segunda-feira, março 16, 2020

O dilema no combate ao Covid-19


Morrer da doença, ou da cura?


Este parece ser o dilema colocado aos estrategos da guerra contra o Covid-19...

Quando Graça Freitas repetiu o que alguém lhe disse sobre o milhão de infectados em Portugal, não estava longe das previsões mais respeitáveis. Na realidade, estima-se que entre 20 a 60% da população será atingida pelo vírus. Pode sê-lo em seis meses, num ano, em ano e meio, ou em dois, mas dificilmente escaparemos à proliferação do Covid-19 e dos seus mutantes. A gestão do tempo é o pomo da discussão teórica e táctica que envolve o combate à pandemia. O ponto de vista inglês diverge, como sabemos, da visão chinesa, que o resto da Europa tende agora a aceitar. Novos surtos apareceram, entretanto, em fevereiro, na China, embora tenham sido ocultados da opinião pública. Acabaremos por ouvir falar deles em breve...

A população precisa de ganhar progressivamente imunidade ao Covid-19 e seus mutantes, única forma de este se tornar relativamente inócuo para a saúde humana. Falta, porém, saber se é possível. As vacinas são uma forma de ganhar esta imunidade, ainda que temporária, mas para a maior parte dos vírus que nos causam problemas, não há vacina, apenas graus diferenciados de imunidade. Ou seja, haverá vacinas contra o Covid-19, mas ninguém sabe ainda se resultarão. Por outro lado (outro pomo de discórdia silenciosa), a contenção é necessária, mas não pode ser exagerada, em primeiro lugar, porque não derrota por si só o vírus, apenas atrasa a sua disseminação e penetração nos corpos humanos, e em segundo lugar, porque se exagerarmos a extensão e duração das quarentenas poderemos estar a matar a economia, e esta morte arrastará muitas mais mortes que o próprio Covid-19!

Eis, em suma, o problema equacionado num post de 11/3 de Gail Tverberg, e que vale a pena ler na íntegra:

An economy is in many ways like a human being or other animal. Its operation cannot be stopped for a month or more, without bringing the economy to an end.  
... 
I sometimes write about the economy being a self-organizing networked system that is powered by energy. In physics terms, the name for such a system is a dissipative structure. Human beings are dissipative structures, as are hurricanes and stars, such as the sun. 
Human beings cannot stop eating and breathing for a month. They cannot have sleep apnea for an hour at a time, and function afterward. 
Economies cannot stop functioning for a month and afterward resume operations at their previous level. Too many people will have lost their jobs; too many businesses will have failed in the meantime. If the closures continue for two or three months, the problem becomes very serious. We are probably kidding ourselves if we think that China can come back to the same level that it was at before the new coronavirus hit. 
In a way, keeping an economy operating is as important as preventing deaths from COVID-19. Without food, water and wage-producing jobs (which allow people to buy necessary goods and services), the deaths from the loss of the economy would be far greater than the direct deaths from the coronavirus.
...
China’s shutdown in response to COVID-19 doesn’t seem to make much rational sense. 
It is hard to understand exactly how much China has shut down, but the shutdown has gone on for about six weeks. At this point, it is not clear that China can ever come back to the level it was at previously. Clearly, the combination of wage loss for individuals and profit loss for companies is very high. The long shutdown is likely to lead to widespread debt defaults. With less wages, there is likely to be less demand for goods such as cars and cell phones during 2020. 
China was having difficulty before the new coronavirus was discovered to be a problem. Its energy production has slowed greatly, starting about 2012-2013, making it necessary for China to start shifting from a goods-producing nation to a country that is more of a services-producer (Figure 1).

Figure 1. China energy production by fuel, based on 2019 BP Statistical Review of World Energy data. “Other Ren” stands for “Renewables other than hydroelectric.” This category includes wind, solar, and other miscellaneous types, such as sawdust burned for electricity.

...
We also need to be looking for new approaches for fighting COVID-19. One approach that is not being used significantly to date is trying to strengthen people’s own immune systems. Such an approach might help people’s own immune system to fight off the disease, thereby lowering death rates. Nutrition experts recommend supplementing diets with Vitamins A, C, E, antioxidants and selenium. Other experts say zinc, Vitamin D and elderberry may be helpful. Staying away from cold temperatures also seems to be important. Drinking plenty of water after coming down with the disease may be beneficial as well. If we can help people’s own bodies fight the disease, the burden on the medical system will be lower.


—in “It is easy to overdo COVID-19 quarantines”

Posted on March 11, 2020, by Gail Tverberg 

domingo, março 15, 2020

Sim, estamos em guerra!

“Mapping a contagion: How the coronavirus may spread around the world”—FORTUNE


Primeira guerra mundial contra um vírus


Estamos a viver em pleno a primeira guerra biológica global da História. Não se trata, porém, de uma guerra entre potências nucleares, mas antes de uma guerra entre toda a espécie humana e um vírus. O facto desta sucessão de embates ter uma escala planetária deve-se exclusivamente a uma das dimensões da globalização humana, o transporte aéreo. Foi a nossa globalização que transformou esta explosão viral na maior ameaça à nossa paz coletiva desde a Peste Negra! 

Continua a haver quem defenda que tudo isto não passa duma conspiração chinesa, para rebentar com os preços da soja, do petróleo e das matérias primas em geral, bem como para tomar de assalto milhares de empresas sediadas na China, cuja queda em bolsa redundou em saldos instantâneos. São os especuladores do costume.

O mais importante de tudo é defender os humanos de uma ofensiva viral sem precedentes desde a chamada Gripe Espanhola (1918-20) e desde a famosa Peste Negre (1343-53). Os marcianos que tanto temíamos nos anos 50 do século passado, por indução propagandística dos americanos, são afinal seres invisíveis, razoavelmente simétricos, e vivem há centenas ou milhares de milhões de anos no mesmo planeta que nós. Há quem pense mesmo que são entidades semi-vivas que precisam da vida dos outros para existir.



O impacto global desta pandemia na economia, no sistema financeiro, nos sistemas políticos, nas sociedades e suas culturas pode vir a ser tremendo. As consequências deste ataque sem precedentes à integridade da espécie humana são de momento desconhecidas.

Estamos, portanto, em guerra, e não podemos começar por desbaratar a retaguarda! 
Se o nosso Governo não sabe, nem ouve os nossos especialistas militares em guerra biológica, ao menos copie a China, que agiu precisamente sob orientação dos comandos chineses especializados na guerra biológica.

Republico, a este propósito, um artigo muito oportuno e clarividente do Prof Carvalho Rodrigues sobre o modo como é necessário e urgente encarar o Covid-19. Uma explicação que vira de pernas para o ar o tabuleiro cognitivo em que muitos de nós temos estado a analisar a pandemia.

Meus Amigos, 
Com vírus que matam Humanos e que não conseguimos aniquilar não há proporcionalidade. Há guerra biológica. É como alguém que quer entrar armado, a disparar, contra alguém que está em casa e nem arma tem. Tem que se atrasar a entrada do ataque de quem vem armado a disparar até que venha a Autoridade e acabe com a ameaça que é, tal como o vírus, total e completamente assimétrica. 
A guerra biológica tem doutrina escrita, tem métodos e tácticas de emprego bem estabelecidas. São feitas manobras, exercícios, é treinada (os hospitais na China montados em meia dúzia de dias são a demonstração que, semana sim, semana sim, treinam contra medidas de  guerra biológica). 
Em Portugal até havia o Hospital das Infecto-contagiosas na Boa Hora e outros com Pessoal treinado em guerra biológica, e enquanto houve Hospital de Marinha também. Há ou havia ,pelo menos até ao Comando das Forças Armadas do General Pina Monteiro, uma companhia especializada em guerra NBQR (nuclear, biológica química e radiológica) com standards de prontidão da NATO. Seria bem falar com o Pessoal que sabe e treina sobre este assunto. 
O que a China faz, o que a Rússia faz e os EUA estão a fazer é desencadear, no terreno, o que sabemos de contra medidas numa guerra biológica em todos os aspectos. A Europa, com excepção da Alemanha, nem tem noção da realidade que em tudo se comporta como um ataque de guerra biológica. Não resulta da agressão de um país a outro, mas de um vírus à espécie Humana; mas não deixa por isso de ser guerra biológica. 
A incúria Europeia, com excepção da Alemanha, é escondida por detrás de argumentos relativamente à China de que é um país comunista e uma ditadura, à Rússia de que também é quase uma ditadura e aos EUA de que têm o Presidente que têm. 
O que a China, a Rússia e os EUA estão a fazer é a pôr no terreno a táctica e a doutrina da Guerra Biológica, e a conseguir utilizar o Pessoal de Saúde apenas na última linha de defesa. Têm na linha da frente de combate Militares, GNR, Polícia, Protecção Civil e a População em geral a garantir a desinfecção pública e sobretudo o isolamento usando força se necessário for para que nesta luta assimétrica (vírus que mata e não é possível exterminá-lo)  sejam, através do isolamento, infectados o menor número possível para que não chegue uma avalanche às portas do último reduto, o hospital. 
Não se pode deixar tudo à mercê e chegar ao Pessoal da Saúde e o Hospital com massas de infectados. Não podemos transformar a retaguarda (o Pessoal de Saúde e o hospital) na frente do combate. 
O que a Europa faz é isto: só dá batalha na última linha de defesa. 
Não podemos numa guerra biológica não ter o envolvimento de todos e deixar que o Pessoal na frente da frente sejam Médicos e Enfermeiros e Gente da Saúde. Esses devem estar a defender o último reduto, a barbacã dos tempos medievais. Não podem ser quem está na frente da frente. 
Na frente, na frente  da frente da guerra biológica temos que estar todos nós, garantindo higiene pública e individual e isolamento com muita solidariedade e quando e se necessário garantido pela força do Estado. Quem, só por que sim, não se isola o máximo que pode, está a baldar-se para o lado do vírus e a entregar a nossa vida à ameaça biológica mortal que o vírus traz. 
Não pode ser como agora em que na Europa, os hospitais, são, apenas, o que constitui a única linha da frente desta guerra biológica. É bem sabido o que acontece a quem ponha a sua defesa apenas no último reduto. 
Para estarmos todos a agir eficazmente, temos que enfrentar este vírus com as bem estabelecidas tácticas de condução de uma guerra biológica. E nesta não há proporcionalidade. Há mobilização. Nós temos todos que ser os peões de Infantaria para que ao Pessoal dos Hospitais que na metáfora são os Cavaleiros possam apenas estar focados na derradeira luta, a luta pela vida no hospital. Eles, o Pessoal de Saúde e o hospital não podem ser a linha da frente da frente. Nós temos que ser a linha da frente da frente. 
Nós todos, com a Autoridade Militar, Policial e Civil mobilizados solidária e eficazmente na primeira linha da frente a garantir higiene individual e pública com isolamento individual ao máximo possível; para que chegue o menor número de casos à retaguarda da frente deste combate onde está o competentíssimo e abnegado Pessoal de Saúde e o hospital. 
Eu não sei, a não ser de alguns cálculos sobre o assunto (estão no P.S.) e por ver por muito de perto, muito do que descrevi da doutrina e da condução de guerra biológica na Emerging Security Challenges Division nos treze anos de Quartel Geral da NATO; mas porque ensino que só verdadeiramente sabe quem já fez (os outros ouvimos dizer) espero que como, em Portugal, há nas Forças Armadas, quem saiba (porque fez e treinou) como a guerra biológica se conduz seria bom que fossem consultados e sobretudo utilizados os seus conhecimentos. 
Forte Abração do vosso
Fernando Carvalho Rodrigues
Publicado originalmente aqui

Referências
“Entropy of plagues: A measure for assessing the loss of social cohesion due to epidemics”
F. Carvalho-Rodrigues, J. Dockery, T. Rodrigues
Abstract
We have asked the question what kind of illumination might be given to a series of historical events through the application of operations research techniques. The question is addressed by means of a model. In that model we compare the evidence for the collapse of civil authority during selected plagues of the 14th–17th century against the value for a casualty based entropy. The entropy is computed from time series of mortality data taken from the historical record of the selected period. This contribution builds upon previously published work in which entropy, computed from military casualties, becomes a predictor of combat outcome. The conjecture is advanced that mortality based entropy calculations reveal the impact of the plague mortality on societal structure Comparison with the work of Dupaquier on the scaling crises is made. Suggested extensions to additional societal phenomena are advanced.
Link 

quinta-feira, janeiro 30, 2020

A ferrovia e as bitolas




Para mim é inconcebível como andamos há anos a discutir o sexo dos anjos em matéria de ferrovia


1) A Espanha decidiu ter um nova rede ferroviária (bitola UIC—ver mapas) compatível com o resto da Europa e do mundo (apesar de problemas de 'interoperabilidade' existentes noutros países que, também, terão que fazer mudanças, para não perderem os comboios...) Esta rede ligará progressivamente todas as principais cidades espanholas, nuns casos com linhas mistas para passageiros e mercadorias, noutros apenas para passageiros; todas são obviamente electrificadas. A sua incompatibilidade com a antiga rede de bitola ibérica, e por conseguinte com a nossa rede do século 19, é total e irredutível. Quando chegaram as locomotivas a diesel e depois as movidas a eletricidade, o carvão foi posto de parte. Pois bem, a nova rede ferroviária europeia implica, pura e simplesmente, a substituição progressiva da bitola ibérica, começando por construir as novas vias férreas do chamado Corredor do Atlântico, aprovado por Bruxelas, Madrid e Lisboa. Só Portugal não respeitou os protocolos e os acordos assinados.



2) Há muito que se sabe que assim que a nova rede UIC estiver a funcionar em Espanha, os espanhóis irão desativar paulatinamente as linhas de bitola ibérica redundantes, pois são anti-económicas, ambientalmente indesejáveis, e ficarão sem procura.

3) Esta substituição de 'standards' ferroviários irá inevitavelmente produzir roturas de carga entre Portugal e Espanha, forçando a paragem dos nossos comboios na fronteira, para transbordo de passageiros e carga para os comboios da nova rede UIC. Por isso a Espanha irá construir portos secos em Vigo, Salamanca e Badajoz. No nosso país, o lóbi rodoviário, assim como a Takargo e a Medway, que ficaram com uma parte da CP, continuam a pressionar e a corromper os governos para que protejam os seus pequenos monopólios anti-económicos e anti-ambientais.

4) Portugal até agora, isto é, enquanto a Espanha ergueu a segunda maior rede de Alta Velocidade do mundo, não fez rigorosamente nada. Mas deu milhões de euros ao próspero negócio dos estudos e assessoria.

5) Pior, deitou à rua centenas de milhões de euros do BEI e dos QCA dotados para a participação portuguesa nas redes europeias de transporte ferroviário. Em nome de quê? Em nome, obviamente, de esquemas serôdios, condenados a prazo, tal como condenados estiveram desde início a corrupção e o atavismo do PS, PSD, CDS e PCP em matéria de aeroportos e TAP. O sucesso da privatização da ANA (imposta pelos credores) demonstrou que o velho corporativismo e o sistema partidário, além de roubarem e atrasarem o país, continuam sem perceber porque foram atropelados pela realidade. A falência do sistema financeiro português é tão só a consequência da impunidade de um regime que em pouco se distingue do angolano.

6) Se o jovem ambicioso que escorregou no poço das Infraestrutura der luz verde à ligação Évora-Caia em via única, e bitola ibérica, teremos outra vez asneira, duplicação de despesas e, por fim, a humilhação de ver um dia destes a Espanha e Bruxelas dizerem a Portugal que terá mesmo construir a famosa rede TGV. Nesta andarão comboios muito rápidos, rápidos e lentos, por exemplo, de mercadorias. A rede AV/VE é uma autoestrada ferroviária. E tal como nas auto-estradas rodoviárias, tanto andam por lá os Renault Clio, como os Maserati de que o esquerdista do PS, Pedro Nuno Santos, tanto gosta.

7) Por fim (nota de rodapé para a história desta democracia falida), João Cravinho foi e é o principal responsável estratégico do isolamento ferroviário do país. As lesmas e os vigaristas que por cá se movem agradecem.

terça-feira, janeiro 28, 2020

Um novo rizoma chamado MNAC

Graça Fonseca, Ministra da Cultura
Foto original: Pedro Sarmento Costa/Lusa, modificada por OAM


Por uma média de 25 mil euros por obra (19 mil euros por obra portuguesa) o Estado que nacionalizou o BPN compra por 5 milhões de euros 196 obras de arte... ao mesmo Estado. Ou seja, uma soma que na contabilidade pública e orçamental é igual a zero, suponho. 

A Parups e a Parvalorem que administram a massa falida do ex-BPN conseguem assim livrar-se de mais um dossier difícil de gerir. Leiloar as 196 obras teria tido seguramente um resultado menos expressivo, por comparação com os valores de mercado actuais da maioria dos artistas em causa, e ainda porque, em geral, os leilões de arte contemporânea são muito voláteis e penalizam frequentemente os artistas vivos. Ou seja, com esta solução, o Estado 
  • vende a si mesmo um pequeno património cultural que vai servir de acervo inicial dum futuro museu de arte contemporânea em Coimbra (mais um pólo na metamorfose em curso do já policêntrico Museu Nacional de Arte Contemporânea seria a medida mais acertada), 
  • os gestores do buraco negro gerado pelo colapso do poço de corrupção chamado BPN melhoram os resultados da sua gestão e, por fim, 
  • o Ministério da Cultura protege o mercado local da arte contemporânea e os artistas portugueses em atividade.
Já agora, é tempo de resgatar também toda a coleção da Privado Holding/João Rendeiro/Fundação Elipse/ Branco Privado Português, e resolver o imbróglio jurídico em volta da coleção do Museu Berardo. Uma vez que o Estado não consegue recuperar o metal perdido (somos nós que o estamos a pagar com uma austeridade que durará provavelmente até ao fim deste século!), recuperemos, pelo menos e para já, as obras de arte arrestadas, diminuindo assim o esbulho praticado. Estes acervos, bem administrados e expostos no que seria então um grande Museu Nacional de Arte Contemporânea em rede de norte a sul do país, começaria desde logo a render entradas e outras receitas, além de melhorar substancialmente a educação artística e o negócio turístico-cultural que continua a expandir-se no nosso país. Se Graça Fonseca prosseguir este caminho deixará seguramente uma boa marca na governança cultural deste Portugal atulhado em escândalos.

PS: Ouvi dizer entretanto dizer que a Ministra da Cultura nomeou o Delfim Sardo (que recentemente transitou da Culturgest/Caixa Geral de Depósitos para o CCB) responsável de todos os assuntos das coleções de arte contemporânea do Estado! Mas quem é este senhor? Não existem no Estado instâncias responsáveis pelo património cultural do país? Temos um estado de direito, ou uma chafarica tribal?

Referências

sexta-feira, janeiro 24, 2020

Angola, in cold blood

Tchizé dos Santos, filha de José Eduardo dos Santos, ex-presidente de Angola

Uma mudança de guarda não tem que ser o fim do mundo


Carlos Costa, Fernando Teixeira Santos, Francisca Eugénia da Silva Dias Van Dunem, Isabel dos Santos, João Lourenço, Jorge Brito Pereira, José Eduardo dos Santos, Leopoldino Fragoso do Nascimento, Lopo Fortunato Ferreira do Nascimento, Manuel Domingos Vicente, Mário Leite da Silva, Nuno Ribeiro da Cunha, Paula Oliveira. O que é que estes nomes e apelidos têm em comum? Pois é, são todos portugueses!

A proximidade entre os dois países, Portugal e Angola, é umbilical e às vezes visceral. A separação da antiga colónia ocorreu em 1975. Não foi, porém, o resultado de uma vitória militar dos movimentos nacionalistas que combatiam os portugueses, mas sim do largar de lastro por parte de uma velha potência colonial cujo colapso foi precipitado por um golpe de estado militar seguido de uma revolução democrática com muito ruído marxista-leninista pelo meio.

Apesar do Acordo de Alvor (janeiro de 1975), que estabelecia as bases para uma partilha de poder entre os principais movimentos de guerrilha anti-colonial), houve uma corrida sangrenta em direção à soberania que os portugueses anunciaram desejar entregar ao “povo angolano” (A Guerra Civil em Angola: 1975-2002, de Justin Pearce). Em 1975 o meu pai percorreu Angola de lés a lés enquanto oficial superior do exército português, recolhendo material militar, parte do qual viria a ser distribuído mais tarde, por ordem do MFA (que então mandava nas Forças Armadas Portuguesas), ao movimento de Agostinho Neto. A base de operações estava sediada em Luanda. Num dos aerogramas que o meu pai regularmente enviava à minha mãe, creio que do mês de agosto de 1975, descrevia já a confusão de uma guerra civil que começara a ganhar forma entre o MPLA, a FNLA e a UNITA, mesmo antes da dupla declaração de independência de 11 de novembro de 1975, pelo MPLA, por um lado, e pela aliança FNLA-UNITA, por outro. As atrocidades desta guerra civil estarão um dia na Wikipédia, mas entretanto a prioridade foi, depois da eliminação de Jonas Savimbi, sarar as feridas de uma guerra entre angolanos que durou quase trinta anos (1975-2002), mais do dobro da guerra colonial. Podemos, pois, afirmar que o estado soberano de Angola tem menos de vinte anos de soberania efetiva (quarenta cinco, se olharmos apenas para a declaração formal de independência). Basta pensarmos nos cinco reinados e mais de um século que Portugal precisou para chegar do Minho até ao Algarve, para se perceber que a criação do estado angolano, apesar de ser decalcado, sem roturas nem perdas, da antiga província ultramarina portuguesa, demorou pouco mais do que um relâmpago de História.

Se não tivermos presente este alucinante tempo angolano, será difícil compreender a nova luta de poder em curso depois da saída de José Eduardo dos Santos da presidência de Angola. A fome existe em Angola, mas não é certamente culpa de uma só mulher, por mais rica que seja. A cleptocracia não foi um regime criado e imposto por José Eduardo dos Santos, mas antes o resultado inevitável (e esperemos que temporário) de um parto difícil.

Basta pensar um bocadinho. Em 1975 todas as grandes riquezas e infra-estruturas de Angola faziam parte integrante do Estado português: o céu e o mar angolanos, as terras e os rios, o petróleo de Cabinda, os diamantes da Lunda, o minério de ferro da Huíla, os portos atlânticos, os caminhos de ferro e as estradas, as cidades... De 4º produtor mundial de café, Angola, por causa da guerra civil, viu perder mais de 95% deste produto de exportação que emprega milhares de pessoas. Ou seja, entre 1975 e 2002 (assassínio de Jonas Savimbi) a nova acumulação primitiva e a formação das novas elites angolanas foi, no mínimo, um processo atribulado, com esmagadora vantagem para a família do MPLA, na medida em que foi este movimento, apoiado militarmente por Cuba, que venceu a guerra civil. Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo, ou não tem arte. Não é cinismo, é a dura realidade de sempre.

Em minha opinião, o Luanda Leaks culmina um ataque concertado contra a família dos Santos, organizado friamente pela nova elite que se tem vindo a formar e/ou reagrupar em volta do actual presidente angolano, com a ajuda, presumo, do senhor Manuel Vicente, o tal que a PGR e o governo portugueses entregaram à justiça angolana para se livrarem dum incómodo de Estado. À época, o caso de corrupção contra o então vice-presidente de Angola e patrão da Sonangol (1)—um monopólio petrolífero que acumulara, apesar deste estatuto, uma dívida de 20 mil milhões dólares— era medonho, mas hoje Manuel Vicente é o homem forte do presidente João Lourenço, e o caso judicial que transitou da PGR portuguesa para a PGR angolana foi ganhando pó na secretaria de um sistema de justiça decalcado do nosso. Em breve prescreverá. Cleptocracia com cleptocracia se paga.

Não sabemos até onde irá esta nova guerra que já causou uma vítima mortal no nosso país. Mas seria bom seguir o conselho doutra visada pela luta anti-corrupção, promovida, dizem, pelo novo presidente angolano. Refiro-me a Tchizé dos Santos (1), filha de ZEDU, o ex-presidente que velho e doente se retirou para Barcelona, onde pode contar com a assistência médica de que necessita.


NOTAS

  1. A Sonangol, que acaba de adquirir os 25% que a Oi detinha na UNITEL, fica agora com 50% desta empresa detentora de mais de 90% do mercado de telecomunicações angolano. Isabel dos Santos e o general Leopoldino do Nascimento têm cada um 25%. A situação continua empatada, mas agora claramente favorável à Sonangol, i.e. ao novo poder de Luanda.
  2. A mensagem de Tchizé dos Santos para a sua irmã Isabel dos Santos é uma prova de equilíbrio e realismo. Diz, no essencial, isto:

    “Vamos resolver isso, Angola é de todos, vamos resolver o problema do país”.

    “Como cidadã, esquecendo que sou irmã da engenheira Isabel, eu, sabendo que tem ativos em Angola e fora, eu se estivesse no lugar da cidadã Isabel dos Santos, mesmo que o dinheiro fosse todo lícito, o Estado angolano está a deixar muito claro que precisa urgentemente que a engenheira Isabel transfira algumas divisas para Angola”.

    “O que está em causa é a dívida de 75 milhões? Pague, então, se estão pedir euros e não querem kwanzas, apesar de um Estado, normalmente, querer receber na sua moeda, mas se precisa de dólares e está a pedir à cidadã, a cidadã que mais beneficiou das oportunidades de negócio em Angola, está na hora de a cidadã retribuir tudo o que o Estado lhe proporcionou, propiciando que fizesse grandes negócios e tornar-se a mulher que é hoje... pronto, mande dinheiro para Angola”.

    Segundo a agência Lusa, na mesma declaração, a filha de José Eduardo dos Santos diz ainda que “quanto mais não fosse em consideração aos trabalhadores [das empresas de Isabel dos Santos], devia tentar negociar um valor a transferir para Angola para fazer novos investimentos, ainda que o dinheiro seja todo ele lícito, ainda que a única coisa em causa seja os 75 milhões que foram pagos em kwanzas à Sonangol, e que a Sonangol devolveu, e que agora tem de se voltar a pagar”.

    “Mais vale dar os 75 milhões de dólares ou euros como o Estado quer e para além disso, em demonstração de boa fé, faça um investimento, transfira para o país euros, dólares, para fazer investimento”, diz, dizendo à irmã que construa uma Universidade Isabel dos Santos ou um hospital privado de grande dimensão.

    “[Isabel devia dizer que] ‘para além de tudo o que já investi e os empregos que já gerei, e apesar de toda esta confusão, é o Presidente da República que manda, quer mais investimento, já mostrei que não há ilicitude nenhuma (...) pronto, há o tal contrato do Dubai, mas aquilo ainda não é prova de ilicitude, a menos que aquilo que a senhora Paula [Cristina Neves Oliveira, administradora não executiva da operadora de telecomunicações NOS] assinou esteja a ser usufruído pela engenheira Isabel dos Santos, mas acho que a senhora Paula fez o contrato, prestou os serviços, recebeu o dinheiro, pode haver uma questão moral mas não é crime”, refere a mesma declaração, de acordo com a agência noticiosa.

sábado, janeiro 18, 2020

Joacine e a agenda pós-colonial

Joacine Katar Moreira e Rafael Esteves Martins

Joacine Katar Moreira tem votos e programa suficientes para fundar um partido radical de tipo novo


“O facto é este: desde a minha eleição que eu venho a ser sucessivamente confrontada com a restrição da minha liberdade de escolha, o que começou imediatamente com a definição do gabinete na Assembleia da República e o facto é que isto também não é cultura do Livre, porque no Livre ninguém toma decisões por ninguém. Oficialmente, a deputada única eleita — está regulado — é que escolhe as pessoas da sua confiança pessoal”. — Joacine Katar Moreira

O Livre é um partido de aviário. O aviário neste caso tem sido o Público e a RTP. O seu líder e fundador é Rui Tavares, ex-deputado eleito pelo Bloco em Bruxelas, que abandonaria o BE em pleno mandato europeu, para ser livre, supõe-se. Agora, o tiro saiu-lhe pela culatra. O Livre tentou instrumentalizar (a queixa vem de Joacine) uma intelectual negra, ainda por cima gaga, para atrair uma boa votação nas últimas legislativas, em nome das ideologias politicamente corretas. Conseguiu a eleição, mas a passarinha saiu da gaiola, voou, e é agora verdadeiramente livre para criar um partido focado nas minorias africanas e afro-descendentes, e no anti-racismo, na anti-xenofobia, etc., sem precisar do paternalismo de Rui Tavares. O Livre lançou um partido novo, mas à primeira dificuldade revelou-se um partido como os outros, centralista, hierárquico, autoritário. Os deputados, pelas definições antigas, não têm cabeça.

A população estrangeira com estatuto legal de residente em Portugal originária de África, em 2018, somava 89.771 pessoas. Oriundas da Guiné-Bissau, terra onde Joacine Katar Moreira nasceu, eram no mesmo ano 15.960. Juntando a esta população imigrante os chamados afro-portugueses, cujo número se desconhece, é possível que haja em Portugal mais de 150 mil naturais e residentes de origem africana que se distinguem da maioria branca pela sua cor negra, mulata ou morena. Joacine foi escolhida por 22.807 eleitores. O Livre recolheu 55.660 votos no cômputo nacional. Estes números dão que pensar...

Creio que a sua negritude, e ainda o facto de ser mulher, gaga, mas também doutorada e ativista anti-racista e especialista em temas pós-coloniais, lhe conferem um perfil ímpar na paisagem político-partidária e eleitoral indígena. O país não percebeu, e os comentadores ainda menos, esta originalidade. Preferiram reagir por instinto à performance política e ideológica da jovem deputada, com resultados desastrosos, revelando (quem diria!) um mal  disfarçado racismo.

A crise no Livre é o resultado desta colisão cultural. Afinal, nós, portugueses, herdeiros dum dos maiores e mais duradouros impérios coloniais que o mundo conheceu, perdido há escassos quarenta e cinco anos, não incluímos na nossa agenda a imprescindível catarse pós-colonial, isto é, a necessidade de conhecer a verdade dos factos e das interpretações, reconhecendo o óbvio: alguns de nós, os nossos pais, avós, bisavós e tetravós tratámos os negros como escravos e animais durante séculos! Ou se não tratámos, e a maioria não tratou, vimos tratar e aceitámos uma situação de exploração, discriminação racista e crueldade cultural sem precedentes. Ainda não pedimos desculpa aos africanos por este passado atroz. É preciso fazê-lo, por dever cultural, para que as feridas possam sarar, e para que não se repitam, nem sequer em pensamento, as desconsiderações passadas para com pessoas que nos habituámos a considerar inferiores, simplesmente por parecerem diferentes e terem culturas distintas da nossa. A diferença rácica entre humanos não existe. Foi uma dessas invenções europeias, dita científica, que serviu sobretudo a Cecil Rhodes e aos governos, com a Alemanha à cabeça, para promoverem, nomeadamente depois da Conferência de Berlim de 1884-85, a grande esquadria e a grande carnificina africanas.

Os estudos pós-coloniais, tal como os estudos de género, desenvolveram-se consistentemente nas últimas quatro décadas. No Portugal conservador que ainda domina o país, esta evolução intelectual e crítica recente tem passado despercebida, apesar da aprovação do chamado casamento gay e da militância da deputada socialista Isabel Moreira. Até esta crise no Livre ocorrer desconhecíamos esta evolução cultural em toda a sua dimensão e importância, sobretudo no que se refere à intolerável persistência de uma clara discriminação racial substantiva na nossa sociedade. Mas ao contrário da luta contra a discriminação de género, a luta contra a discriminação racial conta com o apoio institucional e político crescente dos novos países africanos—o que faz uma grande diferença, apesar da senhora Ana Gomes ainda não ter dado por isso. África é o continente mais jovem do planeta e aquele onde se regista e registarão as maiores taxas de crescimento demográfico nas próximas décadas: 2019: 1,1 mil milhões de residentes; 2030: 1,4 mil milhões; 2050: 2,5 mil milhões; 2100: 3,8 mil milhões, mais de 1/3 da população mundial, China, Índia, Paquistão, Rússia e Europa juntos (previsões da ONU). É tempo de acordarmos!


REFERÊNCIAS

JOACINE KATAR MOREIRA

Bissau (1982). Feminista e activista negra. É Doutora em Estudos Africanos, cuja tese tem como título “A cultura di matchundadi (masculinidade/virilidade) na Guiné-Bissau: Género, Violências e Instabilidade Política”. Investigadora do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, possui uma licenciatura em História Moderna e Contemporânea - vertente de Gestão e Animação de Bens Culturais e um mestrado em Estudos do Desenvolvimento. A sua perspectiva é interdisciplinar, trabalhando em simultâneo sobre questões de Género, violências e ciência política, História, Estudos Africanos e questões do Desenvolvimento em geral. Possui vários artigos publicados e tem participado activamente no debate público sobre o racismo, o colonialismo e a Escravatura em Portugal. É presidente e fundadora do INMUNE - Instituto da Mulher Negra em Portugal, uma entidade que luta contra a invisibilização e o silenciamento de mulheres, jovens e meninas negras na História e no tempo presente.


UM ARTIGO DE JOACINE KATAR MOREIRA

A falácia do “racismo inverso”


A atenção. “Attenção: Vende-se para o mato uma preta da costa de idade de quarenta e tantos annos, muito sadia e bastante robusta, sabe bem lavar e cozinhar o diário de uma casa, vende-se em conta por haver precisão, no beco Largo, n. 2. Na mesma casa vende-se uma tartaruga verdadeira.” 
O protesto. “Protesta-se com todo o rigor das leis contra quem tiver dado, e der coito a escrava do abaixo assignado, fugida de seo poder na freguezia do Queimado desde 7 de fevereiro do corrente anno; e gratifica-se, conforme a trabalho da captura, á quem a prender, e levar ao dito seo senhor ali, ou mete-la nas cadêas da capital. […] Levou uma filha de sua côr, que terá pico mais de anno de idade do Padre Duarte. 
A fuga. “Escravo fugido. Acha-se fugido desde o dia 3 de março passado, o escravo de nome Joaquim, de nação Congo, edade 61 annos, mais ou menos, côr preta, cabelos brancos, tanto os da barba como os da cabeça, olhos grandes, bons dentes, bastante baixo, tendo o dedo grande da mão direita mutilado.”

Estes excertos, expostos no Memorial da Escravatura e do Tráfico Negreiro, em Cacheu — importante entreposto comercial de escravizados na Guiné-Bissau —, ilustram a forma como as relações raciais, fruto do colonialismo e da Escravatura, passaram da “diferença negativa à coisificação do Africano” (Isabel C. Henriques), comparado, tratado e marcado como animal doméstico, de carga e de serviço, retirando-lhe toda e qualquer dignidade e submetendo-o às mais brutais violências e, com o tráfico negreiro, sujeito a uma desumanização de difícil equiparação na História mundial. A vida média de uma pessoa uma vez escravizada era, aliás, de dez anos, como observou António Carreira em Notas sobre o Tráfico Português de Escravos, de 1978.

O comércio transatlântico de pessoas escravizadas foi legal e sujeito a impostos como qualquer outra transação. A Igreja Católica suportou religiosa e moralmente a Escravatura, que tinha propósitos essencialmente comerciais e políticos. Mais tarde, a Revolução Industrial, cujo motor foi o algodão (Sven Beckert) — algodão este cultivado por gente escravizada nas Américas, como recordou Noam Chomsky —, originaria o fim legal do tráfico, mas não o da Escravatura, que servia a industrialização e o desenvolvimento a Ocidente por mais algum tempo. Marcus Rediker destaca a centralidade da Escravatura e do trabalho forçado no surgimento do capitalismo, considerando que “os navios negreiros foram o vector da produção das categorias de ‘raças’”. E é deste contexto que surge o que denominamos de racismo, uma opressão histórica, violência sistémica, uma relação de poder e de profunda desigualdade. E é por isso que o racismo está intrinsecamente, e historicamente, ligado à inferiorização dos negros (e não dos brancos).

Neste quadro, acreditar na existência de “racismo inverso”, ou seja, no racismo dos oprimidos para com os opressores, exigiria, como ironizou o comediante Aamer Rahman, que entrássemos numa máquina do tempo que revertesse a História e alterássemos as posições de poder. Mas não há forma de reverter a História, mesmo com tentativas várias de naturalizá-la, de negá-la ou de manipulá-la. Torna-se pois importante ter atenção ao tempo em que vivemos, onde se continua a insistir em paradigmas do passado, recusando-se mudanças estruturais.

Avalizar o “racismo inverso” é tentar boicotar o movimento anti-racista, silenciar as vozes negras e subalternizadas que legitimamente se levantam, tentando também reduzir o racismo a uma questão de “natureza humana”, portanto natural. Em tal equação toda a gente pode ser racista com toda a gente, esquecendo que nesse “toda a gente” há gente que oprime e gente que é oprimida; há gente que detém o poder e gente que luta pela visibilidade dentro das sociedades em que se encontra; e há gente que usufrui ainda hoje do privilégio da herança escravocrata e gente que, pelo contrário, carrega esse fardo, que se traduz na segregação racial, na pobreza e na exclusão social.

A atenção. As associações de afrodescendentes caracterizam o “racismo inverso” como “uma tentativa de legitimação do contínuo controlo exercido sobre povos que sofreram séculos de opressão, por medo de uma hipotética retaliação” (AFROLIS); “uma construção daqueles que pretendem fugir à discussão do verdadeiro problema: o racismo estrutural” (DJASS); “um modo de mascarar o racismo perverso e silencioso em que vivemos” (FEMAFRO); “uma reação por parte de quem deseja preservar uma estrutura racista que lhe confere certos privilégios” (PLATAFORMA GUETO). Sintetizando: “o racismo inverso não existe”, sendo que o que existe é ”uma resposta de ‘auto defesa’ de quem sofre a discriminação racial” (SOS RACISMO).

O protesto. O racismo implica uma expressão colectiva marcada pela história, pelo poder e pelo epistemicídio africano, o que faz com que mesmo quando é protagonizado por um só indivíduo, este fá-lo com base num contexto que sustenta e demarca historicamente o seu comportamento. Um negro pode discriminar e ser preconceituoso com um branco, mas não pode ser racista com ele, porque este último não tem estruturas (históricas, politicas, económicas e sociais) que o oprimam com base no seu fenótipo.

A fuga. Aos que acreditam na falácia do “racismo inverso” ou na subtileza do racismo em Portugal, repito o exercício que Jane Elliot fez com a plateia de uma conferência nos EUA: quem gostaria de ser tratado como os negros são tratados neste país, que se levante!


—artigo originalmente publicado no jornal Público 13/7/2017 por Joacine Katar Moreira

sexta-feira, janeiro 17, 2020

Montijo e a manha de alguns engenheiros

TAP, A330-200 no aeroporto do Funchal, Madeira

Nem Alverca, nem bitola ibérica Évora-Elvas/Caia!


Vi finalmente o programa Negócios da Semana desta 4F sobre o “regresso das grandes obras públicas”. Muito bom, mas deixando dúvidas no ar. Faltou alguém para desmontar alguns argumentos manhosos e mentiras.

Duas confusões foram lançadas para o ar:

1) que os widebodies não podem usar o Montijo...
2) que a bitola ibérica vai permanecer em Espanha para o transporte ferroviário de mercadorias.

1) Se a primeira premissa fosse totalmente verdadeira (é parcialmente verdadeira) poderia colocar graves problemas à TAP. Por exemplo, para onde se desviaria um A330 da TAP se, por qualquer motivo, não pudesse aterrar na Portela?

A resposta é esta: não há problema de pista (runway) para os A330, pois estes exigem um comprimento de aterragem/descolagem mínimo de 2.070 m, e a futura pista do Montijo terá 2.147 m. Além desta alternativa, existem outros aeroportos próximos para desviar os aviões de longo curso de grande porte em caso de necessidade: Porto e Sevilha, por exemplo.

Eliminada esta dúvida esfuma-se a pista molhada de Alverca/Mouchão da Póvoa, uma lebre suicida procurando regressar ao Campo de Tiro de Alcochete (1).

2) No que toca à ferrovia é óbvio que a Espanha vai manter boa parte da sua rede de bitola ibérica, tal como manteve boa parte da sua rede de estradas quando construiu as suas autovias e autoestradas.

O que se passa é outra coisa, que o Viegas escondeu: a nova rede de bitola europeia (UIC), na sua maioria destinada a passageiros, mas que prestará serviço misto (passageiros e carga) nos principais eixos de ligação a França/UE, atropelará e desativará centenas de Km de linhas de bitola ibérica, ou por estarem demasiado próximas da nova rede, ou por simplesmente se tornarem rapidamente anti-económicas por efeito da atração exercida pela rede UIC.

A ilha ferroviária portuguesa só interessa ao PCP e seus sindicatos, aos suíços da Medway (que comprou a CP Carga), e à Takargo/Mota-Engil. São estes que apostam e conseguiram convencer mais um ministro ignorante e cabotino da bondade da nova ligação ferroviária (do século 19) que vai nascer entre Évora e Elvas/Caia. Ninguém explicou ao ministro, que inicia assim o seu calvário para nenhures com esta decisão, que o que deveria ter feito era falar com a Autoeuropa sobre o assunto, e sobretudo com o consórcio Elos para recuperar um contrato incumprido que pesará uma boa centena de milhões no orçamento do Estado, deste ou dos próximos anos. A recuperação do projeto de ligação ferroviária de Alta Velocidade entre o Pinhal Novo e Caia teria sido certamente prova de que o novel ministro sabe o quer e tem verdadeiramente tomates para seguir a razão, em vez de começar tão cedo a arrastar-se no pântano dos interesses particulares e da corrupção. Só falta agora acompanhar o seu patrão no devaneio pueril de produzir combóios como se fossem bolas de berlim. Produzir?!

O pequeno monopólio ferroviário indígena não tem utilidade pública, muito menos estratégica, mas serve os interesses de algumas empresas, de alguma corja partidária e sindical, e das desmioladas empresas de camionagem (TIR) defendidas por um advogado do PS, claro.

Duvido cada vez mais que esta geringonça chegue ao fim do mandato. Alternativas, precisam-se!


NOTAS

  1. Toda a polémica que se arrasta há décadas em volta do NAL, primeiro pela opção Ota (a que verdadeiramente garantiria o fecho da Portela!), depois pela opção Campo de Tiro de Alcochete, tem um único propósito: fechar o aeroporto da Portela, e com os dinheiros da venda dos terrenos financiar um novo aeroporto em terrenos entretanto comprados pelo especuladores e corruptos do regime. Um dia que a Portela seja fechada, porque o tráfego aéreo ou outras circunstâncias a tal obriguem, a verdadeira alternativa já foi devidamente estudada e publicada em 1973, por equipas técnicas sérias e profissionais do então governo de Marcello Caetano. Chama-se Rio Frio, um aeroporto com quatro pistas. Esta solução nunca irá para a frente, porém, antes de 2040 ou 2050. Ou seja, bem depois dos lóbis do NAL (na Ota e em Alcochete) estarem enterrados e os seus calotes, ou parte, terem sido absorvidos pelos contribuintes na forma de perdões e resgates bancários. As cleptocracias são assim... Pedro Nuno Santos disse numa entrevista ao Expresso desta semana que a venda da Portela à Vinci tinha sido um mau negócio, e que quer mais dinheiro. António Costa não tem certamente a mesma opinião deste pedinte da Geringonça II, pois deram-lhe muito jeito os 250 milhões de euros que a venda da Portela rendeu à então sobre-endividada Câmara Municipal de Lisboa!

SOBRE AS FALÁCIAS DOS DEFENSORES DE ALCOCHETE MASCARADOS DE DEFENSORES DO MOUCHÃO DE ALVERCA

Futura pista do Aeroporto do Montijo: 2.147 m

A Ryanair só possui aeronaves Boeing 737-800.
Comprimento de pista necessário (Runway): 2.070 m.
Escusam, pois, os aldrabões de Alverca de atirar areia aos olhos dos indígenas.

Comprimento de pista necessário para os aviões Widebody/Longo Curso da série A330-200 (o maior avião usado pela TAP) é de 2.070 m. Os Boeing 787, da mesma classe, precisam de 2.538 m, ou seja, não aterram, nem descolam do Montijo (mau para a Boeing, mas bom para a Airbus!) — Referências.

Comprimentos de pista em alguns aeroportos

Aeroporto de Lisboa, Portela, Pista 03/21: 3.805 m
Aeroporto de Lisboa, Portela, Pista 17/35: 2.400 m (desativada)
Aeroporto Sá Carneiro, Pista 17/35: 3.480 m
Aeroporto do Funchal Pista, 05/23: 2.777 m
Aeroporto do Porto Santo, Pista 18/36: 3.006
Bruxelas, Charleleroi, Pista 07/25: 2.550 m
Berlin Tegel, 08L/26R: 3.023 m
Berlin Tegel, 08R/26L: 2.428 m