quarta-feira, junho 18, 2008

Portugal 28

Morte súbita

A produção de petróleo per capita começou a declinar de forma consistente em 1979, e o início da queda absoluta da produção a nível global começará, segundo Richard C. Duncan, em 2006 (a uma taxa de 2.45% ao ano, durante 34 anos!). Quer dizer, daqui a um ano e meio, poderemos estar já a lidar com preços de crude na ordem dos 100 dll/barril. Em 2008, ainda segundo as previsões de Duncan, as reservas de países como os EUA, México, Noruega, Angola, Rússia, Afeganistão, Urzebequistão, Azerbeijão, etc., começarão a decair mais depressa que as reservas da OPEC (Venezuela, Nigéria, Líbia, Argélia, Arábia Saudita, Emiratos Árabes Unidos, Qatar, Kwait, Irão, Iraque e Indonésia), colocando estes países numa clara posição de supremacia energética, mas também no centro de gigantescas disputas estratégicas. -- O António Maria, 16-10-2004.

Uma das coisas boas que me acontece quando viajo, ou emigro temporariamente, é a quase completa ausência de notícias sobre Portugal. Exceptuando o que a CNN diz sobre o belo Cristiano e a selecção nacional, ou no caso desta minha viagem a Pequim, a presença fotográfica da pianista Maria João Pires na galeria dos grandes músicos e intérpretes musicais do século 20 e da actualidade, que tive oportunidade de admirar no novo e espectacular Centro Nacional de Artes Performativas, a amnésia é total e terapêutica. Quando regresso ao meu país, depois de um safari marroquino ou de uma massagem chinesa nos pés, o meu país, sob o impacto sempre extraordinário do sobrevoo da cidade e aterragem na Portela, parece-me invariavelmente lindo e apetecível. O pior, como me confiava há anos um professor português de economia ao serviço da Universidade de Manchester, é o que vem depois de encararmos a bicha dos táxis!

Regressado à capital, recebido desta vez por um taxista diligente e profissional, e a não menos saborosa vitória da selecção portuguesa sobre a temível República Checa, fui sendo informado, pelo mesmo taxista, da paragem cardíaca que afectara a parte nevrálgica do sistema circulatório do país: transporte rodoviário de mercadorias, transporte aéreo e veículos prioritários (ambulâncias e carros de bombeiros, veículos policiais e aviões.) As bombas de carburante e as prateleiras dos supermercados esvaziaram-se rapidamente. O Governo, a Presidência da República e a Oposição ficaram em estado de choque (foi o que nos salvou!)

O acidente vascular rodoviário fora inesperado e repentino. Reagir a quente, com forças policiais ou com uma requisição civil precipitada (como aventaram depois as araras profissionais da Pedratura do Círculo), poderia ter incendiado o país. Manuela Ferreira Leite esteve certamente à altura da crise, não lançando nenhuma gasolina para a fogueira. O dromedário-mor do reino e o primeiro-ministro portaram-se bem (Aleluia!) na condução das negociações que permitiram enfim libertar o país do sufoco momentâneo. Como que acordando lentamente de um desmaio, saiu-se da paragem cardíaca sem mazelas de maior no tecido sociológico do país. Até ver...

Nem sequer durante os dois inesquecíveis e convulsivos anos da Revolução dos Cravos houve semelhante possibilidade de uma morte súbita do sistema político. Perante a gravidade da crise e a manifesta apatia de todo um Estado diante da primeira prova iniludível do colapso do actual modelo energético mundial, a classe política vai finalmente acordar para os cruciais desafios políticos que temos pela frente, não daqui a dez ou vinte anos, mas já.

Nada fará baixar a curva ascendente dos preços da energia, das matérias primas, da água e dos alimentos básicos. O petróleo continua e continuará a subir independentemente das viagens aflitas de Condoleezza Rice e George W. Bush à Arábia Saudita, independentemente das pressões ilegítimas e hipócritas do G7 sobre a China (mas não sobre o carry-trade do hiper-proteccionista Japão, principal casino da especulação financeira ocidental), independentemente das ameaças de ataque nuclear ao Irão (por parte dos idiotas israelitas, americanos, ingleses e franceses.)

A Ásia autonomizou-se definitivamente do Ocidente, tornando-se a outra metade estratégica do mundo. A globalização acabou. Falta tão só evitar a III Guerra Mundial, e assinar um novo Tratado de Tordesilhas, balizado agora por dois novos meridianos, algures entre o Japão e a metade oriental de África. Mas para que esta nova partilha seja viável é absolutamente necessário que o Médio Oriente petrolífero fique fora do tratado, como se de uma Suiça energética se tratasse. Isto implicará, por outro lado, parar imediatamente a lógica suicida da Organização Mundial de Comércio (WTO), regressando-se a um regime de pautas aduaneiras que permita uma competição colaborativa das economias, mais equilibrada e menos injusta. Encurralar a Europa e os Estados Unidos numa competição impossível com a mão-de-obra barata, a planificação centralizada e autocracia dos principais países asiáticos (China, Japão e Coreia do Sul) será o caminho inevitável para uma III Guerra Mundial. E se uma tal tragédia ocorrer, não tenhamos dúvidas sobre um ponto: a Europa e os Estados Unidos serão aliados. Procurarão a neutralidade da Rússia e atacarão sem dó nem piedade os três tigres asiáticos. Pode ser o fim do mundo descrito pelo Apocalipse!

Regressando a Portugal, diria que a iminência de uma morte súbita do sistema político foi demonstrada à saciedade pelos impactos sucessivos das revoltas dos professores e das empresas de transporte rodoviário, revoltas essas que, por sua vez, mostraram o grau de acomodação, inépcia, burocratização e corrupção do associativismo sindical e empresarial dominantes. No caso do boicote rodoviário (que nada tem que ver com o lockout a que se refere Mário Soares num artigo aliás notável sobre a mesma crise, publicado no DN de 17-06-2008), o que esteve realmente em causa foram quatro circunstâncias concorrentes para a aflição e indignação dos pequenos e médios transportadores de mercadorias, responsáveis pela maior fatia do transporte e do emprego neste sector estratégico da nossa economia:
  1. A subida imparável dos preços dos carburantes, sobre os quais recaiem impostos oportunistas. O ISP não tem nenhuma justificação a partir do momento em que terminou a conjuntura do petróleo barato, pelo que é de defender desde já a sua supressão pura e simples. Por outro lado, a excessiva carga do IVA terá que baixar e ser harmonizada o mais depressa possível com a Espanha. Este assunto, pela sua extrema gravidade, terá mesmo que ser separado da questão do défice...
  2. A inflação, a subida dos juros e o tremendo impacto da crise financeira mundial sobre a economia espanhola (com particular ênfase na queda, em mais de 30%, do respectivo sector imobiliário) está a asfixiar uma parte importante das nossas empresas de exportação, e por essa via, centenas ou mesmo milhares de pequenas empresas de transporte rodoviário.
  3. Os lucros inusitados e sem qualquer regulação efectiva das petrolíferas, com especial destaque para a vagamente pública GALP é um escândalo inaceitável. Revolta qualquer um e se não forem rapidamente travados, suscitarão as condições ideias para uma re-nacionalização parcial (que defendo) da petrolífera portuguesa. O que o país tiver que desembolsar para recuperar a maioria accionista da empresa será rápida e largamente recuperado pela imparável valorização dos activos e do negócio petrolífero e energético em geral. O corticeiro de Mozelos e a família dos Santos que se ponham a pau!
  4. Finalmente, a política fiscal arbitrária da nomenclatura política que nos dirige, revelada pelas escandalosas e inaceitáveis isenções fiscais atribuídas aos iates de luxo e às empresas turísticas que utilizam embarcações de recreio (por que não às competições de Fórmula 1, ao motocross e às motas de água?!) revelam a hipocrisia do discurso político perante as dificuldades, e sobretudo a corrupção endémica que grassa pelos corredores governamentais e parlamentares. A ausência de moral pública sempre justificou o caminho das revoltas e das revoluções. Talvez seja a hora de os políticos corruptos irem para a cadeia e os moles para casa!
A revolta dos camionistas é um sério aviso ao país, tendo pelo caminho revelado três realidades dramáticas:
  1. A irracionalidade criminosa da política de transportes implementada ao longo das últimas décadas, a qual deu prioridade acéfala à rodovia e ao desordenamento do território, em detrimento de uma equilibrada repartição do esforço e da planificação entre os modos rodoviário, ferroviário, marítimo-fluvial e aéreo. Num país vertical, beneficiado por seis grandes rios (Minho, Douro, Vouga, Mondego, Tejo e Guadiana) e com uma tão generosa costa marítima, como foi possível destruir praticamente a ferrovia e deixar os portos marítimos e fluviais ao abandono?
  2. A inexistência de uma rede de aprovisionamento de combustíveis líquidos articulada com as principais interfaces de transportes do país (os aviões que se dirigiam para a Portela foram forçados a procurar abastecimento noutros aeroportos!), a que se soma a ausência de circuitos alternativos de abastecimento aos veículos prioritários (polícia, bombeiros e forças militares, para-militares e policiais).
  3. A completa falência dos serviços de protecção civil perante uma emergência nacional de três dias.
Do ocorrido terão agora que ser extraídas rapidamente algumas ilações para a acção política.
  • O actual sistema de transportes precisa de uma radical e urgente reformulação estratégica, com a reorientação imediata das prioridades de investimento para o sector ferroviário e marítimo-fluvial. O novo aeroporto e a nova travessia do Tejo devem ser colocados em pausa. Mas, por outro lado, devem ser dadas novas prioridades para as ligações ferroviárias rápidas entre Madrid e Pinhal Novo, e entre Porto-Aveiro-Salamanca. Por outro lado, deve ser seriamente estudada a possibilidade de construção de um grande terminal marítimo de águas profundas entre o Bugio e a Trafaria e ainda a abertura de um canal fluvial entre os estuários do Tejo e do Sado, projectos estratégicos destinados ambos a acolher parte significativa do aumento exponencial do tráfego marítimo oriundo do renovado canal, alargado e aprofundado, do Panamá.
  • As forças militares, de segurança e de socorro têm que dispor de reservas próprias de abastecimento de carburantes, e não depender de petrolíferas privadas!
  • A ANA, por toda irresponsabilidade até hoje revelada, tem que ser expurgada dos incompetentes que por lá pastam.
  • Em suma, o país terá que se preparar para aceitar, mais cedo ou mais tarde, um Estado de Emergência Energética Prolongada, do qual resulte um conjunto de medidas de curto e médio prazo destinadas a interromper tudo o que seja manifestamente atentatório da eficiência energética de que desesperadamente precisamos. Destaco apenas algumas:
    1. proibição imediata de todos os desportos motorizados baseados em consumo petrolíferos;
    2. fim do ISP e igualização do IVA à escala europeia;
    3. promoção intensiva da microgeração energética;
    4. controlo accionista estatal das principais empresas responsáveis pela exploração dos recursos vitais ao país: energia e carburantes, águas, mar (ZEE) e rios.
Claro que para aqui chegarmos haverá que redefinir o actual sistema de forças políticas por forma a fazer as inadiáveis reformas da nossa débil democracia. Será este o tema do próximo postal.


OAM 377 19-06-2008, 12:33

2 comentários:

Anónimo disse...

É um prazer caro António. Li alguns dos seus posts e creio que temos um grande escritor adormecido. Engraçado que eu não goste muito de blogs (pelo descalabro de alguns). Contudo descobri este blog porque tão simplesmente usei a chave de procura "Engenharia Geográfica" (meu curso) no Google e surgiu-me como resultado um blog, produzido por alguém de um grande e inteligente espírito crítico, que tem também um desenvolvimento textual muito atraente que até cativa o mais inculto dos mortais (eu). Fico agradecido por essa exposição do "Mundo" tão equilibrada que faz-me ver as coisas de outra forma. Parabéns e continue com este excelente blog!

António Maria disse...

Ganhei o dia! Obrigado ;-)