Um texto de Guerra Junqueiro para ler agora
A bancarrota do regime está em marcha. Se não nos opusermos aos cleptocratas, oportunistas e demagogos que tomaram de assalto o país, espera-nos a extinção pura e simples. Se a nossa indolência deixar a nossa face escorrer como barro numa manhã de tempestade, atávicos e sentados diante da televisão e da História, como até agora, teremos o futuro que merecemos. Se, pelo contrário, decidirmos resgatar o país da corja populista que o levou à bancarrota, e da cambada de cleptocratas que rouba tudo o que pode e em toda a parte, salvando Portugal da vergonha e do nada, então teremos que nos mexer — remexendo os partidos existentes, criando novos partidos, e sobretudo criando novas plataformas de acção política.
É preciso votar contra os responsáveis pelo descalabro a que chegámos. Nenhuma tolerância para os líderes partidários, do PCP ao PP-CDS, passando pelo bonaparte Louçã, que "coordena" a salgalhada estalinista-maoísta-trotskysta do Bloco. Nenhuma tolerância para os três tristes traste deste regime: o traste José Sócrates Pinto de Sousa, o traste presidencial chamado Aníbal Cavaco Silva, e o novel traste Pedro Passos de Coelho (oxalá esteja enganado relativamente ao Jota que actualmente lidera o PSD). Precisamos de uma revolução política, e sobretudo cultural, como do pão para a boca.
Entretanto, para nos ajudar a reflectir, nada melhor do que ler na íntegra as Anotações de Guerra Junqueiro ao seu drama "Pátria", escrito em 1896 — cinco anos depois da bancarrota de 1891.
ANOTAÇÕES (e-book)
Balanço patriótico:
Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúsio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, bêsta de nora, agùentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalépsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, emfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional,—reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta;
Um clero português, desmoralizado e materialista, liberal e ateu, cujo vaticano é o ministério do reino, e cujos bispos e abades não são mais que a tradução em eclesiástico do fura-vidas que governa o distrito ou do fura-urnas que administra o concelho[1]; e, ao pé dêste clero indígena, um clero jesuítico, estrangeiro ou estrangeirado, exército de sombras, minando, enredando, absorvendo,—pelo púlpito, pela escola, pela oficina, pelo asilo, pelo convento e pelo confissionário,—fôrça superior, cosmopolita, invencível, adaptando-se com elasticidade inteligente a todos os meios e condições, desde a aldeola ínfima, onde berra pela bôca epiléptica do fradalhão milagreiro, até à rica sociedade elegante da capital, onde o jesuìtismo é um dandismo de sacristia, um beatério chic, Virgem do tom, Jesus de high-life, prédicas untuosas (monólogos ao divino por Coquelins de fralda) e em certos dias, na igreja da moda, a bonita missa encantadora,—luz discreta, flores de luxo, paramentos raros, cadeiras cómodas, latim primoroso, e hóstia glacée, com pistache, da melhor confeitaria de Paris;
Uma burguesia, cívica e políticamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavra, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provêm que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro[2];
Um exército que importa em 6.000 contos, não valendo 60 réis, como elemento de defesa e garantia autonómica;
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; êste criado de quarto do moderador; e êste, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do país, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre,—como da roda duma lotaria;
A Justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rôlhas;
Dois partidos monárquicos, sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, na hora do desastre, de sacrificar à monarquia ou meia libra ou uma gota de sangue, vivendo ambos do mesmo utilitarismo scéptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguêm deu no parlamento,—de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar;
Um partido republicano, quási circunscrito a Lisboa, avolumando ou diminuindo segundo os erros da monarquia, hoje aparentemente forte e numeroso, àmanhã exaurido e letárgico,—água de pôça inerte, transbordando se há chuva, tumultuando se há vento, furiosa um instante, imóvel em seguida, e evaporada logo, em lhe batendo dois dias a fio o sol ardente; um partido composto sobretudo de pequenos burgueses da capital, adstritos ao sedentarismo crónico do metro e da balança, gente de balcão, não de barricada, com um estado maior pacífico e desconexo de vélhos doutrinários, moços positivistas, românticos, jacobinos e declamadores, homens de boa-fé, alguns de valia mas nenhum a valer; um partido, emfim, de índole estreita, acanhadamente político-eleitoral, mais negativo que afirmativo, mais de demolição que de reconstrução, faltando-lhe um chefe de autoridade abrupta, uma dessas cabeças firmes e superiores, olhos para alumiar e bôca para mandar,—um dêsses homens predestinados, que são em crises históricas o ponto de intercepção de milhões de almas e vontades, acumuladores eléctricos da vitalidade duma raça, cérebros omnímodos, compreendendo tudo, adivinhando tudo,—livro de cifras, livro de arte, livro de história, simultaneamente humanos e patriotas, do globo e da rua, do tempo e do minuto, fôrças supremas, fôrças invencíveis, que levam um povo de abalada, como quem leva ao colo uma criança;
Instrução miserável, marinha mercante nula, indústria infantil, agricultura rudimentar;
Um regime económico baseado na inscrição e no Brasil, perda de gente e perda de capital, autofagia colectiva, organismo vivendo e morrendo do parasitismo de si próprio;
Liberdade absoluta, neutralizada por uma desigualdade revoltante,—o direito garantido virtualmente na lei, posto, de facto, à mercê dum compadrio de batoteiros, sendo vedado, ainda aos mais orgulhosos e mais fortes, abrir caminho nesta porcaria, sem recorrer à influência tirânica e degradante de qualquer dos bandos partidários;
Uma literatura iconoclasta,—meia dúzia de homens que, no verso e no romance, no panfleto e na história, haviam desmoronado a cambaleante scenografia azul e branca da burguesia de 52, opondo uma arte de sarcasmo, viril e humana, à frandulagem pelintra da literatura oficial, carimbada para a imortalidade do esquecimento com a cruz indelével da ordem mendicante de S. Tiago;
Uma geração nova das escolas, entusiasta, irreverente, revolucionária, destinada, porêm, como as anteriores, viva maré dum instante, a refluir anódina e apática ao charco das conveniências e dos interesses, dela restando apenas, isolados, meia dúzia de homens inflexos e direitos, indenes à podridão contagiosa pela vacina orgânica dum carácter moral excepcionalissíssimo;
E se a isto juntarmos um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em fórmulas banais e populares,—tão bons são uns como os outros, corja de pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra, etc. etc.,—teremos em sintético esbôço a fisionomia da nacionalidade portuguesa no tempo da morte de D. Luís, cujo reinado de paz podre vem dia a dia supurando em gangrenamentos terciários.
O advento do materialismo burguês, inaugurado pela ironia scéptica do Rodrigo, acabava pela galhofa cínica do Mariano. O riso de sibarita, levemente amargo, desfechava no riso canalha, de garotão de aljube. O patusco terminava em malandro.
A burguesia liberal, mercieiros-viscondes, parasitagem burocrática, bacharelice ao piano, advogalhada de S. Bento, morgadinhas, judias, sinos, estradas, escariolas, estações, inaugurações, locomotivas (religião do Progresso, como êles diziam), todo êsse mundo de vista baixa, moralmente ordinário e intelectualmente reles, ia agora liquidar numa infecta débâcle de casa de penhores, num Alcacer-Kibir esfarrapado, de feira da ladra.
A nação, como o rei, ia cair de podre.
O conflito inglês e a revolução brasileira, dois cáusticos, puseram a nu, de improviso, toda a nossa debilidade orgânica,—miséria de corpo e miséria de alma.
Falecimento e falência. Ruínas. Montões de vergonhas, trapos de leis, cisco de gente, lama de impudor, carcassas de bancos, famintos emigrando, porcos digerindo, ladroagem, latrinagem, um salve-se quem puder de egoismos e de barrigas, derrocada dum povo numa estrumeira de inscrições,—700 mil contos de calote público, a bela colheita do torrão português, regado a oiro, a libras, desde 52 até 90.
A crise não era simplesmente económica, política ou financeira. Muito mais: nacional. Não havia apenas em jôgo o trono do rei ou a fortuna da nação. Perigava a existência, a autonomia da pátria. Hora grande, momento único. A revolução impunha-se. Republicana? Conforme. Se o monarca nos saísse um alto e nobre carácter, um grande espírito, juvenil e viva encarnação de ideal heróico, tanto melhor. A revolução estava feita. Imprimia-se, dum dia ao outro, no Diário do Govêrno.
Mas feita com quem, perguntarão, se tudo era lôdo? Feita com o elemento moço do exército e da marinha, com quási todo o partido republicano[3], com individualidades íntegras e notáveis dos partidos monárquicos, com a juventude das escolas, com um sem-número de indiferentes por nojo e por limpeza, com os duzentos homens de sério valor intelectual dispersos nas letras, nas sciências, no comércio e na indústria, e com o povo, o povo inteiro, que acordaria, Lázaro estremunhado, da sua campa de três séculos, à voz dum vidente, ao grito dum Nunalvares.
O português, apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a qualquer estado ou condição. Capaz de heroismo, capaz de cobardia, toiro ou burro, leão ou porco, segundo o governante. Ruge com Passos Manuel, grunhe com D. João VI. É de raça, é de natureza. Foi sempre o mesmo. A história pátria resume-se quási numa série de biografias, num desfilar de personalidades, dominando épocas. Sobretudo depois de Alcacer. Povo messiânico, mas que não gera o Messias. Não o pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai-o dissolvendo em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza.
O próprio Pombal é o Desejado? Não. Fez-se temer, não se fez amar. Cabeça de bronze, coração de pedra. Moralmente, ignóbil. Rancoroso, ferino, alheio à graça, indiferente à dôr. Inteligência vigorosa, material e mecânica, sem vôo e sem asas. Um brutamontes raciocinando claro. Falta-lhe o génio, o dom de sentir, nobreza heróica, vida profunda,—humanidade, em suma. Máquina apenas. Não criou, produziu. A criação vem do amor, a génese é divina. Criar é amar. Por isso a obra lhe foi a terra. Pulverizou-se. Só dura o que vive. Uma raíz esteia mais que um alicerce. Pombal em três dias, num deserto, quis formar um bosque. Como? Plantando traves. Adubou-as com mortos e regou-as a sangue. Apodreceram melhor.
Sei muito bem que o estadista não é o santo, que o grande político não é o mártir, mas sei tambêm que toda a obra governativa, que não fôr uma obra de filosofia humana, resultará em geringonça anecdótica, manequim inerte, sem olhar e sem fala.
A ductilidade, quási amorfa do carácter português, se torna duvidosas as energias colectivas, os espontâneos movimentos nacionais, facilita, no entanto, de maneira única, a acção de quem rege e quem governa. Cera branda, os dedos modelam-na à vontade. Um grande escultor, eis o que precisamos.
Há, alêm disso, bem no fundo dêste povo um pecúlio enorme de inteligência e de resistência, de sobriedade e de bondade, tesoiro precioso, oculto há séculos em mina entulhada. É ainda a sombra daquele povo que ergueu os Jerónimos, que escreveu os Lusíadas. Desenterremo-la, exumemo-la. Quem sabe, talvez revivesse!
Fôra o rei um homem, que a nacionalidade moribunda se levantaria por encanto. E bem se me dava a mim da questão política, da forma de govêrno. Essencial, a forma do governante. Prefiro uma boa república a uma boa monarquia. A coroa de rei, de pais a filhos transmissível, como a coroa de Vénus; o trono hereditário como as escrófulas,—absurdo evidente. Mas se de absurdos anda cheio o mundo! Salta-se menos da majestade à ex.^a que da ex.^a ao tu. Impero eu mais no meu criado que o rei em mim[4]. Há em cada burguês uma monarquia. Milhões de burgueses, milhões de absurdos. E eliminam-se acaso numa hora?
Não se tratava por emquanto de modalidades orgânicas de existência; tratava-se de existir. Problema social e problema político marchariam evolutivamente na órbita ininterrupta do seu destino. Quando um vapor alagado vai ao fundo, discute a marinhagem construções navais? Primeiro salvá-lo, o estaleiro depois. Quer dizer: a revolução urgente não era social, nem política, era moral. Nem havia a escolher entre monarquia e república, pois que, para escolher entre duas coisas, é necessário existirem, e a república, tanto custava a realizar, que ainda até hoje a não fizemos.
A segurança da pátria exigia inadiavelmente à frente do govêrno um homem de superior inteligência, de altivo carácter, de ânimo heróico e resoluto. Era-o D. Carlos? obedeceríamos a D. Carlos. Uma alma, uma vassoira e uma carroça; de nada mais precisava. Varrer, limpeza geral, pôr isto decente! Tal embaixador levantára castelos de milionário com o dinheiro da nação? Transferi-lo de embaixada: representante vitalício do Limoeiro em África. Tal ex-ministro compra as quintas, vendendo a vergonha? Penhora e prisão. Os bens ao erário, o corpo à penitenciária. Deslaçar grã-cruzes e chumbar grilhetas. Norte e Leste, lamas do Tejo, Banco Lusitano, obras do estado, etc., etc., todas essas montureiras gangrenadas,—poios de escândalos, obscenamente fermentando ao ar livre,—queimá-las a calcium, purificá-las a vitríolo. Calcamos infâmias, respiramos veneno. Que um ciclone de justiça nos purificasse o ar e desentulhasse as estradas. Caminho livre, atmosfera nova! Quem baldeou o país à ruina, à miséria do lar, à indigência da alma? Idiotas? Aposentá-los em onagros. Bandidos? Metê-los na cadeia.
E a questão económica? Resolvida por si. Direi mais: útil e necessária. Mas resolvida de que forma? Pelo sacrifício de todos, pela abnegação colectiva. As pátrias, como os indivíduos, só se regeneram sofrendo. A dôr é salvadora. Não há virtude sem martírio, não há Cristo sem cruz. A Redenção vem da Paixão. A vida fortalece-se na angústia. Nem só a do homem, a vida inteira, a vida universal. A procela avigora o roble, e o ferro candente adquire a têmpera, mergulhando-o em gêlo. Quando a desgraça parece matar uma nação, é que tal nação estava morta. O cáustico, que levantou o doente, decompõe o cadáver.
Resumindo: desastres, misérias, vergonhas, infortúnios, calamidades, subjugadas com energia e padecidas com nobreza, enseivariam de novo alento o coração exânime da pátria. O raio lascou a árvore? Brotaria, amputada, com maior violência. A alma habita na raíz.
Mas seria possível conjurar quatro milhões de interesses, quatro milhões de egoismos, num ímpeto de fé heróica e de renúncia? Era. Digo-o sem hesitar. O sibarita que ria, o cevado que ronque. Era! O espírito, como o fogo, consome traves, calcina pedras, derrete metais. O facho duma alma pode incendiar uma Babilónia. Um iluminado pode abrasar um império. Tem-se visto. O cofre-forte é de ferro, a libra é de oiro, o egoismo é de bronze, mas a electricidade impalpável, invisível, imponderável, volatiliza tudo num momento. Ora o espírito é a electricidade de Deus. Nada lhe resiste. Devora séculos, evapora mundos. Jesus e Buda,—um crucificado, o outro mendigo,—refazem o globo, põem nova máscara à criação. Joana d'Arc e Nunalvares, irmãos gémeos, redimem duas pátrias. Focos ambulantes de espírito divino, arrastam e vencem,—magnetizando. O céu é contagioso como a lepra.
Claro que o milagre exige a fé. Nem todos os sábios juntos escreveriam os evangelhos. A língua do homem, sem a língua de fogo, não apostoliza, discursa. Um Doutor não é um Messias.
A metempsicose, em moderno, do grande Condestável, eis o meu sonho. Um justiceiro e um crente. Braço para matar, bôca para rezar. Pelejas como as de Valverde só se ganham assim: ajoelhando primeiro. O Nunalvares de hoje não usaria cota, nem escudo, mas, ao cabo, seria idêntico. A mesma chama noutro invólucro. Não combateria castelhanos, combateria portugueses. O inimigo mora-nos em casa. Aljubarrota no Terreiro do Paço e os Atoleiros… nos mil atoleiros de infâmias que enodoam as ruas, e obstruem o trânsito. Queríamos um justo inexorável, um santo heróico, com a verdade nos lábios e uma espada na mão. Os quadrilheiros que infestam Lisboa e os sub-quadrilheiros que infestam as províncias, anulá-los, esmagá-los num dia, numa hora, sem pena e sem remorso, vasando-os logo,—atascadeiro de baixezas, lôdo de malandros,—pelo buraco infecto duma comua. Depois pregar a tampa. Um colector in pace, um cano de esgôto jazigo de família.
E, removidos os focos epidémicos, voltaria em breve a saúde geral. A obra de reconstrução, inda que lenta, marcharia sem estôrvo. Humanizar o ensino, nacionalizar a indústria, um clero português e cristão, a justiça fora da política, o exército fora de S. Bento, os burocratas para a burocracia, o professorado para as escolas, o poder legislativo entregue às fôrças independentes e vivas do país, arrotear o solo, colonizar a África,—tudo era possível, tudo era simples, desde que nos dessem uma fé, uma crença, vida luminosa,—uma alma!
Alma! eis o que nos falta. Porque uma nação não é uma tenda, nem um orçamento uma bíblia. Ninguêm diz: a pátria do comerciante Araújo, do capitalista Seixas, do banqueiro Burnay. Diz-se a pátria de Herculano, de Camilo, de Antéro, de João de Deus. Da mera comunhão de estômagos não resulta uma pátria, resulta uma pia. Sócios não significa cidadãos. O burguês estúpido, perante as calamidades que nos assaltam, computa-as em libras, redu-las a dinheiro. Parece que se trata duma mercearia em decadência. Dívida flutuante, impostos, câmbios, cotações, alfândegas, cifras, dinheiro, nada mais. A ruína moral não entra na conta nem por um vintêm. Deve e há-de haver, eis o problema. Direito, Justiça, Honra, Pundonor,—palavras! Se o gigo das compras andasse farto e os negócios corressem, podiam encafuar Jesus Cristo na penitenciária e sua Mãe no aljube, que a récua burguesa, dizendo-se católica, não se moveria. O câmbio estava ao par.
Falir um banco, que desastre! Falir uma alma…—Mas que demónio é isto de falir uma alma?—
Ouve lá, burguês rotundo. Um exemplo. Ouviste já nomear por acaso o Fialho de Almeida? Vagamente. Ora bem; êsse Fialho é a mais rica natureza artística que Portugal tem gerado há duas dúzias de anos. Um talento grande, rutilando em génio por instantes. Em génio, sim. Leiam os Pobres, o Filho, a Vélha, o Idílio triste. Natureza de sensibilidade vibrátil, agudíssima, quási mórbida. Depois português, idolatrando o seu Alentejo, adorando a sua pátria, instintivamente, orgânicamente, como a raíz adora a terra.
A uma tal natureza, em Lisboa, de 90 a 93, hora a hora assistindo à decomposição putrefacta daquela percevejaria nausente, não lhe era lícito o refúgio nirvânico dos metafísicos ou dos hábeis na decantada tôrre de marfim. O Fialho estava pobre e o marfim muito caro. Índole ardente e valorosa, palpitante de plebeismo robusto, de humanidade sanguínea, olvidou planos de arte, sonho alado, quimera astral, e de chicote nas unhas, mordaz e mordendo, arremeteu contra a fandangagem da sociedade lisboeta, como alguêm que marchando direito a um nobre destino, se atirasse de repente às ondas, aventurando a vida,—para salvar um bêbado.
Entre os projectos literários do admirável artista, um havia mais que todos acariciado e fecundo, os Cavadores, rústico poema, síntese sublime da vida da terra, da planta e do camponês, obra de fisiologista, de psicólogo e de poeta, reçumando sangue, transpirando lágrimas, drama tangível e real, movendo-se numa atmosfera enigmática de infinito e de sonho. Um livro elevado. Lisboa rasgou-lho. Em troca deu-lhe os Gatos. Dum poeta épico fez isto: um varredor da Baixa. O Fialho durante três anos varreu o Chiado, espiolhou a Havanesa, catou S. Bento. Os trapos converteram-no em trapeiro. A águia baixou a milhafre. O milhafre é útil, depura e limpa. Os Gatos foram, em parte, uma obra de justiça, por vezes de cólera. Mas o rancor dos bons denota ainda bondade. Só os grandes idealistas desceram a grandes satíricos. Cristo dava chicotadas.
Nos Gatos estoira de quando em quando um rugido de tigre. É o melhor do panfleto. O resto, tirante algumas páginas literárias, maravilhosas, descamba na insignificância,—cisco, anecdotas, noticiário, zero. O estilo não basta. Uma melancia em bronze não deixa de ser uma melancia. Os Gatos tem valor moral e valor de arte. Mas êste é relativo, e portanto inferior, e aquele ineficaz, e por tanto menos proveitoso. Varrer Lisboa nos Gatos, acho bem; varrê-la no Diário do Govêrno, acharia óptimo. Conclusão: o desmantelamento da sociedade portuguesa actuou no espírito impressionável dum grande poeta, esterilizando-lhe a génese da obra humana, imorredoira, e fecundando-lhe a semente da obra particularista e transitória. Desviou do seu curso natural a água límpida que regava plátanos e searas para com ela inundar estrumeiras e desentupir esgotos.
Bom burguês, compreendes agora o que é a falência dum espírito? Calcula, pois, em 2 milhões de consciências[5], o déficit moral, a ruína interior, que os teus guarda-livros não escrituram nas agendas. Perdeste dinheiro, meu rico homem, na quebra fraudulenta dum banco? O Fialho e nós perdemos os Cavadores na quebra fraudulenta duma nação. O prejuízo maior foi o nosso. O nosso, o da pátria. Porque é mister que to diga, bom burguês: sem o banco de Portugal ficaríamos pobres 30 anos. Mas sem os Lusíadas ficaríamos pobres para sempre. As libras voltam. O génio não se repete. Por isso, burguês odioso, te não lamento. Mais ainda: regalam-me às vezes, Deus me perdoe, os teus desastres, lembrando-me que só te levantarás honradamente, quando se te der, de fome, um nó nas tripas! Idiota! Nem egoista és. Vês apenas dinheiro, e hão-de deixar-te sem camisa. Inda bem. Só nu ficarás decente.
Continuemos. A nação, mais do que de libras, carecia de alma. Quem lha daria? Quem a tivesse como o sol tem luz: infinita. Pobre D. Carlos! Que havia de êle dar,—mediocridade palúrdia, já aos 25 anos atascado no cebo dinástico, nas banhas brigantinas! Alma? Bem alma, não; quási, pequena diferença: lama. Uma inversão de duas letras. Ligeiro lapso, cuja emenda é esta: Viva a república!
O rei falhára. Nulo, insignificante. Pedir-lhe génio, heroismo, grandeza, sublimidade,—o mesmo que pedir astros a uma couve ou raios a uma abóbora.
A existência da pátria dependia da revolução. O rei não pôde, não soube, ou não quis fazê-la. Em suma, não a fez. Perdeu-se. Que restava? Fazê-la o povo. Não a fazendo, perdia-se tambêm.
O rei, em vez de cortar o cancro, identificou-se com êle. Chaga maior, operação mais grave. Já ninguêm suprimirá o cancro, sem suprimir a realeza.
O republicanismo não é aqui uma fórmula de direito público; é a fórmula extrema de salvação pública. No prédio em chamas há só uma janela aberta. Preferem os monárquicos morrer queimados, por a janela estar pintada de vermelho? Fôsse ela branca, que eu saltaria sem escrúpulos.
Republicano e patriota tornaram-se sinónimos. Hoje quem diz pátria, diz república. Não uma república doutrinária, estúpidamente jacobina, mas uma república larga, franca, nacional, onde caibam todos. Não dum partido, da nação. Presidente o melhor. Foi por acaso miguelista? Embora. Uma revolução por selecção de caracteres.
Tal movimento cívico, espiritualizado e grande, requeria pelo menos um homem. Existe? Existiu: José Falcão.
José Falcão! Alma tão nobre de patriota não a conhecerei jàmais. A ideia de pátria, feita verbo, nela encarnára divinamente. Hóstia sublime! Trigo de comunhão deu-nos a fé, e trigo de viático, na hora da nossa morte, dá-nos ainda a esperança.
À volta de mim vejo monturos, dentro de mim encaro cinza. Tudo acabou, não é verdade? Melancólicamente revolvo a cinza, poeira de quimeras, e uma flámula fulge, uma brasa crepita… É a alma dele… Não quer apagar-se. Mesmo dentro de nós, túmulos cerrados, continúa ardendo. Àmanhã de tais campas podem brotar ainda lavaredas.
Grande homem! Como o sangue em momento de pânico reflue de chofre ao coração, dir-se-ia que na hora suprema toda a alma da pátria naquela alma se ajuntára.
Em José Falcão a inteligência era robusta, a sciência enorme, mas a grandeza moral incomparável e soberana. Dizia o que pensava, fazia o que sentia. Um justo. Portanto, um solitário. Querendo viver puro, viveu em si mesmo. Isolou-se. Nem ambicioso, nem vaidoso. Nos altos píncaros, de gêlo e de luz, não há micróbios.
Egoista intelectual? Nunca. Ânimo generoso, os problemas sociais cativaram-no. A sociedade evitou-a. Livros e família: cérebro pensando, coração amando.
Mas o sentimento da pátria com tal furor e febre lhe girava no sangue, tão inato e profundo lhe ardia lá dentro, que aquele homem de ideias instantaneamente se volveu, como por milagre, em homem de acção. O ruído molestava-o; procurou o ruído. A turba incomodava-o; procurou a turba. Agitou-se três anos em movimento frenético. Pátria! Pátria! a visão constante, o sonho de toda a hora! Fogo sagrado, fogo devorador. Queimou-se, abrasou-se nele. Auto-de-fé dum corpo nas lavaredas duma crença.
O patriotismo tornára-se em José Falcão um misticismo. Compreende-se bem. Ideia tão inflamável, em tão candente natureza moral sublima-se, ilumina-se, perde-se no êxtase, no enlêvo, no transcendentalismo religioso. Aquele homem exalava de si o quer que fôsse de sobrenatural e de divino. Sentia-se que no grande momento arriscaria tudo: família e vida, fortuna e lar. Através do crente apercebia-se o herói. Por isso arrastava. A eloqùência vinha-lhe espontânea, dominadora, magnética. Não a eloqùência literária dos artistas. Eloqùência de alma, verbo interior, luz de uma chama.
Depois naquele homem tudo era português, sóbrio, simples, varonil, vernáculo: figura, gesto, palavra, intonação, modo de vestir, maneira de andar. Tudo beirão, tudo nosso. Nem um galicismo. Austero e risonho, violento e meigo,—a singeleza na grandeza. Lembrava ainda o Condestável. Como êle, espírito heróico, braço de ferro para o comando, bôca de santo para a piedade.
Extenuado e letárgico, pressentindo a morte, nunca desanimou. Pois a doença da pátria não era ainda bem mais grave? Por ela sim, desejaria viver, desejaria morrer. A fôrça física abandonava-o, só a vontade sôbre-humana o tinha de pé. Era já uma existência feita de ressurreições, um ideal galvanizando um cadáver.
Dizia-nos êle, quási no fim: Não duro muito; aproveitem-me.
Morria daí a meses.
Não há uma íntima e dolorosa afinidade entre a alma quebrantada dum povo, baldadamente, durante séculos, evocando um Messias, e a breve aparição dum redentor, miragem súbita, que mal se desenha se desfaz?
Tal a árvore-espectro, frutos de aurora sonhando, caveiras torvas produzindo, que um dia gerou, milagre de amor! o pomo de oiro deslumbrante, e o viu desprender, esbroando em cinza, do galho nú, do ramo estéril de esqueleto…
Árvore nocturna, a morte gira-te nas veias, e os frutos de Ideal que tu concebes já trazem no âmago, quando nascem, as larvas deletérias do sepulcro…
Desiludido, assim o creio por vezes. Depois a um golpe de sol, o Quichote revive, exalto-me de novo, de novo espero… Florinha azul, beijo de Deus,—divina Esperança…
Notas:
[1] Há excepções individuais, claramente. A fisionomia geral, no entanto, é aquela.
[2] Se o Nazareno, entre ladrões, fôsse hoje crucificado em Portugal, ao terceiro dia, em vez do Justo, ressuscitariam os bandidos. Ao terceiro dia? que digo eu! Em 24 horas andavam na rua, sãos como pêros, de farda agaloada e grã-cruz de Cristo.
[3] Continuaria a haver algumas dúzias de republicanos, por coerência, brio pessoal ou teima doutrinária. O espírito republicano que alastrou no país, esse extinguia-se, ou antes não se tinha gerado.
[4] Um rei segundo a Carta, entende-se.
[5] É meia consciência por habitante. Talvez excessivo.
in ANOTAÇÕES do drama Pátria (3ª edição, PORTO Livraria Chardon, de Lelo & Irmãos, editores — Rua das Carmelitas, 144, 1915 ©)