Precisamos de reverter o buraco negro das PPP
As Parcerias Público Privadas (PPP) foram, à época, um estratagema financeiro engendrado pelo Bloco Central da Corrupção como meio de financiar obras públicas sem aparentemente carregar no défice público.
Este estratagema, que viria a envolver sucessivos governos, bancos, construtoras e os rendeiros do regime, aplicou-se à construção de autoestradas, barragens, hospitais, sistemas de saneamento e de captação, tratamento e distribuição de águas, e ainda estações de tratamento de lixos.
Ou seja, quando as receitas fiscais e a despesa do estado já aconselhavam maior prudência e responsabilidade no lançamento de obras públicas, a nomenclatura partidária e os cleptocratas do regime resolveram apostar numa fuga em frente, em nome do crescimento, da criação de emprego e — claro, mas não dito— do enriquecimento ilícito de rendeiros, devoristas, partidos e governantes de um país que pouco depois sucumbiria à sua terceira bancarrota desde 1974 (cortesia invariavelmente cor-de-rosa), e cujo resgate implicou uma transferência sem precedentes de ativos preciosos do país, embora a saque, para os credores. Acrescendo a isto, o inevitável cortejo de desemprego, empobrecimento e emigração, de que se salvou, também invariavelmente, a nomenclatura partidária.
Posso imaginar que os piratas financeiros alemães e americanos tenham apostado nesta armadilha.
O que não posso aceitar, nem deixar passar em claro, é a cumplicidade dos piratas indígenas neste saque programado do país. É que, ao contrário do que a maioria dos portugueses —sempre embasbacados diante do futebol, das telenovelas e dos concurso desmiolados da TV— imaginam, ou nem sequer imaginam, a maioria das faturas das PPP estão por pagar e serão um verdadeiro flagelo ao longo das próximas duas, três ou mais décadas.
Estamos, porém, a tempo de reverter este assalto aos bens, às poupanças e ao emprego dos portugueses. Mas para isso é preciso correr com a cleptocracia que tomou de assalto o país, mudando de alto a baixo a composição do parlamento. Mais do mesmo, não!
Vale a pena, a este propósito, ler o elucidativo email dirigido pelo Professor Jorge Paulino Pereira, do IST, a Clara Teixeira, a propósito dum importante artigo publicado pela Visão do passado dia 6 de agosto.
Cara Clara Teixeira
1. Como lhe tinha dito, parti para fora de Portugal na 5ª feira de manhã (dia em que saiu o artigo da Visão sobre as Auto-estradas desertas). Apenas cheguei anteontem à noite, e só ontem consegui ler a sua peça na íntegra. Entretanto, soube que esta notícia teve algum impacto em certos sectores, tendo em conta os ecos que me chegaram de vários conhecidos e amigos de vários quadrantes políticos.
2. Antes de mais quero-lhe testemunhar o meu apreço pelo facto de ter utilizado os nossos dados e pela feliz escolha das figuras que deram uma ideia muito clara dos tráfegos existentes (e muito baixos). Também a forma como conseguiu condensar a informação que tivemos ocasião de discutir, me pareceu um trabalho interessante.
3. Contudo, no texto, julgo que se deveria ter separado a análise relativa às auto-estradas do Sul de Portugal, daquilo que falámos sobre as SCUT's (estradas Sem CUstos para o UTilizador) porque se trata de duas situações diferentes. Ao não se fazer essa separação, o leitor poderá ter ficado com uma ideia distorcida do que foi a nossa conversa e do que eu disse e penso.
4. Recapitulando o meu pensar. A BRISA foi durante muitos anos a única concessionária de auto-estradas em Portugal tendo sido constituída no Governo de Marcelo Caetano, ainda antes do 25 de Abril. Tinha uma instituição financeira portuguesa subjacente (o BIC de Jorge de Brito). Nesses tempos, a Junta Autónoma das Estradas (JAE), brilhantemente reestruturada por Duarte Pacheco, Ministro de Salazar na distante década de 40, era o motor do desenvolvimento rodoviário nacional e assim permaneceu durante largas dezenas de anos.
No Governo de Cavaco Silva, foi a JAE que permitiu "abrilhantar" a imagem desse período porque era das poucas instituições que fazia um planeamento de curto, médio e longo prazo, tendo uma estratégia nacional com projectos preparados para diferentes estádios (ao nível de estudo prévio e de projecto de execução). E como veio o dinheiro da União Europeu e os outros ministérios que tinham a seu cargo outros sectores económicos e institucionais do País não tinham nada preparado, o Ministro das Obras Públicas de então, sacava de um dos projectos que estavam na gaveta da JAE, e ele era feito para não se perderem as verbas que a Europa punha à nossa disposição.
No Governo de Guterres (quando João Cravinho era Ministro) foi definida uma política rodoviária diferente. A antiga Junta Autónoma das Estradas (JAE) foi considerada como "corrupta" e até como "incompetente" para levar por diante o Programa Rodoviário Nacional (PRN), que incluía a construção de muitos Itinerários Principais (IP) e de Itinerários Complementares (IC). Paralelamente, a BRISA foi vista como pouco vocacionada para fazer esse mesmo programa e, além disso, queriam-se criar concorrentes a esse monopólio de auto-estradas. Por isso, nesse Governo, a JAE foi "destruída" e criaram-se novos concessionários para fazer concorrência à BRISA, por meio das famosas PPP (Parcerias Público Privadas).
A estratégia então defendida consistia no seguinte: partia-se do princípio que bastava fazer uma estrada para qualquer região, para a poder desenvolver. Logo a seguir à abertura da estrada, apareciam mais empresas na zona servida; e elas geravam mais emprego e maior crescimento do PIB local. E, como corolário desta "brilhante teoria", a estrada era paga pelo próprio crescimento económico gerado ao nível regional e local. Como exemplos, eram utilizados os desenvolvimentos verificados noutros países europeus por via da construção de estradas.
Para demonstrar que se tratava de um estratégia excepcional e bem sucedida, o Governo entendia que não haveria portagens. Eram as tais estradas Sem CUstos para o UTilizador (em alternativa às estradas com portagem). Elas seriam a chave do desenvolvimento do interior de Portugal. Como é sabido, as portagens devem existir quando se põem, à disposição do público, trechos alternativos em auto-estrada, mais rápidos e mais directos, ou qualquer ponte ou túnel de certa dimensão que permita encurtar traçados.
Para além disso, com as PPP rodoviárias, o Estado não pagava nada (ou quase nada) durante a construção e os primeiros anos, e só depois começava a pagar os investimentos efectuados quando a região se começasse a estruturar e a desenvolver. A "nova ideia" parecia ter uma justificação logística técnica e uma envolvente política inovadora. A História recente já mostrou que ela se revelou completamente desapropriada e irrealista, com resultados desastrosos para o País e para as gerações vindouras que vão ter de pagar infra-estruturas rodoviárias que estão “às moscas”...
Logo esta estratégia utópica, apresentada pelos governantes, foi secundada pelos habituais seguidores (e servidores do poder), existentes no meio académico, que são sempre benvidos para assegurar as necessárias "bases e fundamentos teóricos" que tornam essas estratégias mais bem aceites pelo público em geral (que são afinal os votantes).
Diga-se que as Parcerias Público Privadas (PPP), por si sós, não são um mal. Considera-se que as PPP podem ser úteis para despoletar e fazer funcionar alguns projectos de alguma dimensão. Sobretudo naqueles onde há risco envolvido e o Estado receia que os objectivos e receitas a atingir possam não ser assegurados em tempo útil. Deste modo, o risco associado passa a ser do privado e, paralelamente, o Estado irá pagar uma contribuição mais elevada para motivar o privado. Ou seja, uma obra feita por meio de uma PPP sai sempre mais cara do que se tivesse sido feita directamente pelo Estado (pelas entidades do Estado). E isso tem lógica, como se procurou mostrar. Contudo, o uso generalizado de PPP para fazer obras é penalizante para o País, porque o Estado deixa de ter condições de financiamento mais favoráveis junto da Banca e das instituições mutuárias e financeiras internacionais. Ora, no caso de Portugal, as PPP rodoviárias não envolviam quaisquer riscos para os privados, pelo que se tratou apenas de uma política de transferir para terceiros o papel do Estado que passou obviamente a pagar muito mais pelas obras que deveria fazer.
Os grandes construtores nacionais perceberam a estratégia e posicionaram-se de forma adequada. Estas empresas (principais financiadores dos partidos) são grandes empregadoras de mão-de-obra, geram um efeito multiplicador junto de subempreiteiros e no local onde se fazem os trabalhos, e possuem elevados volume de negócios. Contudo, não têm capacidade financeira para efectuar esses investimentos relacionados com as PPP e estão sempre dependentes da Banca. Por isso, quando se deu início à política das PPP, a Banca Portuguesa surgiu à tona e, nomeadamente, o papel do Banco Espírito Santo tornou-se hegemónico. Pela sua forma de actuar, pela sua hábil capacidade de gerar uma teia de contactos políticos, económicos e financeiros, controlando, na prática, as lideranças dos partidos do Arco da Governação (PS e PSD) mas também de alguns dos sectores influentes dos outros partidos menores, pela sua inteligente estratégia de se apoiar em grupos económicos e em pequenos bancos emergentes, pela forma como decapitou o seu rival directo (o BCP actual Millenium), o chefe do BES, Ricardo Salgado, rapidamente se assumiu como o verdadeiro Primo-Ministro Económico de Portugal. E daí que ele se tenha de facto tornado no líder económico e financeiro de Portugal nas últimas décadas, imprimindo a sua estratégia na maioria dos grandes projectos nacionais.
Por meio destas PPP, os grandes construtores portugueses e a Banca portuguesa auto-financiaram-se com base no dinheiro que provinha do próprio Estado. Ora, como a Banca Portuguesa também não tem dinheiro, teve de recorrer à Banca Internacional para se prover de fundos para fazer as obras, e esta exigia o aval ou garantia do Estado Português para estas várias operações financeiras. Deste modo, o Estado português foi-se endividando sistemática e progressivamente, tal como um empresário medíocre e incompetente, que não sabe gerir o seu negócio empresarial, o vê afundar-se também de modo progressivo e sistemático.
Os Bancos internacionais mais importantes, a que a Banca portuguesa recorreu, estavam localizados nos países europeus mais industrializados e que controlam a União Europeia e o Euro, nomeadamente na Alemanha e na França. Por isso, esses Governos que dominam a Europa passaram a promover uma mera política de "colonialismo financeiro", tratando os países que pediam os tais "empréstimos bancários" como seus reles servidores. E tal como qualquer agiota, a sua estratégia política consistiu em defender arduamente os partidos e os governos desses países dependentes que ajudassem a promover esse mesmo colonialismo. Aliás, este "dinheiro emprestado" passou a representar uma das principais fontes de rendimento desses novos países colonizadores do Sul da Europa... Em abono da verdade, deve referir-se que muitos dos bancos envolvidos estão associados no chamado EuroGrupo (uma cabeça que domina a Europa e que só é controlada pelo poder financeiro e que funciona como uma hidra de numerosos contactos financeiros internacionais).
A estratégia de construção das SCUT's também tinha outros inconvenientes. Por um lado, não permitia efectuar um faseamento das estradas, porque cada troço tinha de ser feito todo de uma só vez para o ano horizonte. Deste modo, não podia ser feita uma estrada por fases (primeiro, com menos vias; e depois com maior número de vias) para ter em conta o crescimento do tráfego. Também a estrada tinha de ter o aspecto final quer em termos de equipamentos de controlo e segurança, quer doutros. Para além disso, como eram os construtores que estavam envolvidos como patrões e eles queriam reduzir custos, a própria qualidade do projecto foi afectada para optimizar os investimentos do ponto de vista do empreiteiro (redução do comprimento de viadutos sobre baixas aluvionares, minimização dos gastos com a pavimentação, etc).
Também o papel das empresas que fizeram projecções de tráfego merece ser criticado desfavoravelmente. Para justificar os investimentos, os tráfegos foram empolados, tendo-se verificado que actualmente e na realidade, eles estão completamente afastados do que foi antecipado (estão muito abaixo das suas previsões optimistas).
Entretanto, colocaram-se sistemas de pagamento do tipo portagem, o que se deveria ter feito desde o início. Mas o sistema utilizado, recorrendo a pórticos, novamente penaliza o utente, ou seja, penaliza essencialmente os Portugueses. Não foi instalado um sistema de pagamento com as portagens convencionais (com ou sem portageiro). De facto, em cada trecho definido pelos pórticos, não se sabe o que se paga nem porque se paga.
Em vários países da Europa (por ex. na Áustria, na República Checa, na Eslováquia, na Eslovénia, etc), é obrigatório pagar uma vinheta sazonal (10 dias, mensal, anual) para andar pela rede de auto-estradas e não se pagam portagens localizadas. Ali, têm pórticos iguais aos das nossas SCUT’s para detecção dos veículos que estão em infracção (sobretudo os pesados). Nesses países, em algumas auto-estradas ou túneis ou pontes, construídas no âmbito de PPP, continua a haver adicionalmente portagens localizadas nos inícios e nos finais dos vários lanços.
Em Portugal, de forma abusiva, apenas se colocaram pórticos. E estes têm apenas lógica para quem tem uma vinheta (a Via Verde da Brisa) e não para o condutor que pontualmente circula pelo trecho de auto-estrada.
Como seria de esperar a introdução de sistemas de pagamento provocou uma quebra de tráfego nas auto-estradas do tipo SCUT porque a alternativa existente, apesar de pior, é gratuita. Por isso, a realidade que se observa actualmente em muitas SCUT’s é desoladora, com tráfegos diminutos a muito diminutos. E este panorama até é bem pior do que o que está retratado nos mapas que foram apresentados para algumas das auto-estradas do Sul de Portugal e da região de Lisboa.
E agora o que se deve fazer?
Se se tratasse de uma empresa privada que não gera receitas para cobrir as despesas e os encargos dos empréstimos, a solução seria fácil. Bastava fechá-las, despedir as pessoas que iriam para o Fundo de Desemprego e vender equipamentos e bens para tentar fazer dinheiro para pagar aos principais credores. A falência de qualquer empresa acarreta sempre inevitavelmente este tipo de procedimentos.
No caso das auto-estradas do tipo SCUT, as empresas (ou seja, os consórcios construtores e financeiros) também estão falidas porque as receitas geradas pelos tráfegos são, em, muitos casos, irrisórias. Deveriam pois ser tratadas do mesmo modo. Ou seja, se uma auto-estrada não tem tráfego, então deveria ser fechada por ter entrado em falência a empresa concessionária. Os gastos com dívidas ficariam para os construtores e para as instituições financeiras que os apoiaram e o resto da população nada teria a ver com isso. De facto, seria fácil, se fossem só consórcios privados (só construtores e financeiros). Que ficassem com o seu investimento ruinoso! Depois haveria uma eventual renegociação para que o Estado ficasse com a infra-estrutura a “bom preço” (preço da chuva) pondo-a ao serviço da população, mas sem suportar os gastos associados com uma estratégia de planeamento incorrecta e demasiado optimista, feita pelo privado.
Agora, no caso das PPP não é possível esta estratégia porque o Estado é um dos envolvidos. Que fazer? Neste caso, dever-se-ia proceder do mesmo modo que no caso dos privados. A auto-estrada fechava (ficava para os construtores e os financeiros). Mas a política do Estado é que deveria ser outra. As entidades portuguesas deveriam ir junto das entidades financeiras internacionais que emprestaram o dinheiro, comunicando que elas, apesar de estrangeiras, eram co-responsáveis pelo investimento e tinham integrado um processo estranho (para não dizer fraudulento) para sacar dinheiro ao Estado Português. Nestes casos, as dívidas que existiam porque o Estado deu o seu aval, deveriam ser renegociadas. Obviamente que alguns políticos e empresários também teriam de ser penalizados e criminalizados à luz da Lei (existente ou a criar) para credibilizar a reclamação do Estado Português.
Esta política de renegociação das dívidas das PPP deveria ser efectuada não apenas relativamente às PPP rodoviárias, mas em relação a todas as PPP que existem onde o Estado deu a face e o Povo Português está a ser penalizado (e irá ser penalizado) por várias gerações. No caso das PPP rodoviárias até existem alternativas (quem não quiser não vai por aquela auto-estrada). Mas que dizer do escândalo das PPP ao nível da Energia e das rendas que se pagam às empresas distribuidoras e fornecedoras de Electricidade onde de facto não há alternativas? Ou do que já se avizinha em termos de política de Águas e Esgotos, etc?
A opinião que transmiti é a de um técnico e não a de um político. E eu sei que este olhar de técnico é sempre visto com alguma desconfiança pelo poder político que receia qualquer opinião ou pergunta incómoda que possa fazer levantar dúvidas ao nível do seu rebanho de eleitores ou que ajude a promover os seus rivais.
Cara Clara Teixeira
Que fique claro que não estou à espera que faça uma qualquer adenda à sua excelente peça, em qualquer outro número da revista Visão. Nem lhe peço que publique este meu complemento como qualquer artigo de opinião. Mas assim fica claro o meu ponto de vista, também para si.
Tentei reencaminhar este e-mail para o João Garcia, mas desconheço se o e-mail dele está certo. Por favor, faça-lhe chegar uma cópia.
Por último, irei enviar cópia desta minha opinião a alguns amigos e conhecidos que ficaram um pouco confusos com o texto ou com a forma como lhes pareceu estar apresentado o modo como eu penso.
Melhores cumprimentos e Parabens
Jorge Paulino Pereira