quarta-feira, junho 18, 2008

Portugal 28

Morte súbita

A produção de petróleo per capita começou a declinar de forma consistente em 1979, e o início da queda absoluta da produção a nível global começará, segundo Richard C. Duncan, em 2006 (a uma taxa de 2.45% ao ano, durante 34 anos!). Quer dizer, daqui a um ano e meio, poderemos estar já a lidar com preços de crude na ordem dos 100 dll/barril. Em 2008, ainda segundo as previsões de Duncan, as reservas de países como os EUA, México, Noruega, Angola, Rússia, Afeganistão, Urzebequistão, Azerbeijão, etc., começarão a decair mais depressa que as reservas da OPEC (Venezuela, Nigéria, Líbia, Argélia, Arábia Saudita, Emiratos Árabes Unidos, Qatar, Kwait, Irão, Iraque e Indonésia), colocando estes países numa clara posição de supremacia energética, mas também no centro de gigantescas disputas estratégicas. -- O António Maria, 16-10-2004.

Uma das coisas boas que me acontece quando viajo, ou emigro temporariamente, é a quase completa ausência de notícias sobre Portugal. Exceptuando o que a CNN diz sobre o belo Cristiano e a selecção nacional, ou no caso desta minha viagem a Pequim, a presença fotográfica da pianista Maria João Pires na galeria dos grandes músicos e intérpretes musicais do século 20 e da actualidade, que tive oportunidade de admirar no novo e espectacular Centro Nacional de Artes Performativas, a amnésia é total e terapêutica. Quando regresso ao meu país, depois de um safari marroquino ou de uma massagem chinesa nos pés, o meu país, sob o impacto sempre extraordinário do sobrevoo da cidade e aterragem na Portela, parece-me invariavelmente lindo e apetecível. O pior, como me confiava há anos um professor português de economia ao serviço da Universidade de Manchester, é o que vem depois de encararmos a bicha dos táxis!

Regressado à capital, recebido desta vez por um taxista diligente e profissional, e a não menos saborosa vitória da selecção portuguesa sobre a temível República Checa, fui sendo informado, pelo mesmo taxista, da paragem cardíaca que afectara a parte nevrálgica do sistema circulatório do país: transporte rodoviário de mercadorias, transporte aéreo e veículos prioritários (ambulâncias e carros de bombeiros, veículos policiais e aviões.) As bombas de carburante e as prateleiras dos supermercados esvaziaram-se rapidamente. O Governo, a Presidência da República e a Oposição ficaram em estado de choque (foi o que nos salvou!)

O acidente vascular rodoviário fora inesperado e repentino. Reagir a quente, com forças policiais ou com uma requisição civil precipitada (como aventaram depois as araras profissionais da Pedratura do Círculo), poderia ter incendiado o país. Manuela Ferreira Leite esteve certamente à altura da crise, não lançando nenhuma gasolina para a fogueira. O dromedário-mor do reino e o primeiro-ministro portaram-se bem (Aleluia!) na condução das negociações que permitiram enfim libertar o país do sufoco momentâneo. Como que acordando lentamente de um desmaio, saiu-se da paragem cardíaca sem mazelas de maior no tecido sociológico do país. Até ver...

Nem sequer durante os dois inesquecíveis e convulsivos anos da Revolução dos Cravos houve semelhante possibilidade de uma morte súbita do sistema político. Perante a gravidade da crise e a manifesta apatia de todo um Estado diante da primeira prova iniludível do colapso do actual modelo energético mundial, a classe política vai finalmente acordar para os cruciais desafios políticos que temos pela frente, não daqui a dez ou vinte anos, mas já.

Nada fará baixar a curva ascendente dos preços da energia, das matérias primas, da água e dos alimentos básicos. O petróleo continua e continuará a subir independentemente das viagens aflitas de Condoleezza Rice e George W. Bush à Arábia Saudita, independentemente das pressões ilegítimas e hipócritas do G7 sobre a China (mas não sobre o carry-trade do hiper-proteccionista Japão, principal casino da especulação financeira ocidental), independentemente das ameaças de ataque nuclear ao Irão (por parte dos idiotas israelitas, americanos, ingleses e franceses.)

A Ásia autonomizou-se definitivamente do Ocidente, tornando-se a outra metade estratégica do mundo. A globalização acabou. Falta tão só evitar a III Guerra Mundial, e assinar um novo Tratado de Tordesilhas, balizado agora por dois novos meridianos, algures entre o Japão e a metade oriental de África. Mas para que esta nova partilha seja viável é absolutamente necessário que o Médio Oriente petrolífero fique fora do tratado, como se de uma Suiça energética se tratasse. Isto implicará, por outro lado, parar imediatamente a lógica suicida da Organização Mundial de Comércio (WTO), regressando-se a um regime de pautas aduaneiras que permita uma competição colaborativa das economias, mais equilibrada e menos injusta. Encurralar a Europa e os Estados Unidos numa competição impossível com a mão-de-obra barata, a planificação centralizada e autocracia dos principais países asiáticos (China, Japão e Coreia do Sul) será o caminho inevitável para uma III Guerra Mundial. E se uma tal tragédia ocorrer, não tenhamos dúvidas sobre um ponto: a Europa e os Estados Unidos serão aliados. Procurarão a neutralidade da Rússia e atacarão sem dó nem piedade os três tigres asiáticos. Pode ser o fim do mundo descrito pelo Apocalipse!

Regressando a Portugal, diria que a iminência de uma morte súbita do sistema político foi demonstrada à saciedade pelos impactos sucessivos das revoltas dos professores e das empresas de transporte rodoviário, revoltas essas que, por sua vez, mostraram o grau de acomodação, inépcia, burocratização e corrupção do associativismo sindical e empresarial dominantes. No caso do boicote rodoviário (que nada tem que ver com o lockout a que se refere Mário Soares num artigo aliás notável sobre a mesma crise, publicado no DN de 17-06-2008), o que esteve realmente em causa foram quatro circunstâncias concorrentes para a aflição e indignação dos pequenos e médios transportadores de mercadorias, responsáveis pela maior fatia do transporte e do emprego neste sector estratégico da nossa economia:
  1. A subida imparável dos preços dos carburantes, sobre os quais recaiem impostos oportunistas. O ISP não tem nenhuma justificação a partir do momento em que terminou a conjuntura do petróleo barato, pelo que é de defender desde já a sua supressão pura e simples. Por outro lado, a excessiva carga do IVA terá que baixar e ser harmonizada o mais depressa possível com a Espanha. Este assunto, pela sua extrema gravidade, terá mesmo que ser separado da questão do défice...
  2. A inflação, a subida dos juros e o tremendo impacto da crise financeira mundial sobre a economia espanhola (com particular ênfase na queda, em mais de 30%, do respectivo sector imobiliário) está a asfixiar uma parte importante das nossas empresas de exportação, e por essa via, centenas ou mesmo milhares de pequenas empresas de transporte rodoviário.
  3. Os lucros inusitados e sem qualquer regulação efectiva das petrolíferas, com especial destaque para a vagamente pública GALP é um escândalo inaceitável. Revolta qualquer um e se não forem rapidamente travados, suscitarão as condições ideias para uma re-nacionalização parcial (que defendo) da petrolífera portuguesa. O que o país tiver que desembolsar para recuperar a maioria accionista da empresa será rápida e largamente recuperado pela imparável valorização dos activos e do negócio petrolífero e energético em geral. O corticeiro de Mozelos e a família dos Santos que se ponham a pau!
  4. Finalmente, a política fiscal arbitrária da nomenclatura política que nos dirige, revelada pelas escandalosas e inaceitáveis isenções fiscais atribuídas aos iates de luxo e às empresas turísticas que utilizam embarcações de recreio (por que não às competições de Fórmula 1, ao motocross e às motas de água?!) revelam a hipocrisia do discurso político perante as dificuldades, e sobretudo a corrupção endémica que grassa pelos corredores governamentais e parlamentares. A ausência de moral pública sempre justificou o caminho das revoltas e das revoluções. Talvez seja a hora de os políticos corruptos irem para a cadeia e os moles para casa!
A revolta dos camionistas é um sério aviso ao país, tendo pelo caminho revelado três realidades dramáticas:
  1. A irracionalidade criminosa da política de transportes implementada ao longo das últimas décadas, a qual deu prioridade acéfala à rodovia e ao desordenamento do território, em detrimento de uma equilibrada repartição do esforço e da planificação entre os modos rodoviário, ferroviário, marítimo-fluvial e aéreo. Num país vertical, beneficiado por seis grandes rios (Minho, Douro, Vouga, Mondego, Tejo e Guadiana) e com uma tão generosa costa marítima, como foi possível destruir praticamente a ferrovia e deixar os portos marítimos e fluviais ao abandono?
  2. A inexistência de uma rede de aprovisionamento de combustíveis líquidos articulada com as principais interfaces de transportes do país (os aviões que se dirigiam para a Portela foram forçados a procurar abastecimento noutros aeroportos!), a que se soma a ausência de circuitos alternativos de abastecimento aos veículos prioritários (polícia, bombeiros e forças militares, para-militares e policiais).
  3. A completa falência dos serviços de protecção civil perante uma emergência nacional de três dias.
Do ocorrido terão agora que ser extraídas rapidamente algumas ilações para a acção política.
  • O actual sistema de transportes precisa de uma radical e urgente reformulação estratégica, com a reorientação imediata das prioridades de investimento para o sector ferroviário e marítimo-fluvial. O novo aeroporto e a nova travessia do Tejo devem ser colocados em pausa. Mas, por outro lado, devem ser dadas novas prioridades para as ligações ferroviárias rápidas entre Madrid e Pinhal Novo, e entre Porto-Aveiro-Salamanca. Por outro lado, deve ser seriamente estudada a possibilidade de construção de um grande terminal marítimo de águas profundas entre o Bugio e a Trafaria e ainda a abertura de um canal fluvial entre os estuários do Tejo e do Sado, projectos estratégicos destinados ambos a acolher parte significativa do aumento exponencial do tráfego marítimo oriundo do renovado canal, alargado e aprofundado, do Panamá.
  • As forças militares, de segurança e de socorro têm que dispor de reservas próprias de abastecimento de carburantes, e não depender de petrolíferas privadas!
  • A ANA, por toda irresponsabilidade até hoje revelada, tem que ser expurgada dos incompetentes que por lá pastam.
  • Em suma, o país terá que se preparar para aceitar, mais cedo ou mais tarde, um Estado de Emergência Energética Prolongada, do qual resulte um conjunto de medidas de curto e médio prazo destinadas a interromper tudo o que seja manifestamente atentatório da eficiência energética de que desesperadamente precisamos. Destaco apenas algumas:
    1. proibição imediata de todos os desportos motorizados baseados em consumo petrolíferos;
    2. fim do ISP e igualização do IVA à escala europeia;
    3. promoção intensiva da microgeração energética;
    4. controlo accionista estatal das principais empresas responsáveis pela exploração dos recursos vitais ao país: energia e carburantes, águas, mar (ZEE) e rios.
Claro que para aqui chegarmos haverá que redefinir o actual sistema de forças políticas por forma a fazer as inadiáveis reformas da nossa débil democracia. Será este o tema do próximo postal.


OAM 377 19-06-2008, 12:33

sexta-feira, junho 13, 2008

China 2008

Pequim - Jaguar estacionado no famoso distrito das artes, Factory 798. Foto©OAM

O melhor e o pior de dois mundos

By around 2011 the lower middle class [in China] will number some 290 million people, representing the largest segment in urban China and accounting for about 44 percent of the urban population, according to our model. Growth in this group should peak around 2015, with a total spending power of 4.8 trillion renminbi [480 mil milhões de euros]. A second transition is projected to occur in the following decade, when hundreds of millions will join the upper middle class. By 2025 this segment will comprise a staggering 520 million people --more than half of the expected urban population of China-- with a combined total disposable income of 13.3 trillion renminbi [1,3 biliões de euros]. -- in "The value of China's emerging middle class", The McKinseyQuartely.

Acabo de chegar de uma viagem de trabalho e observação a Pequim. Foram nove dias e a primeira coisa que me apetece escrever é: esqueçamos Tiananmen! Da Cidade Proibida à Grande Muralha da China, passando pelo Palácio de Verão e pela múmia de Mao Tse-tung, tudo são agora ícones turísticos massivamente frequentados por passeantes como eu e sobretudo por milhões de chineses e outros asiáticos bem alimentados, elegantes e com cada vez mais tempo disponível para consumir. A China tem hoje mais milionários do que os Estados Unidos, cerca de 200 milhões de criaturas sofrendo de obesidade (Guardian), e nas ruas de Pequim circulam lentamente (pois a ninguém ocorre ultrapassar o limite de velocidade de 50Km/h) milhões de automóveis, com predominância para as marcas alemãs Audi (6 e 8...) e Volkswagen (Phaeton, Sagitar, Touareg), e uma presença crescente de veículos japoneses (Honda e Toyota) e coreanos (Hyundai e Kia). A maioria dos novos táxis são agora Hyundai Elantra em vez dos velhos Volkswagen Jetta e Santana que ainda há menos de uma década dominavam o mercado automóvel chinês.

O município de Beijing tem 16,8 mil quilómetros quadrados (seis vezes a área da Região de Lisboa e 1,4 vezes a da antiga Região de Lisboa e Vale do Tejo.) Nele vivem mais de 17 milhões de almas. A sua principal malha urbana e suburbana, delimitada por cinco anéis concêntricos, tem uma superfície de 1378 Km2 (muito próxima da área da Grande Lisboa), e 8 milhões e meio de urbanitas (6 mil hab./Km2). Para comparar esta zona central do grande município com Lisboa, teremos que imaginar uma malha urbana densa com um raio de 28 Km a partir do Terreiro do Paço, chegando até Cascais, Sintra, Mafra, Vila Franca, Alcochete, Setúbal e Sesimbra, apontando para uma densidade populacional 4 vezes e meia superior à da Grande Lisboa (Amadora, Cascais, Lisboa, Loures, Mafra, Odivelas, Oeiras, Sintra, Vila Franca de Xira), e 5 vezes e meia superior à da Região de Lisboa (Grande Lisboa e Península de Setúbal.)

Pequim é uma cidade-região, como Lisboa e Porto há muito deveriam ser, sobre a qual paira quase sempre um tecto de nuvens e poluição. O clima continental húmido é afectado pelas monções e pelas tempestades de areia vindas do deserto. É uma cidade dura (fazendo por vezes lembrar Madrid numa escala ampliada), cheia de automóveis, com grandes assimetrias sociais e uma patente multiplicidade étnica, atravessada por obras públicas e privadas em todas as direcções, mas segura e surpreendentemente limpa, sobretudo se a compararmos com Lisboa e arredores! Não falta gente para trabalhar, nem sobretudo mão-de-obra barata vinda dos arredores, bem como das províncias longínquas. Há, para surpresa de quem assimilou os estereótipos vendidos pelos média ocidentais, civismo, simpatia e alegria nas ruas. Não há pedintes por necessidade, nem muitos menos pedintes profissionais. Entre os hotéis de cinco estrelas que proliferam como cogumelos depois de um dia de chuva outonal, a presença ostensiva das grandes marcas do consumismo ocidental, os centros comerciais e o fast-food chinês, os multifacetados Hutongs -- fazendo lembrar, os mais pobres, as já quase inexistentes ilhas do Porto --, os sítios turísticos e a excitação da nova arquitectura assinada por europeus, americanos e chineses (1), predomina sobretudo a sensação de estarmos no meio dum turbilhão económico, social, tecnológico e cultural sem precedentes.

Talvez por persistirem índices elevados de analfabetismo, abunda uma espécie divertida de iconografia informativa, de que o uso do estilo Anime para dar face aos polícias e suas recomendações é talvez a mais contrastante negação da imagem autoritária fabricada, entre nós, do império do meio. Ao contrário da pose xenófoba e fascista de alguns polícias do aeroporto de Newark, os polícias do aeroporto de Beijing sorriem e pedem-nos para avaliar electronicamente a qualidade do seu desempenho. Nas ruas da capital chinesa, a presença da autoridade do Estado é praticamente residual. Se exceptuarmos o dispositivo discreto mas permanente da Praça de Tiananmen, os cidadãos parecem conseguir resolver sozinhos os problemas e conflitos do dia a dia.

Os avôs e as avós fazem Tai Chi Chuan entre as 5 e as 8 da manhã, nos jardins e alamedas da cidade, antes de receberem os netos que cuidarão ao longo da jornada de trabalho dos seus ambiciosos filhos. Reformados sem outras responsabilidades familiares prementes entretêm-se em grupo desenhando ideogramas de água no chão, jogando o YoYo, ou montando barbearias ao ar livre num qualquer jardim público às portas de um museu nacional! Outros passeiam orgulhosos os seus adorados pequineses. Automóveis, Trolleys (quanta faltam nos fazem!) e bicicletas percorrem a cidade disputando cada cruzamento como se de uma dança marcial se tratasse. Traços contínuos e passadeiras são ainda decorações urbanas a que se dão pouca importância. Mas vai mudar. Os semáforos fazem já a sua função e em menos de uma década os cidadãos de Pequim respeitarão o resto da sinalética com muito maior zelo que nós. Numa Food Republic situada no piso -2 de um centro comercial fiquei a conhecer a profusão de estilos da ruidosa fast-food chinesa, e a saber onde boa parte dos trabalhadores do sector de serviços de Pequim almoça informalmente.

Na última noite da estadia fui recebido por um grupo de artistas noruegueses na residência que alugaram num Hutong perto da Cidade Proibida. Trata-se de um pátio recuperado com estilo, por um jovem profissional chinês, francamente acolhedor, rodeado por 4 quartos, uma sala comum, uma pequena cozinha e um quarto de banho elementar. Renda mensal antes das Olimpíadas, para estrangeiros: 163 euros (2). Quem quer ir para o Allgarve?!

Aperitivos picantes e melancia acompanhados de cerveja, vinho branco e vodka precederam um jantar servido por um restaurante de bairro especializado na famosa culinária da província de Sichuan, tristemente conhecida em todo o mundo desde 12 de Maio último por causa do terramoto que ceifou mais de 100 mil vidas. Esta cozinha é sobretudo caracterizada pelo uso abundante de malaguetas picantes e da chamada pimenta de Sichuan, misturadas com alho e gengibre, acompanhando as carnes de porco temperadas com molho de peixe, o pato lacado e o frango alourado, os peixes de rio (carpas), as corvinas e os mariscos. Nesta culinária, considerada há muito pelas elites burocráticas chinesas como sendo própria de intelectuais, abunda o arroz branco, couves fermentadas, molhos de feijão doce e talos de bambu. Os elementos crus ou pré-cozidos salteados em óleo bem quente e os estufados de beringela são outras tantas notas que aqui deixo dum memorável banquete de artistas, regado com muita cerveja Tsingtao e Yanjing, aguardente branca de arroz e vinho tinto (um mercado virtualmente inesgotável para os produtores de vinho de todo o mundo, incluindo os chineses, de que o famoso Chateau de Changyu é o principal estandarte.)

Em 1415, quando Portugal conquistou Ceuta, estabelecendo aí a testa de ponte que levaria a Europa a dominar o mundo durante quinhentos anos (3), a Marinha da Dinastia Ming (1368-1664 dC) possuía qualquer coisa como 1350 navios de guerra, dos quais 400 eram fortalezas marinhas e 250, navios de longo curso. Esta formidável armada tinha, entre 1405 e 1433, sob o comando do almirante Cheng Ho, sulcado os mares da Coreia, do Japão, do Sudeste Asiático e atravessado o Índico até à costa oriental de África. Como escreve ironicamente Paul Kennedy no seu fundamental The Rise and Fall of the Great Powers, os chineses poderiam ter contornado a costa africana e "descoberto" Portugal algumas décadas antes de o Infante D. Henrique iniciar a sua extraordinária aventura, lançando marinheiros e comerciantes à descoberta e marcação da costa africana, em direcção ao Índico, até chegar à India. A viagem de circum-navegação realizada por Fernão Magalhães, ao serviço de Carlos V, provaria de vez a esfericidade do planeta, levando os primeiros europeus a descobrir o novo mar a que chamaram Pacífico. O saber de experiência feito e uma excelente cartografia levariam ainda Portugal a descobrir as Filipinas e o acesso marítimo à China, ao Japão e à Austrália. Mas então, porque ficaram os chineses para trás e foram os europeus que avançaram?

Ao longo da Dinastia Sung (960-1279 dC), e até ao ano 1436 da Dinastia Ming (1368-1664 dC), a China era de facto o maior e mais populoso país do mundo, tinha as maiores cidades e era tecnologicamente o mais avançado de quantos existiam. O seu exército e a sua marinha somavam mais de um milhão de efectivos, constituindo certamente a mais poderosa força bélica então existente à face da Terra. A China tinha inventado e usava o papel-moeda, tinha inventado e usava relógios astronómicos, tinha inventado e usava a imprensa de tipos móveis muito antes de Gutenberg, inventara a pólvora ainda antes da Dinastia Sung (960-1279 dC), produzia mais ferro do que a Inglaterra no início da Revolução Industrial (sete séculos depois!) Data também desta época a reconstrução da Grande Muralha (com tijolos de barro cozido) e a construção do sistema de canais fluviais que permitem ainda hoje fazer circular grande parte dos bens agrícolas e industriais pelo seu vasto território. O que provocou então a viragem e a decadência subsequente de tão formidável civilização?

Segundo Paul Kennedy, foi a ordem dada ao general Cheng Ho (ou Zheng He) para desactivar e depois desmantelar a marinha chinesa, em nome da concentração de forças a que teria sido necessário proceder para fazer frente à pressão crescente dos Mongóis. Enquanto a Europa sabia do Oriente e ambicionava as suas sedas, marfins, madeiras nobres e especiarias, a China desconhecia praticamente o Ocidente, bastava-se com o seu imenso território, a cuja unidade dava total prioridade, e como país desenvolvido não detectara nas incursões marítimas pelos mares vizinhos e pela costa africana oriental razão económica suficiente para manter uma tão dispendiosa armada quando a ameaça vinha uma vez mais do Norte.

Esta decisão conduziria a China paulatinamente ao proteccionismo e ao isolamento internacional, ao mesmo tempo que o poder da burocracia acabaria por hegemonizar a sociedade, fazendo murchar progressivamente os pressupostos ideológicos, materiais e jurídicos de uma sociedade economicamente ágil, intelectualmente criativa e espiritualmente livre.

O que veio depois é sabido: no século 19 a balança comercial entre a China e o Ocidente (para onde vende muito e de onde compra pouco) torna-se insustentável, nomeadamente para a Inglaterra. Esta começa então a exportar, primeiro legal, depois ilegalmente, ópio oriundo do Império Britânico da Índia (sobretudo da Birmânia) para a China. Seguiram-se como consequência as guerras do ópio, que a China perderia a favor dos ingleses, daí decorrendo um longo período de humilhações que levaria ao fim das dinastias, à proclamação da república, à guerra civil e à revolução. Depois da morte de Mao, Deng Xiaoping estabelece para a China uma rota de abertura progressiva ao mundo, baseada na permanência de um Estado burocrático centralizado e autocrático, na tradição não apenas da revolução comunista de Mao, mas sobretudo da longa história dinástica do país, e na adopção de uma dita economia socialista de mercado.

"Um país, dois sistemas", foi a proclamada fórmula mágica para o rápido progresso da República Popular da China. O melhor e o pior de dois mundos: por um lado, a agilidade de uma economia politicamente subordinada e com largos sectores sob comando único do Estado, por outro, a energia injectada nessa mesma economia pela regras típicas da emulação capitalista e pela armadilha do consumismo. Como pano de fundo, um inesgotável exército de mão de obra barata, que noutros tempos servira já para construir caminhos de ferro e estradas na América e em África, e hoje alavanca a custos imbatíveis a entrada da China na era da globalização. O seu crescimento anual, revisto em baixa de 10,8% para 9,6% (Sino Daily), ou mais recentemente, de 11,9% para 9,8% (EFE/Folha de São Paulo), começa entretanto a ser ameaçado por uma inflação (China Daily) que em Abril deste ano chegou aos 8,5% relativamente ao mesmo mês de 2007, e que só não é maior porque em Pequim e no resto da China os automobilistas e os transportadores ainda não ouviram falar do aumento dos preços da gasolina e do gasóleo! Na realidade, não fora a máscara estatística, ter-se-ia que situar a inflação actual como uma das mais sérias ameaças ao tão anunciado, mas improvável, século chinês.

O consumismo do século 21 poderá vir a ser para a nova China um perigo tão grande ou maior do que o ópio com que os ingleses procuraram no século 19 reequilibrar a sua balança comercial, e sobretudo escavacar a unidade daquele imenso país. Talvez por isso, a marinha de guerra e a marinha mercante chinesas estejam hoje a crescer mais depressa do que quaisquer outras armadas conhecidas. É que boa parte da energia e matérias primas necessárias à nova economia e às legítimas expectativas sociais da China de Hu Jintao encontra-se longe das suas fronteiras. O acesso a tão preciosos e cada vez mais escassos bens dependerá sobretudo de uma formidável marinha mercante... e de uma convincente marinha de guerra que a defenda.



REFERÊNCIAS
  1. China no World Resources Institute

NOTAS

  1. National Centre for the Performing Arts, de Paul Andreu; Estádio Nacional de Beijing, da dupla Herzog & De Meuron; nova sede e estúdios da principal cadeia de televisão chinesa; CCTV, do OMA (Rem Koolhaas e Ole Scheeren); Torre 3 do World Trade Centre, concebido por Skidmore, Owings & Merrill (SOM), hoteis Mandarin Oriental, do OMA e Kapok, do Studio Pei Zhu; Linked Hybrid, de Steven Holl.
  2. Este é certamente um preço excepcional, mas ainda assim é possível alugar um apartamento dentro dos dois primeiros anéis da cidade, com 60-80mq, por 250 euros mensais; ou alugar pela Net um pátio com 300mq, 3 quartos e um living, num Hutong situado no centro histórico, por 800 euros mensais; ou finalmente alugar diariamente uma Suite de luxo num Hutong a 3Km da Cidade Proibida, para 2 pessoas (+ 2 crianças pequenas) por 54 euros/dia. Uma noite no Wangfujing Grand Hotel, de 5 estrelas, a dois passos da Cidade Proibida, custa 55 euros, com pequeno almoço (buffet chinês e ocidental) incluídos.
    Embora possamos considerar que os preços são em geral baratos quando comparados com as economias do euro, não são assim tão baratos quando comparados com outras moedas menos fortes. Por outro lado, há uma enorme disparidade preços, podendo-se ir facilmente do razoavelmente barato ao inesperadamente caro. Eis uma lista que compilei rapidamente a partir de algumas facturas que consegui conservar:

    1 noite no Wangfujing Grand Hotel (5 estrelas) c/ pequeno almoço, junto à Cidade Proibida = 55 euros
    1 jantar no Wangfujing Grand Hotel, buffet italiano, japonês e chinês, acompanhado de chá verde = 13 euros
    1 jantar a la carte no centro da cidade: 17,4 euros
    1 almoço no Food Republic (c/ caneca de cerveja) = 4 euros
    1 café no lobby do Wangfujing Grand Hotel = 3,9 euros
    1 café expresso no Starbucks = 1 euro
    1 garrafa de chá verde (1/2 litro) numa loja de bairro = 28 cêntimos de euro
    1 garrafa de chá verde (1/2 litro) num restaurante junto à Grande Muralha (Simatai) = 1,8 euros
    1 cerveja Tsingtao numa loja de bairro = 64 cêntimos
    1 caneca de cerveja Tsingtao no lobby do Wangfujing Grand Hotel = 4,7 euros
    Bandeirada de táxi = 94 cêntimos; cada Km = 0,19 cêntimos; em espera = 0,09 cêntimos/min.

    Para mais informações consultar esta página de referência sobre Pequim: The Beijinger.
  3. A partir de 1915 os EUA emergem na cena mundial, virando rapidamente a seu favor o render da guarda do imperialismo europeu. Por junto, o imperialismo ocidental, de raíz judaico-cristã, durará cerca ou pouco mais de 600 anos.
OAM 376 14-06-2008, 20:03 (última actualização: 19-06-2008 09:36)

domingo, junho 01, 2008

Vou a Pequim!

Em 1999 convenci o vereador da cultura da cidade da Maia a incluir numa bienal de arte que então comissariei uma vintena de autores oriundos de Xangai. Era o princípio de uma ideia que não chegou a consolidar-se: levar a área metropolitana do Porto, de dois em dois anos, ao contacto cultural com uma grande metrópole mundial. A primeira cidade escolhida foi a capital comercial da China. Seguir-se-iam México D.F., São Paulo, Bombaim... Mas o país é pequenino, e pequeninas são as nossas mentalidades. Pelo que não fomos além de Xangai.

Lembro-me de à época pensar que nenhum autarca deveria entrar em funções sem passar uma primeira semana de turismo profissional em Londres, Paris ou Nova Iorque, e uma segunda semana em Xangai, São Paulo ou Tóquio, com quatro a seis reuniões por dia, para perceber o que dá vida àqueles formidáveis organismos sociais. Passeios destes valem uma eternidade de retórica política e podem poupar muito dinheiro.

Se algo me impressionou no desastre que colheu o povo chinês nas vésperas da sua tão desejada abertura ao mundo pela via especialmente simbólica dos Jogos Olímpicos, foi a dignidade com que assumiram a tragédia e a prontidão e eficácia com que acudiram às populações afectadas pelos sismos. Todos descobrimos, ainda que pelos piores motivos, uma China diferente, que teremos de aprender a respeitar.

É de novo a arte que me leva à China. Desta vez, para colaborar na apresentação de um autor polaco naquele que será o principal projecto cultural do programa olímpico de Pequim. Chama-se Synthetic Times e terá lugar no National Art Museum of China. A minha curiosidade sobre a China, oito anos depois de lá ter estado (em 1999 e 2000) é muito grande. Oito anos num país que é o mais populoso do planeta e cresce a mais de 9% ao ano é uma eternidade de mudança! Estou em pulgas!!

Aguardem o meu próximo postal ilustrado, em directo, de Pequim!

Post Sriptum: Entretanto, a China afirma que a Reserva Federal americana, com a sua política de juros muito baixos, e o apoio ilimitado a bancos falidos, está a ser a principal responsável pela inflação global.

Mais do que o Subprime, desculpa invocada repetidamente pela generalidade dos governadores de bancos americanos e europeus para justificar a destruição em curso da poupança mundial das famílias e das empresas, a causa principal da actual crise financeira é a combinação explosiva entre a desvalorização do dólar e a consequente valorização da moeda japonesa face ao dólar. O colapso do chamado carry trade transformou o rebentar de uma bolha especulativa regional numa crise financeira global. O G7 finge que não sabe e a generalidade dos nossos editores económicos olha como sempre para o lado, não vá algum demónio interromper o fluxo nervoso da publicidade que os sustenta.

Leia-se, a propósito, a notícia do China View e o comentário de Elaine Supkis Meinel.


OAM 375 01-06-2008, 20:52 (última actualização: 23:55)

Aviso ao PS 4

José Sócrates in Blue

Quem fica com o PS?

Lisboa, 31 Mai (Lusa) -- O porta-voz socialista, Vitalino Canas, considerou hoje que o comício de terça-feira, que junta o Bloco de Esquerda, Renovadores Comunistas e em que discursa Manuel Alegre, pode ser encarado como uma iniciativa "contra o PS".

... "Ninguém da direcção do PS foi convidado para essa iniciativa e, como tal, trata-se de um evento que, ou prescinde do PS, ou é feito contra o PS", declarou o dirigente socialista.

... "A participação de militantes do PS em eventos do Bloco de Esquerda não nos parece aconselhável, embora o PS seja um partido livre e que convive bem com a divergência", frisou.

Tornou-se já evidente para todos, até para a Direita, que o PS de Sócrates é hoje um partido neoliberal concebido por uma tríade de renegados oriundos de organizações falhadas como a maoísta UDP e a incaracterística UEDS. Esta clique semi-clandestina foi conquistando o PS por dentro até conseguir isolar os seus principais pilares ideológicos e dominar o respectivo aparelho. Depois de usar o partido como escadote para ascender ao poder de Estado, tendo contado para tal com a preciosa ajuda de António Guterres (espécie de génio tonto de serviço), e com o recurso de última hora, José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, a tríade de Macau iniciou sem rebuço nem vergonha a subordinação do Partido Socialista ao pior do capitalismo internacional e nacional, promovendo a demolição paulatina do Estado social e a implosão do tecido económico dominante, em nome dos interesses imediatos dos grandes construtores civis, dos credores da nossa dívida pública, dos especuladores financeiros, e deles próprios -- claro!

Se o propósito reformista (a célebre paixão pela educação e pelo diálogo de Guterres, ou a reforma do Estado e o caricato choque tecnológico de Sócrates) parecia louvável, a sua prossecução foi não só um embuste, mas também um ostensivo ataque ao frágil equilíbrio económico do país, e ainda a prova provada de que algo estava mal no Partido Socialista. Tamanha descaracterização ideológica do principal protagonista da esquerda portuguesa iria arruiná-lo a prazo, se nada fosse feito entretanto.

A emergência do movimento socialista em volta de Manuel Alegre, o tardio toque a rebate de Mário Soares e o já memorável "comício" em prol de uma nova frente de esquerda não comunista, contra o monopólio exercido sobre a sociedade portuguesa pela meia-dúzia de famílias de sempre (agora aparadas por uma turma de invertebrados mascarados de socialistas), são sinais sérios de que talvez existam ainda energias suficientes para a necessária purga por que o PS terá que passar se não quiser partir-se em dois antes de esta década chegar ao fim. No fundo, o único obstáculo é uma marioneta já sem bonecreiros verdadeiramente comprometidos com a sua animação. A tríade de Macau deixou de apostar no PS e procura um novo partido. José Sócrates está só diante da sua própria caricatura!

Mais cedo ou mais tarde haverá um novo partido da chamada direita moderna. Os neoliberais do PPD-PSD (Passos Coelho, José Relvas, Ângelo Correia, etc.) e os neoliberais do PS (António Vitorino, Jorge Coelho, Francisco Murteira Nabo, Carlos Santos Ferreira, Vitalino Canas, Armando Vara, José Penedos, Manuel Pinho, António Nunes, etc.) acabarão por dar o nó, impulsionados pela pressão irresistível dos off-shores que já hoje alimentam boa parte deste sindicato. Não existe pois nenhuma razão para que sejam os socialistas a abandonar o PS!


OAM 374 01-06-2008, 13:38

PPD-PSD-10

Decisões difíceis

A vitória tangencial de Manuela Ferreira Leite nas eleições directas do PPD-PSD deixou o partido dividido em três bocados, agora mais evidentes e consolidados que nunca: o bocado populista (Santana Lopes e Menezes), o bocado neoliberal (Passos Coelho, Relvas, Marco António) e o bocado social-democrata (Manuela Ferreira Leite e... Cavaco Silva!)

O primeiro problema que Manuela Ferreira Leite vai ter que enfrentar é o da ameaça de turbulência, ou mesmo de separatismo, por parte dos populistas de norte a sul do país. O segundo problema será o presente envenenado que uma excessiva solicitude de Pedro Passos Coelho poderá representar para o aproveitamento da janela de oportunidade que se abriu, por breves momentos, com esta sua vitória. Na realidade, se quiser levar o PSD a vencer José Sócrates, Manuela Ferreira Leite deverá evitar subtilmente estes obstáculos iniciais. Terá, no entanto, que estar preparada para uma provável cisão do PPD-PSD, antes ou depois das eleições legislativas de 2009. Tudo dependerá da natureza e intensidade das feridas abertas nas últimas semanas, e ainda da evolução da crise aberta no PS pelas mais recentes e quase simultâneas iniciativas de Mário Soares e Manuel Alegre.

Como observava um amigo meu, a moção de censura avançada pelo PP poderá ter sido combinada com José Sócrates, visando criar uma oportunidade inesperada para este se demitir, forçando Cavaco Silva a antecipar as eleições. Bastaria para isso que toda a Oposição votasse a favor da moção e alguns deputados socialistas se ausentassem para tomar café. Não sei se a coisa é verosímil, mas que o actual primeiro ministro anda desesperadamente à procura de uma saída para a agonia longa e humilhante que o espera, disso não tenho dúvidas. Na realidade, se isto fosse possível, nem Manuela Ferreira Leite teria tempo para derrotar Sócrates, nem este teria que temer a conspiração aberta contra si por toda a esquerda portuguesa, incluindo os socialistas que existem e dão nome ao partido que o levou ao poder. Por fim, a actual conjuntura aponta para a extinção eleitoral pura e simples do PP, mas se houvesse um golpe de rins semelhante ao descrito, o "partido do táxi" ganharia ainda mais uns anos de vida.

Prefiro, no entanto, olhar para os próximos dois ciclos legislativos que previsivelmente se sucederão: 2009-2012 e 2013-2016. O que vejo não é nada bom. A crise energética mundial vai continuar a agravar-se (bye bye NAL de Alcochete!); a crise financeira continuará indomável (bye bye TTT Chelas-Barreiro!); a crise alimentar tenderá a piorar à medida que aumentar a produção dos agro-combustíveis; o descalabro ecológico estará longe de ser mitigado. Ou seja, Portugal, cuja classe média tem vindo a desaparecer a um ritmo fulminante, estará em piores lençóis do que hoje e por conseguinte mais do que disponível para acolher alternativas populistas ao apodrecido presente político-partidário. O surgimento de novos partidos tem pois o caminho aberto, antes ou depois das próximas eleições legislativas.

Não faz sentido, a não ser por pura cobardia política, vermos os populistas do PPD agora derrotados permanecerem hipocritamente num partido que precisa urgentemente de cortar a ligação siamesa existente entre o PPD e o PSD, para assim poder dar lugar a duas formações ideologicamente mais bem delimitadas e com lugar seguro numa refundada geometria eleitoral. Quanto ao PS, passa-se algo semelhante. Socialistas e neoliberais disfarçados não podem continuar a conviver com a mesma rosa ao peito. Onde votarão Mário Soares e Manuel Alegre nas próximas eleições? Responder a esta pergunta é dizer que algo decisivo irá acontecer proximamente na esquerda portuguesa. Tomar as declarações de Mário Soares e as iniciativas de Manuel Alegre e de Francisco Louçã como meras manobras tácticas para enganar algumas dezenas de milhar de eleitores ingénuos em 2009 seria um erro de avaliação crasso. O eleitorado de esquerda não irá dar um voto que seja ao pinóquio que nos governa, sobretudo depois de o maior partido da oposição ter eleito para sua líder uma social-democrata declaradamente preocupada com a crise social estrutural que temos pela frente, por tempo indeterminado. Não me admiraria nada que a tríade de Macau estivesse a pressionar José Sócrates para fazer alguma coisa...


OAM 373 01-06-2008, 01:01

sábado, maio 31, 2008

Portugal 27

A Liga do Norte
A Junta Metropolitana do Porto anunciou hoje que pretende apresentar à Comissão Europeia uma queixa contra o Governo, caso não seja alterada, no prazo de um mês, a resolução que prevê o desvio de verbas do Quadro de Referência Nacional Estratégico (QREN) destinadas ao Norte para a região de Lisboa. - in Diário Económico, 30-05-2008.

Eu sou uma mistura galaico-germânica: neto de um republicano de Cinfães do Douro, de uma burguesa do Porto, de um industrial de Ovar e de uma brasileira com sangue índio e alemão. Sou casado com uma galega de Braga, e a minha filha, loira, de olhos azuis, namora com um músico madrileno filho de pai galego. A consistência genética não pode ser menos mourisca! E no entanto, como nasci em Macau e tenho vivido quase toda a minha vida na região de Lisboa, compreendo mal o complexo das segundas cidades. Ou por outra, compreendo bem, mas não o sinto. O olhar de um nova-iorquino sobre Los Angeles, dum tipo de Barcelona sobre Madrid, ou de alguns tripeiros sobre Lisboa é virtualmente o mesmo: -- "uns trabalham, outros divertem-se!"

E no entanto, apesar de não ser assim, a verdade é que os centros de poder tendem a exercer quase sempre um certo imperialismo sobre as periferias. O facto pode aliás medir-se de um forma simples e rigorosa através da redistribuição regional dos impostos e da distribuição do emprego público disponível. Por aqui se verá, creio, que o Porto tem inteira razão no grito de protesto contra o intento do morcão que dirige a pasta do ambiente de roubar para Lisboa fundos comunitários que por direito pertencem ao Norte.

A crise económico-social tem atingido de forma especialmente gravosa o Porto e a sua região metropolitana. Aliás, com a subida imparável dos preços dos combustíveis, é de prever que Lisboa e o Porto venham a enfrentar gravíssimos problemas de mobilidade e circulação de mercadorias no prazo de uma década. É por esta razão, entre outras, que defendo a criação imediata de duas novas regiões autónomas: a de Lisboa e a do Porto, tendo por base territorial as correspondentes e vastas áreas metropolitanas. Ao contrário dos projectos inquinados de regionalização existentes, defendo que o essencial a fazer neste momento é elevar estas duas regiões cruciais do país à categoria entidades dotadas de uma grande capacidade de auto-governo. Defendo, ao mesmo tempo, que os governos civis devem acabar imediatamente, e que o poder local dever ser reforçado tanto ao nível dos governos municipais (menos municípios, mas mais poder administrativo), como no das freguesias e paróquias que ainda subsistem por esse país fora. A capacidade de iniciativa e de gestão locais são decisivos para nos prepararmos para a transição energética em curso. Para isso é absolutamente necessário descentralizar as competências, as obrigações e os meios!

Alguém no Porto tem que começar a pensar nestes problemas.

OAM 372 31-05-2008, 20:07

quinta-feira, maio 29, 2008

PPD-PSD-9

Boomerang


O boomerang de Manuela Ferreira Leite

Lisboa, 28 Mai (Visão/Lusa) - O líder do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, afirmou hoje que o comício de terça-feira contra as desigualdades sociais e a corrupção em Portugal representará a maior mudança dos últimos anos na esquerda portuguesa.

Não podemos ainda saber se o comício da próxima terça-feira vai ou não ser decisivo para a emergência de uma nova força de esquerda, que englobe antes de 2009 os socialistas do PS, o Bloco de Esquerda e alguns comunistas desiludidos com a esclerose múltipla do PCP. O que sei é que o desvio da atenção pública para a actual crise social, provocado pela chave programática de Manuela Ferreira Leite, na sua corrida para a presidência do PSD, transtornou transversalmente as agendas políticas de todos os partidos com assento parlamentar!

As chamadas de atenção mais pertinentes para a degradação da situação social portuguesa tiveram início com os alertas lançados pela igreja católica a propósito das novas correntes migratórias que têm levado centenas de milhar de compatriotas para o Reino Unido, Suíça, Espanha e Austrália, entre outros países de acolhimento. O relatório da SEDES foi, mais recentemente, um sério aviso à navegação por parte de uma prestigiada instituição académica. Por sua vez a AMI fez um alerta dramático sobre o crescimento da pobreza no nosso país.

Acontece, porém, que estes avisos depararam sempre com uma parede de silêncio parlamentar e com a jovial contra-informação dos optimistas profissionais que nos governam. De facto, foi só depois de Manuela Ferreira Leite nos ter surpreendido a todos com o seu discurso sobre a questão social como a prioridade de uma governação democrática responsável, que a agenda política do país mudou.

O PS, chupado até ao tutano pela voragem da tríade de Macau, foi apanhado literalmente com as calças na mão. A esquerda populista -- BE, PCP e Verdes (1) --, entregue aos seus pequenos cálculos eleitorais e ao maniqueísmo de sempre, percebeu de repente que alguém vira o país para lá das pequenas coutadas eleitorais, corporativas e sindicais, e que poderia assim beneficiar à esquerda e à direita, de uma boa parte da revolta surda que cresce na sociedade portuguesa contra um sistema democrático acomodado, preguiçoso, incompetente e incapaz de combater a corrupção. O grito de Mário Soares, que curiosamente ou não se antecipou à iniciativa de Manuel Alegre e do Bloco, serviu basicamente para explicar aos mais distraídos, que o PS actual, chefiado por José Sócrates, não passa dum vulgar aparelho de legitimação da agenda neoliberal estúpida que apodrece nos bolsos das araras, dromedários e demais espécies exóticas que compõem o actual governo.

O governo PS vai chegar às eleições de 2009 num estado lastimável. E se Manuela Ferreira Leite ganhar o PSD, veremos a agenda neoliberal do actual PS completamente esmagada pelos argumentos mais ou menos irrealistas e desconexos da esquerda populista, a par duma crítica social-democrata razoavelmente consistente por parte dum PSD renovado. Sócrates será então exposto e visto completamente como o que verdadeiramente é: um cópia fraudulenta do New Labor, e uma caricatura liberal e tardia do socialismo!

No último debate entre os candidatos à liderança do PPD-PSD (2) ouviu-se falar muito de impostos e da importância que a sua eventual redução teria para o renascimento da economia portuguesa. Para populistas de direita e de esquerda, baixar o IVA, baixar o ISP, e já agora baixar os juros bancários (quer dizer o preço do dinheiro) é, pelos vistos, a pedra filosofal da salvação lusitana. Pois eu não creio que baixar 5 pontos percentuais no IVA (de 21 para 16), ou baixar o ISP à medida que suba o petróleo, melhore o que quer que seja. Os países mais ricos da União Europeia têm todos taxas de IVA elevadas: Dinamarca = 25%; Finlândia 22%; Suécia 25%. Não é por isso que deixam de crescer acima da média europeia. Não é por isso que deixam de ter uma segurança social invejável. Não é por isso que deixam de ser países ricos. No covil pirata de Sua Majestade Britânica, a Ilha de Jersey, apenas se cobra 3% de IVA -- o que não deixa de ser um belo exemplo das aspirações íntimas de todo o especulador e de todo o político corrupto.

O que nós realmente precisamos é de menos burocracia, de mais transparência e responsabilização na acção política e na administração pública, de uma verdadeira igualdade cidadã perante as leis, de um sólido e económico sistema de saúde e segurança social, de uma verdadeira revolução educativa e, por fim, mas não menos essencial, de pulverizar o excesso de poder das corporações. São a pior corja deste país!


  1. O desvio temático do debate parlamentar de hoje, agendado para discutir com o governo a questão energética, é um claro exemplo do comportamento sistematicamente demagógico dos partidos parlamentares. Falou-se de passes sociais, de código do trabalho e do mais que ocorreu às mentes demagógicas da Oposição. Como se não fosse importantíssimo debater a sério a crise energética. A nossa maior pobreza é sobretudo uma pobreza de estilo.
  2. A melhor prestação do debate foi sem dúvida a de Patinha Antão. Não é um político, e por isso não lhe damos muita importância na corrida à próxima liderança do PPD-PSD. No entanto, ficou demonstrado que o PSD tem bons técnicos, que porventura não têm sido ouvidos dentro do partido. Se MFL ganhar, esperemos que saiba trabalhar com os melhores e se afaste rapidamente dos barões falidos da Quinta da Marinha e dos intelectuais da Pedratura do Círculo.


OAM 371 29-05-2008, 04:25 (última actualização: 23:23)