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Cadilhe interroga-se sobre o significado da pintura... |
Uma pintura abstrata, iconoclasta, por definição não significa nada, ou então é falsa abstração e poderá, porventura, caber melhor nos rituais de avental da Maçonaria
Tal como um chinês faria, Miguel Cadilhe pergunta-se sobre o que significa a majestática tapeçaria de Eduardo Batarda que decora os 13 juízes do dito Tribunal Constitucional. João Pinharanda (
Público), um crítico do regime que temos, tentou decifrar a coisa, com ajuda do pintor, mas ficámos na mesma.
Cadilhe procura uma resposta:
“Por mim, vejo embaraços, vejo o emaranhado dos acórdãos do Tribunal, deste último, sobretudo, que é quase impenetrável. Vejo o enredamento de que falava o pintor: “Muitas linhas, folhas escritas, códigos, códices, calhamaços, cartapácios e quantidade ruidosa de livralhada”. A livralhada agora desabou sobre o Governo. Novamente.”
Mas o tal chinês continua perplexo. Que significa a tapeçaria e o que escrevem sobre ela? Nada, homem! Uma coisa abstrata, em arte, por definição não significa nada, a não ser, nos melhores casos, cor e simetria (
chroma kay symmetria), coisa que, por sinal, esta obra de Eduardo Batarda não tem.
Mas deixemos o pobre pintor em paz com a sua tapeçaria e vamos ao que interessa.
Depois da tareia constitucional, ou melhor ainda, depois da sentença capital de Vital Moreira sobre o comportamento sindical do TC, Cadilhe espeta o punhal da pena até ao fim: este Tribunal Constitucional é um tribunal político, e que sentencia em causa própria, alheando-se sistematicamente dos danos que pode e causa à nação.
Mas demos a palavra aos doutos pareceres sobre a imprestabilidade do TC, que eu, como muitos outros plebeus, propõem que se transforme rapidamente, por revisão constitucional, claro, em mera secção subordinada ao Supremo Tribunal de Justiça, que por algum motivo assim se chama.
“Ultra vires”
A decisão do Tribunal Constitucional sobre a inconstitucionalidade da redução de remunerações na função pública -- de novo baseada num princípio e não em nenhuma norma constitucional -- levanta novamente a questão dos limites da justiça constitucional, ou seja, da sua fronteira com a esfera da política.
Ora, a “repartição dos encargos públicos” pertence seguramente ao núcleo duro da política, sendo justamente um dos principais fatores da distinção entre visões e propostas políticas alternativas. Ressalvados os casos-limite de manifesta iniquidade, é de questionar a interferência do juiz constitucional na limitação da incontornável discrionariedade política nessa matéria. Nem tudo o que é politicamente censurável é inconstitucional. À política o que releva sobretudo da política.
Vital Moreira
Os meios do Estado e os fins da Constituição
“1.ª observação: Ao logo de tantos anos, não foi o Tribunal requerido a pronunciar-se, ou não se interpelou a si mesmo (o resto é processual), sobre a viabilidade, sim, digo a “viabilidade constitucional”, das funções e dimensão do Estado? Sobre a relatividade entre a grandeza dos “fins” e a escassez dos “meios”? Sobre se a tendência da despesa e dos “fins” se compaginava com o lado dos “meios”, a carga fiscal e a dívida? Sobre se essa tendência era sustentável?
2.ª observação: Estando a questão dos “meios” absolutamente omissa da letra da Constituição, não podia e devia o Tribunal considerar que ela está, tem de estar, omnipresente no seu espírito e na sua inteligibilidade? De outro modo, não teremos de concluir que a Constituição estabelece um quadro de gestão financeira da República que, sendo insensível aos “meios”, é um quadro anti-inteligência?
3.ª observação: O Tribunal não podia e devia fiscalizar a constitucionalidade das leis do OE cujos défices (de “meios”) feriam normas de tratados europeus, como o Pacto de Estabilidade e Crescimento, o de 1997 e o de 2005? Ou das leis do OE que, anos a fio, exibiam desrespeitos pela LEO, Lei de Enquadramento Orçamental, que é uma lei importantíssima de valor reforçado? Não entendeu o Tribunal que, se a LEO e a sua lei de estabilidade orçamental tivessem sido devidamente aplicadas, muito provavelmente não teria ocorrido a derrocada de 2011? Como se explica que a LEO tenha tido uma dúzia de anos de vigência pouco assistida e pouco praticada?”
[Mas também uma oportuna porrada no governo de Passos de Coelho]
“Observo a serenidade do primeiro-ministro perante o desabamento. Faz bem. Dá sinais de quem terá, por certo, alguma razão. Todavia, para lá da argumentação especializada do Tribunal, que é agreste de ler, e para lá dos pareceres técnicos do Governo, que desconheço, e para lá da pesada herança que Sócrates entregou a Passos, pergunto: em que é que o Governo não esteve bem? Primeiro, em reaparecer sem soluções “estruturais”, isto é, integradas, permanentes, autenticamente reformistas, no domínio das funções e regimes do Estado (o Tribunal avisara...). Segundo, em reincidir nos cortes de certas despesas, cortes ditos temporários mas que aparentam uma “reserva mental” política, uma premeditação de conversão em cortes definitivos quando der jeito (o DEO 2014/18 jura promessas de anulação dos cortes de salários e pensões, mas soa a eleitoralismo). Terceiro, em afrontar o Tribunal com essas repetições.”
Quando ouço os juízes do TC a falar na televisão fazem-me lembrar Eduardo Batarda a falar das suas pinturas, com a diferença que este último é engraçado, e os primeiros confrangem. Outra analogia: a Constituição é, apesar de tudo, e de precisar de urgente revisão para uma desinfestação ideológica imprescindível, bem melhor do que os mordomos que supostamente cuidam da sua boa aplicação. Tal como a melhor pintura e a melhor ilustração de Eduardo Batarda são bem melhores do que as anedotas que gosta de contar sobre as mesmas.
POST SCRIPTUM
Mais uma lição sobre prudência e justiça constitucional que é uma tareia nos sindicalistas, perdão, juízes do TC que chumbaram o governo e pretendem, pelos vistos, governar. Que tal pagarem os próximos vencimentos dos funcionários públicos com os vosso acórdãos?
Excelente artigo.
Na passada sexta-feira, o Tribunal Constitucional "chumbou" três medidas de consolidação orçamental, entre as quais cortes de 2,5% a 12% nos salários dos funcionários públicos, com fundamento nos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Em muitas dezenas de páginas de discurso digressivo, redondo, verboso, vago e em muitos pontos falacioso, a maioria dos juízes opinou que as medidas pecavam ora por "excessivas" ora por "irrazoáveis". Na sua declaração de voto, que conclui com a afirmação de uma divergência "radical" em relação às decisões de inconstitucionalidade, a Conselheira Maria Lúcia Amaral articulou com grande lucidez um argumento semelhante ao aduzido há mais de um século por Holmes. "Não se invalida uma norma editada pelo legislador democraticamente legitimado invocando para tal apenas a violação de um princípio (seja ele o da igualdade ou da proporcionalidade) se se não apresentarem como fundamento para o juízo razões que sustentem a evidência da violação. Quer isto dizer que, nestas situações, o controlo do Tribunal, além de ser um controlo de evidência, deverá ter sempre uma intensidade mínima." O futuro da justiça constitucional portuguesa depende do destino que a história reservar as estas linhas. É nelas que reside a chave para a deposição pacífica do governo de juízes que se instalou definitivamente no nosso sistema político e para a restauração do direito democrático inalienável da "maioria expressar a sua opinião nas leis" — in Um voto de vencido histórico, Povo, 3/6/2014.
Quatro juízes votaram vencidos. Excertos das suas declarações, publicados por José Mendonça da Cruz no
Corta-Fitas...
Maria de Fátima Mata-Mouros
2. Voto vencida quanto à declaração de inconstitucionalidade do artigo 117.º, n.os 1 a 7, 10 e 15 (que altera o cálculo das pensões de sobrevivência), porque não acompanho o Acórdão quando este conclui pela violação do princípio da igualdade. Aceito que a norma em questão e a opção política tomada possam ser criticadas, mas rejeito que daí redunde a sua inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade
6. Pode discordar-se da opção do Governo, ou considerar que o preceito não é claro ou é pouco feliz. Pode considerar-se que o legislador podia ter ido mais ou menos longe, tendo em conta o objetivo de redução da despesa. Mas daí não decorre a inconstitucionalidade da norma. Não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar a bondade da opção elegida pelo legislador democraticamente legitimado – apenas ajuizar se as medidas são conformes à Constituição.
Pedro Machete
(Cotejando o que o TC defendia no acórdão sobre o OE de 2013 e o que defende agora)
2.2. Sucede, isso sim, que o Tribunal decide agora perfilhar, face à mesma questão jurídico-constitucional, uma posição (ainda) mais restritiva da liberdade de conformação do legislador, considerando que a cláusula de salvaguarda por este introduzida no citado artigo 115.º, n.º 2, não impede que a redução dos montantes das prestações em causa penalize ainda excessivamente os credores de prestações mais baixas.
2.4. Num plano mais substancial, não pode deixar de relevar a aparente inconsistência entre a jurisprudência constante deste Tribunal que, em matéria de direitos sociais, tem reservado – e bem – para o legislador “as ponderações que garantam a sustentabilidade do sistema e a justiça na afetação de recursos” (v., por exemplo, o Acórdão n.º 3/2010) e a exigência formulada na presente decisão de standards mínimos de proteção superiores ao direito a uma existência condigna e, mesmo, superiores ao mínimo de proteção normativamente já assegurado no âmbito dos dois regimes de proteção social em apreciação. A fixação normativa de tais mínimos de proteção já implica valorações próprias da função legislativa,
Contudo, não foi isso que o Tribunal decidiu. O que o Tribunal decide no presente Acórdão é que o valor mínimo das prestações de doença e desemprego salvaguardado pelo artigo 115.º, n.º 2, da LOE para 2014 não chega; é insuficiente. E o problema inerente a esta decisão é que não existe qualquer critério jurídico que permita ao legislador saber quando é que afinal, para o Tribunal, o valor mínimo salvaguardado será suficiente. É uma simples questão de «tentativa/erro», a decidir casuisticamente. É o que acontece quando o Tribunal deixa de rever as decisões do legislador à luz de parâmetros normativos de controlo, e passa a reexaminar o seu mérito, eliminando-as sempre que discorde das escolhas que nelas são plasmadas.
Maria Lúcia Amaral
1.Votei vencida quanto à declaração de inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 33.º, 115.º, n.ºs 1 e 2 e 117.º da Lei do Orçamento de Estado para 2014. Entendo que com esta decisão o Tribunal restringiu indevidamente a liberdade de conformação política do legislador ordinário, e que o fez de forma tal que da sua argumentação se não pode extrair qualquer critério material percetível que confira para o futuro uma bússola orientadora acerca dos limites (e do conteúdo) da sua própria jurisprudência. Entendo ainda que tal aconteceu por não terem sido seguidas na fundamentação exigências básicas do método jurídico quando aplicado a assuntos constitucionais, de cujo cumprimento depende o traçar rigoroso da fronteira entre o que significa julgar em direito constitucional e o que significa atuar por qualquer outra forma
4. Não foi porém, a meu ver, isso que se fez no presente acórdão, a propósito do juízo de inconstitucionalidade da norma sobre reduções remuneratórias. Na sequência de decisões suas anteriores (Acórdão n.º 396/2001; 353/2012 e 187/2013), o Tribunal dá um passo de gigante na interpretação que faz do princípio da igualdade, abandonando a fórmula da proibição do arbítrio e abandonando também os caminhos próprios da “nova fórmula”, inaugurada em 1993. Daqui decorre uma constrição da liberdade de conformação do legislador que toda a jurisprudência anterior [sedimentada até há pouco tempo] não deixava antever; que não surge, em minha opinião, minimamente justificada; e que, por isso mesmo, torna absolutamente imprevisível a atuação futura do Tribunal.
Por isso, o que mais impressiona no raciocínio do Acórdão é que se contente com uma avaliação da perda remuneratória dos trabalhadores do setor público em 2014 face à sua própria situação em anos anteriores, assumindo que os níveis remuneratórios no setor privado para os diferentes níveis de rendimento são, normativamente ou de facto, insuscetíveis de sofrer qualquer flutuação durante um período de quatro anos (2011-2014). Se assim não é numa economia de mercado mesmo em período de crescimento económico, não o será seguramente num contexto de crise económica e financeira. Como impressiona sobremaneira o facto de o Tribunal, depois de não ter declarado a inconstitucionalidade da norma que concretizava a introdução de uma medida que estabelecia uma redução remuneratória dos trabalhadores do setor público, prevista na LOE 2011, vir agora, rever a sua posição.
5. A mesma falta de rigor na determinação do conteúdo do parâmetro constitucional invocado, e a mesma incerteza, daí decorrente, quanto à previsibilidade da orientação futura do Tribunal está patente, segundo creio, no juízo de invalidade relativo às normas constantes dos n.ºs 1 e 2 do artigo 115.º da lei orçamental (taxas de 5% sobre o subsídio de doença e de 6% sobre o subsídio de desemprego) , respeitantes às contribuições em caso de subsídio de desemprego e doença.
Depois de o legislador ordinário ter, na sequência da decisão proferida pelo Acórdão n.º 187/2013, estabelecido uma cláusula de salvaguarda que impede que a aplicação da contribuição sobre prestações de desemprego e doença possa prejudicar a garantia do valor mínimo das prestações que resulte do regime aplicável a qualquer das situações, a presente decisão vem agora dizer (argumentando que tal se encontrava já dito in nuce na sua jurisprudência de 2013) que tal não é suficiente para fazer cumprir a Constituição.
O fundamento para tanto invocado é o do princípio da razoabilidade, que nunca antes tinha sido apresentado como parâmetro único de invalidação de uma norma legislativa com força obrigatória geral.
6. Finalmente, a declaração de inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 117.º da lei orçamental, relativas às pensões de sobrevivência.
O parâmetro invocado para invalidar a medida legislativa volta a ser o princípio da igualdade, contido no artigo 13.º da CRP.
Contudo, o entendimento que o Tribunal aqui adota de “igualdade” não parece ser o mesmo que fundamentou a invalidação das reduções remuneratórias (artigo 33.º da lei orçamental). Com efeito, nenhuma conjunção se estabelece agora entre “igualdade” e “proporcionalidade”. Mas também se não retorna, segundo creio, nem à fórmula tradicional da proibição do arbítrio, nem sequer aos modelos intermédios próprios da “nova fórmula” de origem alemã (supra, ponto 3 desta declaração). Aparentemente, portanto, teremos também aqui um novo princípio, ou um novo entendimento quanto ao conteúdo de um princípio, que volta a assumir contornos assaz indefinidos.
O entendimento que aqui se faz da “igualdade” parece, portanto, ser ainda um outro, que não o decorrente da fórmula tradicional da proibição do arbítrio. Mas a meu ver não se entende bem qual seja: é que é difícil aceitar que o legislador ordinário esteja constitucionalmente vinculado a configurar a medida de limitação da acumulação de pensões tendo em conta o rendimento global que decorre dessa acumulação a partir do disposto no do artigo 13.º da CRP.
Por todas estas razões, desta decisão, como das outras tomadas neste caso no sentido da inconstitucionalidade, radicalmente me afasto.
J. Cunha Barbosa
1.Quanto à inconstitucionalidade do artigo 33.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 (redução remuneratória):
(…)tendo em conta a prerrogativa de avaliação de que quer o executivo (autor da proposta de Orçamento), quer o legislativo democraticamente legitimado devem beneficiar em matéria financeira e orçamental, crê-se que os argumentos avançados no que concerne a evidência da dispensabilidade da medida e a existência de soluções alternativas para a redução do deficit continuam a situar-se no plano daquilo que é “jurisdicionalmente indemonstrável”.
2.Quanto à inconstitucionalidade do artigo 115.º da Lei do Orçamento de Estado para 2014 (contribuição sobre prestações de doença e de desemprego)
a opção legislativa vertida no artigo 115.º da LOE 2014 ainda se conserva dentro de um “círculo de razoabilidade” reclamado pelo princípio da proporcionalidade, não havendo, por conseguinte, violação do princípio da proporcionalidade em sentido estrito.
Atualizado: 6/6/2014 02:13