Desta vez vou votar
Resta saber o que determinará o comportamento dos portugueses depois de uma bancarrota ainda suspensa por fios e quatro anos de austeridade, se a indignação pelo castigo, se o medo de que o regresso à corrupção sem freio e ao desvario 'socialista' relance o país na ladeira do colapso.
Há quatro sinais que favorecem a renovação da coligação liderada por Pedro Passos Coelho:
- conseguiu travar o descalabro das contas públicas, ainda que à custa de uma enorme austeridade e repressão fiscal,
- conseguiu melhorar substancialmente as contas externas, por via do aumento das exportações e do turismo, das remessas dos emigrantes, da queda do consumo privado e ainda do regresso tímido do investimento, nomeadamente através dos processos de privatização e reprivatização,
- conseguiu travar a subida empinada do desemprego, criando algum emprego novo, embora precário e mal pago, e finalmente,
- levou um governo de coligação até ao fim, sinal de que houve estabilidade política apesar da gravidade da situação económica, financeira e social.
Do lado do Partido Socialista, pelo contrário, há vários indicadores que desaconselham os mais prudentes, ainda que com o coração à esquerda, a votar no PS de António Costa:
- O PS que quer chegar ao poder a 4 de outubro é a mesma maioria soarista e socratina que conduziu o país a três situações de bancarrota, resgatadas in extremis por três violentos programas de austeridade impostos pelos credores (1977, 1983, 2011);
- O PS que quer chegar ao poder prometeu atacar a propriedade privada, nomeadamente através da reintrodução do imposto sucessório, e prometeu, pasme-se, atingir uma taxa de desemprego em 2015 e 2016 superior à que hoje temos (O Insurgente);
- O PS que quer chegar ao poder prometeu diminuir as receitas do estado, aumentar as despesas do mesmo estado, estimular o consumo e empurrar com a barriga a diferença (i.e. mais dívidas públicas e privadas) até às gerações futuras—tudo em nome, claro, dos direitos da nomenclatura estabelecida (não mais do que 1% da população), que vê naturalmente com maus olhos qualquer perda de rendimento, mesmo se proveniente de um rol interminável de privilégios;
- O PS que quer chegar ao poder sabe que tem escassas hipóteses de o conseguir, pois ou sofrerá uma derrota humilhante nas eleições de 4 de outubro, apesar das sondagens, ou ficará por décimas à frente da coligação, sem possibilidade alguma de formar uma maioria parlamentar estável, empurrando assim o país (e o PS!) para a instabilidade num período que continuará particularmente crítico para a economia, para as finanças, para o emprego e para a solidariedade social.
O PCP, por sua vez, poderá subir a sua votação e até aumentar o número de deputados se, até 4 de outubro, conseguir atrair alguns milhares de eleitores habituados a votar 'à esquerda' e que deixaram de se reconhecer ou estão desiludidos com o populismo radical do Bloco, e a falsa e desastrosa esquerda protagonizada pelo PS. Há quem preveja mesmo uma subida extraordinária deste partido. A previsível substituição de Jerónimo de Sousa por uma geração que mal conheceu Cunhal e não sabe o que foi a Rússia estalinista poderá criar um quadro favorável à substituição do decadente PS, por um partido de esquerda bem organizado, experiente, ancorado em bases sociais amplas e estáveis, firme nos princípios, mas muito mais flexível na linguagem e nas causas, e sobretudo disposto a promover uma plataforma eleitoral democrática aberta capaz de ganhar eleições e governar 'à esquerda'.
A crise sistémica do capitalismo, que decorre estruturalmente dos picos energético e de matérias primas essenciais, vai prolongar-se por mais de uma década, e depois tudo será diferente. A primeira metade do século 21 tem-se revelado como um doloroso período de transição e metamorfose. Cada vez menos decisões dependerão dos partidos políticos, mas os que souberem promover e/ou integrar-se em plataformas de cidadania cognitiva culturalmente abertas sobreviverão, podendo mesmo contribuir para o desenho de uma nova pólis global.
Neste ponto não é de excluir o contributo que um Bloco de Esquerda renovado, sobretudo na lógica de competência argumentativa inaugurada por Mariana Mortágua, poderá dar à inadiável metamorfose do nosso esgotado sistema partidário. O Bloco poderá servir de ponte entre a desagregação do PS e o reforço do PCP, lançando ideias e iniciativas inteligentes com vista a uma reorganização da esquerda que sirva quem trabalha, mas sirva também o país no seu conjunto.
Os novos partidos, de que destacamos o Nós-Cidadãos, o Livre e o Partido Democrático Republicanos, poderão ter, ou não, a sorte dos outros grupinhos mais antigos e mais ou menos familiares que não conseguiram até hoje sair das suas cascas narcisistas. Tudo dependerá das suas ideias, do modo como falarem e agirem, do tempo necessário para se darem a conhecer, e da geometria da decomposição partidária que acompanhará a metamorfose do regime. Se conseguirem entusiastas de todas as idades, que nunca votaram ou que estão fartos de passar cheques em branco a partidos que nada fizerem, ou mal fizeram, terão futuro; mas se permanecerem fechados nos seus embriões fundadores, acabarão perdidos no limbo onde vegetam há décadas muitas outras siglas partidárias sem partido.
Precisamos de atacar em conjunto o fenómeno corrosivo da corrupção, precisamos de simplificar o texto constitucional e de lhe dar uma ambição utópica menos marcada pelo credo marxista degenerado que nada provou em parte nenhuma, precisamos de uma democracia mais justa e mais partilhada e participada, mais direta, melhor distribuída, mais compósita, mas também mais económica e eficiente. Este desiderato não deveria dividir a sociedade, e por isso pode e deve ser o eixo da renovação constitucional.
Um parlamento com mais partidos é uma coisa boa, e não uma coisa má. Os que lá estão vão continuar, mas é preciso abater o Bloco Central, que é uma intolerável argamassa de interesses e mordomias moldada por uma endogamia de tipo feudal. A entrada de novos partidos com pragmáticas políticas mais inovadoras, de que o Nós-Cidadãos será porventura o melhor exemplo, ajudará a promover soluções governativas menos atacadas de previsibilidade à nascença. Será bom para o CDS/PP, para PCP e para o Bloco, e será bom para toda a democracia na medida em que der cabo do terceiro-mundista Bloco Central que nos trouxe até à desgraça em que estamos.
Os partidos não são a solução.
Mas continuamos a precisar deles para promover com prudência a metamorfose para que as sociedades pós-contemporâneas caminham a passo rápido. Vamos a caminho de uma sociedade global pautada por um modelo de crescimento material lento, mas onde poderá produzir-se um novo modelo de crescimento, imaterial e cultural, muito rápido, complexo e surpreendente, onde a humanidade, em vez de desaparecer, poderá inaugurar uma espécie de novo Renascimento, fortemente marcado pelo conhecimento, pelo desenvolvimento integral das emergentes redes sociais, pela solidariedade ecológica, pela exigência civilizacional partilhada, e por novos paradigmas de colaboração competitiva.
Desta vez vou votar, e convido os mais céticos a fazerem o mesmo.
Atualizado em 16/8/2015, 00:57 WET