famoso "Leve Agora e Pague Depois"), pagando com estes títulos de dívida tudo o que importa e consome, e ainda os investimentos colossais que realiza em todo o mundo! Os fabricantes de guardas-chuvas, de chau-min, de computadores e de telemóveis, ficam com os cofres atulhados de fichas, pois não conseguem gastá-las até ao fim nas suas próprias economias, cujas moedas são muito baratinhas (pois se não fosse assim, não conseguiriam atrair os investimentos necessários à produção das coisas de que todo o mundo, para quem trabalham, necessita.) Como as economias viciadas na especulação e no consumo não param de produzir dívida, os países produtores de bens, a certa altura, descobrem que são donos dos países para onde enviam os seus barcos cheios de brinquedos. A este clube de países produtores de bens junta-se depois o clube dos países produtores de concentrados de energia barata (petróleo e gás natural), formando um consórcio que ameaça a sobrevivência dos antigos donos do mundo. É este o ponto onde estamos neste preciso momento!
Se a Rússia não tivesse recuperado económica e militarmente da catastrófica hemorragia que se seguiu à implosão da União Soviética, o problema económico que actualmente aflige o Ocidente seria resolvido por uma mão bem mais pesada e confiável do que a famosa "invisível mão do mercado". Em vez de comércio livre, haveria bombas e invasões militares! A seita dos Bush bem tentou atalhar o problema, invadindo duas vezes o Iraque e provocando o Irão até ao limite, esperando que daí resultasse uma III Guerra Mundial capaz de limpar todas as dívidas. Chegou, porém, tarde demais. E agora, bom agora temos que falar como Sócrates: "O importante é que nos encontramos de igual para igual... sem tabus!"
OAM 292 10-12-2007, 16:50